terça-feira, 25 de novembro de 2008
Parece atual?
Degradação do Judiciário
Dalmo de Abreu Dallari
Nenhum Estado moderno pode ser considerado democrático e civilizado se não tiver um Poder Judiciário independente e imparcial, que tome por parâmetro máximo a Constituição e que tenha condições efetivas para impedir arbitrariedades e corrupção, assegurando, desse modo, os direitos consagrados nos dispositivos constitucionais.
Sem o respeito aos direitos e aos órgãos e instituições encarregados de protegê-los, o que resta é a lei do mais forte, do mais atrevido, do mais astucioso, do mais oportunista, do mais demagogo, do mais distanciado da ética.
Essas considerações, que apenas reproduzem e sintetizam o que tem sido afirmado e reafirmado por todos os teóricos do Estado democrático de Direito, são necessárias e oportunas em face da notícia de que o presidente da República, com afoiteza e imprudência muito estranhas, encaminhou ao Senado uma indicação para membro do Supremo Tribunal Federal, que pode ser considerada verdadeira declaração de guerra do Poder Executivo federal ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, à Ordem dos Advogados do Brasil e a toda a comunidade jurídica.
Se essa indicação vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional. Por isso é necessário chamar a atenção para alguns fatos graves, a fim de que o povo e a imprensa fiquem vigilantes e exijam das autoridades o cumprimento rigoroso e honesto de suas atribuições constitucionais, com a firmeza e transparência indispensáveis num sistema democrático.
Segundo vem sendo divulgado por vários órgãos da imprensa, estaria sendo montada uma grande operação para anular o Supremo Tribunal Federal, tornando-o completamente submisso ao atual chefe do Executivo, mesmo depois do término de seu mandato. Um sinal dessa investida seria a indicação, agora concretizada, do atual advogado-geral da União, Gilmar Mendes, alto funcionário subordinado ao presidente da República, para a próxima vaga na Suprema Corte. Além da estranha afoiteza do presidente -pois a indicação foi noticiada antes que se formalizasse a abertura da vaga-, o nome indicado está longe de preencher os requisitos necessários para que alguém seja membro da mais alta corte do país.
É oportuno lembrar que o STF dá a última palavra sobre a constitucionalidade das leis e dos atos das autoridades públicas e terá papel fundamental na promoção da responsabilidade do presidente da República pela prática de ilegalidades e corrupção.
É importante assinalar que aquele alto funcionário do Executivo especializou-se em "inventar" soluções jurídicas no interesse do governo. Ele foi assessor muito próximo do ex-presidente Collor, que nunca se notabilizou pelo respeito ao direito. Já no governo Fernando Henrique, o mesmo dr. Gilmar Mendes, que pertence ao Ministério Público da União, aparece assessorando o ministro da Justiça Nelson Jobim, na tentativa de anular a demarcação de áreas indígenas. Alegando inconstitucionalidade, duas vezes negada pelo STF, "inventaram" uma tese jurídica, que serviu de base para um decreto do presidente Fernando Henrique revogando o decreto em que se baseavam as demarcações. Mais recentemente, o advogado-geral da União, derrotado no Judiciário em outro caso, recomendou aos órgãos da administração que não cumprissem decisões judiciais.
Medidas desse tipo, propostas e adotadas por sugestão do advogado-geral da União, muitas vezes eram claramente inconstitucionais e deram fundamento para a concessão de liminares e decisões de juízes e tribunais, contra atos de autoridades federais.
Indignado com essas derrotas judiciais, o dr. Gilmar Mendes fez inúmeros pronunciamentos pela imprensa, agredindo grosseiramente juízes e tribunais, o que culminou com sua afirmação textual de que o sistema judiciário brasileiro é um "manicômio judiciário".
Obviamente isso ofendeu gravemente a todos os juízes brasileiros ciosos de sua dignidade, o que ficou claramente expresso em artigo publicado no "Informe", veículo de divulgação do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (edição 107, dezembro de 2001). Num texto sereno e objetivo, significativamente intitulado "Manicômio Judiciário" e assinado pelo presidente daquele tribunal, observa-se que "não são decisões injustas que causam a irritação, a iracúndia, a irritabilidade do advogado-geral da União, mas as decisões contrárias às medidas do Poder Executivo".
E não faltaram injúrias aos advogados, pois, na opinião do dr. Gilmar Mendes, toda liminar concedida contra ato do governo federal é produto de conluio corrupto entre advogados e juízes, sócios na "indústria de liminares".
A par desse desrespeito pelas instituições jurídicas, existe mais um problema ético. Revelou a revista "Época" (22/4/ 02, pág. 40) que a chefia da Advocacia Geral da União, isso é, o dr. Gilmar Mendes, pagou R$ 32.400 ao Instituto Brasiliense de Direito Público -do qual o mesmo dr. Gilmar Mendes é um dos proprietários- para que seus subordinados lá fizessem cursos. Isso é contrário à ética e à probidade administrativa, estando muito longe de se enquadrar na "reputação ilibada", exigida pelo artigo 101 da Constituição, para que alguém integre o Supremo.
A comunidade jurídica sabe quem é o indicado e não pode assistir calada e submissa à consumação dessa escolha notoriamente inadequada, contribuindo, com sua omissão, para que a arguição pública do candidato pelo Senado, prevista no artigo 52 da Constituição, seja apenas uma simulação ou "ação entre amigos". É assim que se degradam as instituições e se corrompem os fundamentos da ordem constitucional democrática.
(publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição de 08/05/2002, p. 3 - o liame é para o site do jornal, com acesso só para assinantes)
quarta-feira, 5 de novembro de 2008
Nós e eles
Amanheci, como a maioria dos bípedes implumados que habita este inusitado planeta, um tanto comovido, um tanto perplexo com a surpresa mais anunciada deste século, a consagração eleitoral do negro Barack Obama. A expectativa criada pelas pesquisas não teve o condão de mitigar uma certa incredulidade geral que se sentiu pelas mais recônditas partes do globo; pelo que de bom a notícia possa vir a trazer - de um lugar onde o mundo acostumou-se, nos últimos anos e sempre, em geral, a esperar as piores barbaridades engendradas pelo gênio – e pelo leve tempero de realismo fantástico à moda estadunidense.
E não publicaria este texto, como de resto tantos outros, não fosse a delicada surpresa sentimental que tive ao ler o texto do fraterno Bruno Ribeiro sobre o sorriso de Obama. Porque eu achava que só eu, para além de todas as expectativas e importâncias e simbolismos, só eu verdadeiramente me enternecia com a lata do senador democrata. E achava isso porque sei bem sabidinho, lá no fundo, que minha ternura vem do fato dele lembrar, inapelavelmente, meu querido e saudosíssimo Vô Dante. Mas eis que vai lá o meu irmãozinho dizendo que encontrou o bom Brilhantina num butiquim campineiro (não conheço o Brilhantina, notem, mas dadas as circunstâncias e a maneira como o velho Bruno no-lo apresenta, dispensa-se para mim a necessidade de quaisquer outras credenciais) e o negrão lhe confidencia que o novo presidente é a cara do seu irmão Jorge! Vejam vocês...
Então, minha gente, peguei-me a pensar que, na verdade, Barack Obama parece mesmo é com a gente. Com a nossa gente, digo. Não só pelo fato de ter estampada no fenótipo uma brejeirice mestiça que nos é tão familiar, mas sobretudo por contrariar em todos os sentidos o estereótipo daquilo que aprendemos todos nós da “periferia do sistema” (deve fazer uns 30 anos que ninguém usa essa expressão...) a identificar como o não-nós: a ditadura implacável dos padrões e interesses deles, a partir do pós-guerra, doesse a quem doesse, passasse por cima do que tivesse que passar, a deixar cicatrizes e gostos amargos pelo mundo afora, sempre com caras e discursos bem parecidos, de Eike a Bush, de Kennedy a Clinton, com as previsíveis variações sobre um mesmo tema
Obama tem outra cara, outro sorriso. Obama tem outros olhos e outro discurso. E não poderia ser diferente, porque tem outra origem e sobretudo outra história. Pergunto-me se teria a mesma brisa que soprou pelas bandas meridionais do continente, consagrando operários-paus-de-arara, cocaleiros e líderes indígenas, a despeito da contrariedade da meia-dúzia mandante de sempre, bafejado as terras ao norte do Rio Grande? E o que mais intriga meu quieto e observante coração: será lá essa inegável redenção simbólica tão prenhe de insuficiências como cá?
Sei que estás em festa, pá
Fico contente...
Guardadas as devidas, gostaria imensamente, desta vez, de não precisarmos vir a reescrever a letra da canção.
quinta-feira, 16 de outubro de 2008
Males necessários
"A UDN não presta e os outros partidos não são melhores. O diabo é que quando não há partidos, tudo fica pior ainda." (Rubem Braga)
quarta-feira, 8 de outubro de 2008
Pra Iemanjá levar
Delcio Carvalho
É melhor jogar no mar
pra Iemanjá levar
É melhor jogar no mar
pra Iemanjá levar
Passado alegre, presente triste
Futuro incerto, o que será
Essa tristeza que dá na gente
E não há meios dela passar?
Tanta coisa que faz chorar
Compreensão, que é bom, não há
É melhor jogar no mar
pra Iemanjá levar
É melhor jogar no mar
pra Iemanjá levar
Tempo de guerra, guerra inclemente
Matando gente de isolação
Irmãos entregues à própria sorte
Chorando a morte de outros irmãos
- cruz credo esse peso tem que acabar!
(azar assim para que guardar?)
É melhor jogar no mar
pra Iemanjá levar
É melhor jogar no mar
pra Iemanjá levar
[para Bruno Ribeiro]
É melhor jogar no mar
pra Iemanjá levar
É melhor jogar no mar
pra Iemanjá levar
Passado alegre, presente triste
Futuro incerto, o que será
Essa tristeza que dá na gente
E não há meios dela passar?
Tanta coisa que faz chorar
Compreensão, que é bom, não há
É melhor jogar no mar
pra Iemanjá levar
É melhor jogar no mar
pra Iemanjá levar
Tempo de guerra, guerra inclemente
Matando gente de isolação
Irmãos entregues à própria sorte
Chorando a morte de outros irmãos
- cruz credo esse peso tem que acabar!
(azar assim para que guardar?)
É melhor jogar no mar
pra Iemanjá levar
É melhor jogar no mar
pra Iemanjá levar
[para Bruno Ribeiro]
quinta-feira, 18 de setembro de 2008
Tiro de Misericórdia mata João Bosco. Pois viva Aldir Blanc!
José Ramos Tinhorão
Em seu quarto LP, intitulado Tiro de Misericórdia (RCA Victor 103.0228), a dupla de compositores João Bosco e Aldir Blanc vem confirmar uma impressão que se reforçaria desde sua estréia, em 1973, até o ponto de uma conclusão definitiva a partir do terceiro disco, Galos de Briga, de 1976: embora o autor das músicas, João Bosco, ganhe as honras do estrelato, o grande artista da dupla é o autor das letras, Aldir Blanc.
De fato, basta ouvir com atenção as 11 faixas deste Tiro de Misericórdia para se perceber, num confronto de qualidades específicas, como o letrista Aldir Blanc é realmente um poeta, e seu pobre parceiro João Bosco não passa de um musiquim.
Experimentem acompanhar a audição de cada faixa separando a letra da música. O que nos mostram os versos de Aldir Blanc? Mostram não apenas um poeta moderno, armado em nível de mestre no artesanato das palavras, mas um observador profundo e fino das realidades brasileira e carioca, que sabe jogar com a linguagem popular para atingir ao refinado e preciso humor de um jogral especialista em escárnios e sirventes. A mesma linha de humor social que, passando por Gil Vicente, viria até a nossa linhagem de satiristas iniciada em Gregório de Matos Guerra e continuada em Martins Pena, em Manuel Antônio de Almeida e em França Júnior.
Assim, vamos ao Gênesis, que abre o LP, e vemos no Natal de mais um Jesus da pobreza malandra brasileira que ele nasce "de teimoso", em meio ao "Barro, ao invés de incenso e mirra", num dia em que "chovia canivete". Em Jogador, poema de estrutura enxuta, evitando até artigos e preposições, descobre-se a intenção descritiva do movimento de jogadores e assistentes de uma partida de sinuca (onde o jogador como que joga sempre a própria vida em cada partida, porque aquela é sua arte e sustento): "Olha a mesa,/Olha o quadro,/Olha firme/No olhar do parceiro.../Olha o taco,/Olha o roubo,/Confere o dinheiro/E não chia/Que bom jogador/Joga o jogo".
Naturalmente, as pessoas criadas em meios refinados, que nunca entraram num bar de sinuca, onde se reúne a humanidade descrita nos contos do livro Malagueta, Perus e Bacanaço, de João Antônio, esses pobres seres de vida empobrecida jamais perceberão em toda sua carga de sugestão o sentido dessa conclusão que esconde o segredo de um hai-kai popular: "Que o bom jogador/Joga o jogo". É o que há de mais orgulhoso e fatalista em matéria de filosofia que toma o jogo como vida: quer dizer, o bom jogador aceita o jogo das circunstâncias, para o melhor ou para o pior, porque, afinal, tem que ser assim porque será sempre assim, e "malandro que é malandro não estrila", e "bom cabrito não berra", e "o que tinha que ser já era".
Vai-se ao Falso Brilhante e encontra-se esta jóia de poesia verdadeira: "O amor/Sempre foi o causador/Da queda da trapezista". Assim como em Tempos do Onça e da Fera se pode descobrir a velha imagem de Orestes Barbosa das "roupas comuns dependuradas" que "pareciam bandeiras agitadas", magicamente fundida na visão do avô que saía de casa envolto no carinho da família de Vila Isabel vestindo "o sol do quarador" e, passando entre as luzes e cores das roupas estendidas, pairava um momento pelo quintal como um duende "tecido em goiabeiras, sabiás,/Cigarras, vira-latas, e um amor...". Ouve-se o Sinal de Caim e depara-se com o achado de "E o revólver não pára,/E o chapéu do mocinho/Não cai da cabeça". Da mesma forma que em Vaso Ruim Não Quebra, com o achado poético dos versos: "Nossa paixão se amarrou/Que nem um nó na garganta" (com palmas especiais para a expressão "que nem"). Ouve-se Plataforma e lá está, a partir do título, toda uma proposta filosófico-política quase anárquica e algo idealista, mas de qualquer forma carregada de intenções de valorização da vida e das pessoas, que se deve querer como "passistas à vontade/que não dancem o minueto" (ditado pelas estruturas alienantes, naturalmente).
Depois desse exercício, recolocando o disco no prato, reouça-se o LP esquecendo as letras de Aldir Blanc e ouvindo as músicas feitas para elas, ou por elas vestidas. E o que soa, então, capaz de comparar-se musicalmente à originalidade e criatividade dos versos?
Para começar, o samba, Vaso Ruim Não Quebra é montado no início do sucesso de carnaval de 1950, Se é Pecado Sambar, de Manoel Santana, gravado por Marlene. Sinal de Caim é um samba-choro de fraseado tão batido nos primeiros anos em que esse gênero foi cultivado (ou seja, a partir de inícios da década de 30), que é possível cantar junto, logo à primeira vez que se ouve. Tempo do Onça e da Fera é um samba-canção da era de influência dos fox-blues cultivado por Dick Farney, a quem deveria ser entregue a interpretação desta música, se não fosse abusar dos contrastes ideológicos. Jogador é um reles sambinha de bossa nova imitando o popular. Tiro de Misericórdia e Gênesis são espécies de macumbas-para-turistas-musicais, no sentido da crítica de Oswald de Andrade. E, finalmente, Falso Brilhante, Bijuterias e Tabelas são boleros, gênero em que, realmente, João Bosco se revela à vontade.
Em conclusão - e considerando que o divórcio já foi aprovado - a melhor coisa que poderia acontecer em benefício da família da música popular brasileira mais respeitável seria a separação amigável entre João Bosco e Aldir Blanc. Afinal, como João Bosco há de concordar, fazer letras para boleros, samba-canções americanizados ou sambinhas com plec-plec de acompanhamento de violão bossa nova qualquer um faz. Por que gastar o imenso talento, sentido poético, de humor e de compreensão humana de Aldir Blanc com tão pouco?
(Jornal do Brasil, 14/01/1978)
Em seu quarto LP, intitulado Tiro de Misericórdia (RCA Victor 103.0228), a dupla de compositores João Bosco e Aldir Blanc vem confirmar uma impressão que se reforçaria desde sua estréia, em 1973, até o ponto de uma conclusão definitiva a partir do terceiro disco, Galos de Briga, de 1976: embora o autor das músicas, João Bosco, ganhe as honras do estrelato, o grande artista da dupla é o autor das letras, Aldir Blanc.
De fato, basta ouvir com atenção as 11 faixas deste Tiro de Misericórdia para se perceber, num confronto de qualidades específicas, como o letrista Aldir Blanc é realmente um poeta, e seu pobre parceiro João Bosco não passa de um musiquim.
Experimentem acompanhar a audição de cada faixa separando a letra da música. O que nos mostram os versos de Aldir Blanc? Mostram não apenas um poeta moderno, armado em nível de mestre no artesanato das palavras, mas um observador profundo e fino das realidades brasileira e carioca, que sabe jogar com a linguagem popular para atingir ao refinado e preciso humor de um jogral especialista em escárnios e sirventes. A mesma linha de humor social que, passando por Gil Vicente, viria até a nossa linhagem de satiristas iniciada em Gregório de Matos Guerra e continuada em Martins Pena, em Manuel Antônio de Almeida e em França Júnior.
Assim, vamos ao Gênesis, que abre o LP, e vemos no Natal de mais um Jesus da pobreza malandra brasileira que ele nasce "de teimoso", em meio ao "Barro, ao invés de incenso e mirra", num dia em que "chovia canivete". Em Jogador, poema de estrutura enxuta, evitando até artigos e preposições, descobre-se a intenção descritiva do movimento de jogadores e assistentes de uma partida de sinuca (onde o jogador como que joga sempre a própria vida em cada partida, porque aquela é sua arte e sustento): "Olha a mesa,/Olha o quadro,/Olha firme/No olhar do parceiro.../Olha o taco,/Olha o roubo,/Confere o dinheiro/E não chia/Que bom jogador/Joga o jogo".
Naturalmente, as pessoas criadas em meios refinados, que nunca entraram num bar de sinuca, onde se reúne a humanidade descrita nos contos do livro Malagueta, Perus e Bacanaço, de João Antônio, esses pobres seres de vida empobrecida jamais perceberão em toda sua carga de sugestão o sentido dessa conclusão que esconde o segredo de um hai-kai popular: "Que o bom jogador/Joga o jogo". É o que há de mais orgulhoso e fatalista em matéria de filosofia que toma o jogo como vida: quer dizer, o bom jogador aceita o jogo das circunstâncias, para o melhor ou para o pior, porque, afinal, tem que ser assim porque será sempre assim, e "malandro que é malandro não estrila", e "bom cabrito não berra", e "o que tinha que ser já era".
Vai-se ao Falso Brilhante e encontra-se esta jóia de poesia verdadeira: "O amor/Sempre foi o causador/Da queda da trapezista". Assim como em Tempos do Onça e da Fera se pode descobrir a velha imagem de Orestes Barbosa das "roupas comuns dependuradas" que "pareciam bandeiras agitadas", magicamente fundida na visão do avô que saía de casa envolto no carinho da família de Vila Isabel vestindo "o sol do quarador" e, passando entre as luzes e cores das roupas estendidas, pairava um momento pelo quintal como um duende "tecido em goiabeiras, sabiás,/Cigarras, vira-latas, e um amor...". Ouve-se o Sinal de Caim e depara-se com o achado de "E o revólver não pára,/E o chapéu do mocinho/Não cai da cabeça". Da mesma forma que em Vaso Ruim Não Quebra, com o achado poético dos versos: "Nossa paixão se amarrou/Que nem um nó na garganta" (com palmas especiais para a expressão "que nem"). Ouve-se Plataforma e lá está, a partir do título, toda uma proposta filosófico-política quase anárquica e algo idealista, mas de qualquer forma carregada de intenções de valorização da vida e das pessoas, que se deve querer como "passistas à vontade/que não dancem o minueto" (ditado pelas estruturas alienantes, naturalmente).
Depois desse exercício, recolocando o disco no prato, reouça-se o LP esquecendo as letras de Aldir Blanc e ouvindo as músicas feitas para elas, ou por elas vestidas. E o que soa, então, capaz de comparar-se musicalmente à originalidade e criatividade dos versos?
Para começar, o samba, Vaso Ruim Não Quebra é montado no início do sucesso de carnaval de 1950, Se é Pecado Sambar, de Manoel Santana, gravado por Marlene. Sinal de Caim é um samba-choro de fraseado tão batido nos primeiros anos em que esse gênero foi cultivado (ou seja, a partir de inícios da década de 30), que é possível cantar junto, logo à primeira vez que se ouve. Tempo do Onça e da Fera é um samba-canção da era de influência dos fox-blues cultivado por Dick Farney, a quem deveria ser entregue a interpretação desta música, se não fosse abusar dos contrastes ideológicos. Jogador é um reles sambinha de bossa nova imitando o popular. Tiro de Misericórdia e Gênesis são espécies de macumbas-para-turistas-musicais, no sentido da crítica de Oswald de Andrade. E, finalmente, Falso Brilhante, Bijuterias e Tabelas são boleros, gênero em que, realmente, João Bosco se revela à vontade.
Em conclusão - e considerando que o divórcio já foi aprovado - a melhor coisa que poderia acontecer em benefício da família da música popular brasileira mais respeitável seria a separação amigável entre João Bosco e Aldir Blanc. Afinal, como João Bosco há de concordar, fazer letras para boleros, samba-canções americanizados ou sambinhas com plec-plec de acompanhamento de violão bossa nova qualquer um faz. Por que gastar o imenso talento, sentido poético, de humor e de compreensão humana de Aldir Blanc com tão pouco?
(Jornal do Brasil, 14/01/1978)
quinta-feira, 11 de setembro de 2008
Ao Poeta, com uma Flor
Respeito, Poeta
no que traz
E derrama na face
e na fala
Fêmea do poder coator
A veneração
pela palavra
Sei-o não adorador
do Artifício
escultor do que vem só
Depois
Sei-o não submisso
aos poderes acolá
Renunciada geração
da dor Toda
- e derrota
Transferida
Sei-o, Poeta
Amante
Na inspiração devota
De um hálito aquele vital
Que de beber Ela nos dá ao
Somente
Sei-o que depôs
seivas
Faz-se
Existência de antes
Vença
escorrendo cevas
Se mente
[para o poeta Edson Coelho de Oliveira]
quarta-feira, 27 de agosto de 2008
Naquela mesa
Recebo na minha caixa postal o anúncio do espetáculo que promete: “Almir Guineto e Dorina no Teatro Rival – dias 27 a 29 de agosto”...
Acometeu-me, como não podia deixar de ser, a vontade de passar a mão no telefone e bater pro Julio Vellozo e instigar: “ vamos tomar o último de quinta para sexta? A gente amanhece lá, dia 29, e fica vagabundeando até a hora do show...”
Mas aí lembrei, incontinenti, mano Julio, que mesmo que os descompromissos sejam, num átimo, novamente possíveis; que o tempo esteja chuvoso e convide para um dia inteirinho no bar e o velho butiquim ressuscite com seus pastéis de camarão, seus chopes mal tirados e sua batida de gengibre; ainda que, por interferência de alguma força sobrenatural, a Ana Simas reapareça nas nossas vidas e nos visite docemente antes do colapso etílico; pensando possível que Almir junte de novo à sua volta malandros e sambistas de todas as estirpes a reverenciá-lo; que reunamos uma vez mais uma mesa com Luis Grande, Barebeirinho, Ary do Cavaco, Pecê Ribeiro e Marquinhos Diniz, que sejam consumidos litros de batida do buteco ao lado e infinitas rodadas de chope, e mesmo que apareça o Delcio Carvalho e a querida Eugenia pra nos visitar; mesmo que percamos o show, de bêbados demais e de felizes demais, embalados pelo espetáculo maior da vida, e ainda assim o teu nome vá parar na capa do disco... Não valerá a pena.
Não valerá a pena, ó Julio, meu irmão querido. Porque naquela mesa estará, como no samba famoso, “faltando ele”. Porque não haverá uma conversa boa e uma bebedeira gigantesca. Porque não haverá ninguém para nos acompanhar à Rodoviária, à meia-noite. Porque nenhuma mágica e nenhuma imaginação poderão aplacar a saudade dele, que está doendo em mim. Cada dia mais. Demais.
segunda-feira, 18 de agosto de 2008
Canto de Obá
Dorival Caymmi e Jorge Amado
Meu pai Xangô
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
Protege teu filho
Obá de Xangô
Seu Obá Otum Onikoyi
Que tanto precisa
Precisa de ti
Pro canto compor
Pra canto cantar
O canto em louvor
Das graças da flor
Da terra, do povo e do mar da Bahia
Meu pai Xangô
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
Protege teu filho
Teu filho Caymmi
Dorival Obá Onikoyi
E Stella Caymmi
A mãe de Dori
De Nana e Danilo
Que é musa e mulher
Que é amor e amiga
Stella estrela
Da minha cantiga amor recebi, ai...
Por ser teu Obá Onikoyi
Por não merecer ser merecedor
De tanta Stella, estrela de amor, ai...
Meu pai Xangô
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
********
Republico, pela primeira vez nos mais de quatro anos e meio de vida deste blogue, texto de 30 de abril de 2004, em homenagem nunca suficiente a um dos pilares fundamentais da canção brasileira. Caymmi chegou ao Orun neste sábado e foi recebido por seu pai Xangô. Pediu benção a mãe Senhora, a Mãe Menininha do Gantois e foi tomar o assento que sempre lhe esteve reservado no conselho supremo dos Obás da música brasileira. São milhares de orfãos de sua imensa sabedoria. Particularmente, Caymmi é uma das principais referências da minha vida. Salve Dorival Caymmi! Salve Obá Otum Onikoyi! Salve o Brasil!
Pedra Noventa

A música popular brasileira está em festa. Gostaria de dizer o Brasil, mas sabemos que infelizmente, em boa parte por obra dos nossos donos, a nação ainda não se apropriou definitivamente de suas riquezas mais preciosas. Mas os que vivemos e respiramos a brisa privilegiada dessa sonoridade que brota do seio desse povo mestiço estamos com o coração exultante. Afinal, um dos mais fascinantes espíritos surgidos na canção brasileira no século passado completa nove décadas, singrando forte e decididamente as águas desse terceiro milênio.
“Dorival é gênio universal”. E não sou eu que digo: “Pegou o violão e orquestrou o mundo”, emendou o maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, para os poucos que por desconhecimento, despreparo ou inacreditável soberba podem ainda pôr-se a duvidar dessa verdade simples. Conta sempre o magistral Sivuca que, pedindo certa vez algumas partituras estrangeiras para aprofundamento de seus estudos de harmonia ao respeitadíssimo maestro Guerra Peixe, esse lhe teria rebatido: “pra quê? Está tudo lá na obra do Caymmi...”.* Depoimentos insuspeitos de quem tem a autoridade que nos falta e obriga a valermo-nos de argumentos mais extensos.
Dorival Caymmi é um dos pilares fundamentais de um processo amplo que fez a música popular brasileira, em pouco mais de um século, transformar-se de um ajuntamento de manifestações de cunho basicamente tradicional, ligadas à dança e aos folguedos, a uma das mais sofisticadas, expressivas e criativas manifestções da música universal. A dialética essencial que faz com que a o “canto de nossa aldeia” possa ser o mais universal dos cantos, segundo a definição clássica de Tolstói, encontra na música brasileira expressão privilegiada na obra de autores como Luiz Gonzaga, Pixinguinha e Noel Rosa (sem falar, por exemplo, num Waldemar Henrique, que acabou por não distender tanto suas influências por força do isolamento histórico a que a Amazônia sempre foi submetida). Esses baluartes são emblematicamente responsáveis pelo processo de integração dos elementos básicos (rítmicos, melódicos, harmônicos, líricos, dinâmicos) presentes nas manifestações de feições fortemente regionais numa música que pudesse assumir um cunho mais propriamente nacional, ser consumida em larga escala via difusão pelos meios de massificação e ser reconhecida mundialmente por seus traços distintivos gerais. Trata-se, pois, de uma especial manifestação de uma necessária sensibilidade para se reconhecer a riqueza dos elementos musicais espalhados pela tradição musical informal, sua forte presença no quadro geral dos referenciais estéticos coletivos do povo brasileiro e uma habilidade ímpar para promover sua indispensável amalgamação no processo mais geral que permitirá que se forme a idéia (ainda que arquetípica) de uma música popular especificamente brasileira.
Se Gonzaga traz o som árido do sertão cratense para o ambiente urbano do Rio de Janeiro a década de 40, gerando o dançabilíssimo baião; se Noel é quem primeiro tem consciência do processo de massificação do samba carioca, colhendo e adaptando as melodias e versos dos compsitores dos morros às necessidades musicais do rádio, do disco e do carnaval que se tranformava; se Pixinguinha condensa e sistematiza a herança riquíssima da tradição do choro, espalhando um padrão por toda a música popular que se gravaria em disco por quase três décadas; Dorival certamente abriu os caminhos para que à música popular fossem nacionalmente incorporados os temas ligados à vida no mar e à cultura afro-brasileira, o som lamentoso das canções praieiras, o ritmo dos baticuns dos terreiros etc., elementos todos que tem sua manifestação mais evidente e emblemática na sua Bahia de tanta importância e representatividade na história e na cultura brasileiras.
Caymmi foi pioneiro, ainda na década de 30, da prática de cantar suas próprias composições, fato que se tornaria corriqueiro somente a partir dos anos 60. Também introduziu definitivamente no repertório musical brasileiro a fórmula “voz e violão”, que viria mais tarde a encontrar em seu confessado discípulo e conterrâneo, João Gilberto, uma das expressões internacionalmente mais reconhecidas do gênio musical brasileiro. Como este, o mestre também fez da sonoridade singular de seu violão uma marca personalíssima de sua música, antecipando em muitos anos a larga utilização de dissonâncias harmônicas que se faria comum com o advento da bossa-nova (com sentido estético diverso, anote-se).
Outro traço singular da obra caymmiana que se incorpora definitivamente ao padrão musical brasileiro é o seu poder de síntese. Suas canções são sintéticas (se conhecem a pequena jóia “Canto de Nanã”, com 4 versos curtos e, no todo, não mais que umas 30 notas, saberão exatamente do que estou falando) sem excessos líricos ou melódicos de nenhuma espécie, numa época em que a música brasileira, embora caminhando em diverso sentido, ainda não de todo se livrara dos dramalhões lítero-musicais alla Catulo da Paixão e das serestas derramadas entoadas pelos dós-de-peito de plantão. E mesmo sua obra é enxuta, não obstante com possivelmente a maior proporção de grandes clássicos da música brasileira que qualquer outro compositor. Não temeria dizer que no caminho que conduz a música popular das modinhas derramadas do século XIX à síntese minimalista de um João Gilberto, o velho Dorival é um claro divisor de águas.
Na década seguinte (40) faz brotar inúmeras canções delicadas, de acompanhamento simples, para se ouvir no recolhimento, quando o rádio e o disco estão sendo invadidos pela sonoridade dos fox-trotes dançantes das big bands estadunidenses popularizados pelo cinema. E, finalmente, nos anos 50, quando o samba-canção ganhará o status de expressão musical oficial da classe média brasileira, criará alguns clássicos imorredouros do gênero, dominando com perfeição os temas românticos e as sonoridades intimistas, marcadamente urbanas, aperfeiçoando e superando como nenhum outro grande autor do gênero os paradigmas “bolerizantes” dos temas e melodias.
Na década de 70, aclamado pelas (hoje já não tão) novas gerações da música popular, Dorival Caymmi vai assumindo o papel que lhe cabe tão bem de grande patriarca dessa família musical que tantos belos frutos gerou. A resistência que alguns inexplicavelmente ainda lhe oferecem viria de seu sucesso? Viria do fato de ter conseguido viver dignamente de seu trabalho artístico e ter freqüentado os círculos da elite econômica e intelectual? Sim, porque inegavelmente, foi intérprete e compositor considerado e aclamado pelos seus contemporâneos de várias gerações, contrariando um paradigma demagógico que a tantos deleita: o do artista incompreendido e marginal.
Mil vezes salve Dorival Caymmi, nosso buda-nagô! Junto minha humilde prece à da Família Caymmi neste dia mágico e sensacional em que a alegria musical não nos cabe no peito, e rogo ao nosso pai Xangô:
Protege teu filho, obá de Xangô
Seu Obá Otum Onikoyi
Que tanto precisa
precisa de ti
Pro canto compor
Pra canto cantar
O canto em louvor
Das graças da flor
Da terra, do povo e do mar da Bahia
...
Protege teu filho,
teu filho Caymmi
Dorival Obá Onikoyi
E Stella Caymmi
A mãe de Dori, de Nana e Danilo
Que é musa e mulher
que é amor e amiga!...
* Fonte: Songbook Dorival Caymmi, Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1994
Meu pai Xangô
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
Protege teu filho
Obá de Xangô
Seu Obá Otum Onikoyi
Que tanto precisa
Precisa de ti
Pro canto compor
Pra canto cantar
O canto em louvor
Das graças da flor
Da terra, do povo e do mar da Bahia
Meu pai Xangô
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
Protege teu filho
Teu filho Caymmi
Dorival Obá Onikoyi
E Stella Caymmi
A mãe de Dori
De Nana e Danilo
Que é musa e mulher
Que é amor e amiga
Stella estrela
Da minha cantiga amor recebi, ai...
Por ser teu Obá Onikoyi
Por não merecer ser merecedor
De tanta Stella, estrela de amor, ai...
Meu pai Xangô
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
********
Republico, pela primeira vez nos mais de quatro anos e meio de vida deste blogue, texto de 30 de abril de 2004, em homenagem nunca suficiente a um dos pilares fundamentais da canção brasileira. Caymmi chegou ao Orun neste sábado e foi recebido por seu pai Xangô. Pediu benção a mãe Senhora, a Mãe Menininha do Gantois e foi tomar o assento que sempre lhe esteve reservado no conselho supremo dos Obás da música brasileira. São milhares de orfãos de sua imensa sabedoria. Particularmente, Caymmi é uma das principais referências da minha vida. Salve Dorival Caymmi! Salve Obá Otum Onikoyi! Salve o Brasil!
Pedra Noventa

A música popular brasileira está em festa. Gostaria de dizer o Brasil, mas sabemos que infelizmente, em boa parte por obra dos nossos donos, a nação ainda não se apropriou definitivamente de suas riquezas mais preciosas. Mas os que vivemos e respiramos a brisa privilegiada dessa sonoridade que brota do seio desse povo mestiço estamos com o coração exultante. Afinal, um dos mais fascinantes espíritos surgidos na canção brasileira no século passado completa nove décadas, singrando forte e decididamente as águas desse terceiro milênio.
“Dorival é gênio universal”. E não sou eu que digo: “Pegou o violão e orquestrou o mundo”, emendou o maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, para os poucos que por desconhecimento, despreparo ou inacreditável soberba podem ainda pôr-se a duvidar dessa verdade simples. Conta sempre o magistral Sivuca que, pedindo certa vez algumas partituras estrangeiras para aprofundamento de seus estudos de harmonia ao respeitadíssimo maestro Guerra Peixe, esse lhe teria rebatido: “pra quê? Está tudo lá na obra do Caymmi...”.* Depoimentos insuspeitos de quem tem a autoridade que nos falta e obriga a valermo-nos de argumentos mais extensos.
Dorival Caymmi é um dos pilares fundamentais de um processo amplo que fez a música popular brasileira, em pouco mais de um século, transformar-se de um ajuntamento de manifestações de cunho basicamente tradicional, ligadas à dança e aos folguedos, a uma das mais sofisticadas, expressivas e criativas manifestções da música universal. A dialética essencial que faz com que a o “canto de nossa aldeia” possa ser o mais universal dos cantos, segundo a definição clássica de Tolstói, encontra na música brasileira expressão privilegiada na obra de autores como Luiz Gonzaga, Pixinguinha e Noel Rosa (sem falar, por exemplo, num Waldemar Henrique, que acabou por não distender tanto suas influências por força do isolamento histórico a que a Amazônia sempre foi submetida). Esses baluartes são emblematicamente responsáveis pelo processo de integração dos elementos básicos (rítmicos, melódicos, harmônicos, líricos, dinâmicos) presentes nas manifestações de feições fortemente regionais numa música que pudesse assumir um cunho mais propriamente nacional, ser consumida em larga escala via difusão pelos meios de massificação e ser reconhecida mundialmente por seus traços distintivos gerais. Trata-se, pois, de uma especial manifestação de uma necessária sensibilidade para se reconhecer a riqueza dos elementos musicais espalhados pela tradição musical informal, sua forte presença no quadro geral dos referenciais estéticos coletivos do povo brasileiro e uma habilidade ímpar para promover sua indispensável amalgamação no processo mais geral que permitirá que se forme a idéia (ainda que arquetípica) de uma música popular especificamente brasileira.
Se Gonzaga traz o som árido do sertão cratense para o ambiente urbano do Rio de Janeiro a década de 40, gerando o dançabilíssimo baião; se Noel é quem primeiro tem consciência do processo de massificação do samba carioca, colhendo e adaptando as melodias e versos dos compsitores dos morros às necessidades musicais do rádio, do disco e do carnaval que se tranformava; se Pixinguinha condensa e sistematiza a herança riquíssima da tradição do choro, espalhando um padrão por toda a música popular que se gravaria em disco por quase três décadas; Dorival certamente abriu os caminhos para que à música popular fossem nacionalmente incorporados os temas ligados à vida no mar e à cultura afro-brasileira, o som lamentoso das canções praieiras, o ritmo dos baticuns dos terreiros etc., elementos todos que tem sua manifestação mais evidente e emblemática na sua Bahia de tanta importância e representatividade na história e na cultura brasileiras.
Caymmi foi pioneiro, ainda na década de 30, da prática de cantar suas próprias composições, fato que se tornaria corriqueiro somente a partir dos anos 60. Também introduziu definitivamente no repertório musical brasileiro a fórmula “voz e violão”, que viria mais tarde a encontrar em seu confessado discípulo e conterrâneo, João Gilberto, uma das expressões internacionalmente mais reconhecidas do gênio musical brasileiro. Como este, o mestre também fez da sonoridade singular de seu violão uma marca personalíssima de sua música, antecipando em muitos anos a larga utilização de dissonâncias harmônicas que se faria comum com o advento da bossa-nova (com sentido estético diverso, anote-se).
Outro traço singular da obra caymmiana que se incorpora definitivamente ao padrão musical brasileiro é o seu poder de síntese. Suas canções são sintéticas (se conhecem a pequena jóia “Canto de Nanã”, com 4 versos curtos e, no todo, não mais que umas 30 notas, saberão exatamente do que estou falando) sem excessos líricos ou melódicos de nenhuma espécie, numa época em que a música brasileira, embora caminhando em diverso sentido, ainda não de todo se livrara dos dramalhões lítero-musicais alla Catulo da Paixão e das serestas derramadas entoadas pelos dós-de-peito de plantão. E mesmo sua obra é enxuta, não obstante com possivelmente a maior proporção de grandes clássicos da música brasileira que qualquer outro compositor. Não temeria dizer que no caminho que conduz a música popular das modinhas derramadas do século XIX à síntese minimalista de um João Gilberto, o velho Dorival é um claro divisor de águas.
Na década seguinte (40) faz brotar inúmeras canções delicadas, de acompanhamento simples, para se ouvir no recolhimento, quando o rádio e o disco estão sendo invadidos pela sonoridade dos fox-trotes dançantes das big bands estadunidenses popularizados pelo cinema. E, finalmente, nos anos 50, quando o samba-canção ganhará o status de expressão musical oficial da classe média brasileira, criará alguns clássicos imorredouros do gênero, dominando com perfeição os temas românticos e as sonoridades intimistas, marcadamente urbanas, aperfeiçoando e superando como nenhum outro grande autor do gênero os paradigmas “bolerizantes” dos temas e melodias.
Na década de 70, aclamado pelas (hoje já não tão) novas gerações da música popular, Dorival Caymmi vai assumindo o papel que lhe cabe tão bem de grande patriarca dessa família musical que tantos belos frutos gerou. A resistência que alguns inexplicavelmente ainda lhe oferecem viria de seu sucesso? Viria do fato de ter conseguido viver dignamente de seu trabalho artístico e ter freqüentado os círculos da elite econômica e intelectual? Sim, porque inegavelmente, foi intérprete e compositor considerado e aclamado pelos seus contemporâneos de várias gerações, contrariando um paradigma demagógico que a tantos deleita: o do artista incompreendido e marginal.
Mil vezes salve Dorival Caymmi, nosso buda-nagô! Junto minha humilde prece à da Família Caymmi neste dia mágico e sensacional em que a alegria musical não nos cabe no peito, e rogo ao nosso pai Xangô:
Protege teu filho, obá de Xangô
Seu Obá Otum Onikoyi
Que tanto precisa
precisa de ti
Pro canto compor
Pra canto cantar
O canto em louvor
Das graças da flor
Da terra, do povo e do mar da Bahia
...
Protege teu filho,
teu filho Caymmi
Dorival Obá Onikoyi
E Stella Caymmi
A mãe de Dori, de Nana e Danilo
Que é musa e mulher
que é amor e amiga!...
* Fonte: Songbook Dorival Caymmi, Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1994
quarta-feira, 23 de julho de 2008
Ai de nós!
Por ocasião da recente repentina sanha de legalidade que se abateu sobre as autoridades brasileiras, ávidas por fazerem cumprir à risca, como todo o mais, a novel legislação sobre as limitações para se dirigir um carro (“lei seca” uma pinóia! A lei não proíbe ninguém de beber: proíbe de dirigir!) , bati os olhos numa notícia que alertava, em tipos incompatíveis: “Comandos policiais visarão os centros da vida boêmia da cidade”. Vida boêmia... Quis o editor, obviamente, referir-se aos bairros com profusão de bares e casas noturnas, muito trânsito, afluxo de pessoas das mais variadas regiões da cidade, turistas, badalação, agito. Em síntese: a negação absoluta e crassa da boemia.
Porque, meus caros, o boêmio é, antes de tudo, um solitário. Não daquela solidão essencial a que todas as almas, incomunicáveis como advertiu o Poeta, estão inapelavelmente condenadas; nem daqueloutra, tão feia, a que são relegados os velhos, os pobres, os órfãos, doentes, desprezados por seus semelhantes, indesejados do convívio das gentes bem falantes e bem comentes, apartados da possibilidade de compartilharem, minimamente que seja, o seu quinhão do sofrimento e da alegria do mundo. A solidão do boêmio é a que dele faz um observador único da vida e do mundo, porque única é a atalaia onde se encerra, como única é a sentinela nela encastelada. Essa solidão incute no boêmio uma fome de ver o mundo e os homens no mundo, que naturalmente é uma fome das ruas e dos bares, porque é nas ruas e nos bares que os homens encenam essa pantomima grotesca, tão de seu agrado, chamada vida.
Então, o boêmio é discreto. Repugnam a ele os lugares barulhentos, onde não se pode ouvir nem falar. Despreza a agitação e a badalação, pois só consegue exercer seu mister na simplicidade e na discrição. Seu lugar por excelência é o bar. Mas o boêmio não é, necessariamente, o bebum. Bebe, claro, porque no bar bebe-se e o beber faz parte do ritual onde se celebra o encontro, o compartilhamento. Conheci grandes boêmios abstêmios, tanto quanto pululam pelos bares, desafortunadamente, os bêbados insuportáveis que não sabem a que vieram. O tempo do boêmio é (ou era) a noite, porque a noite é suave e fresca, adequada a certos temas delicados da vida, e suas sombras sabem temperar as cores às vezes fortes demais do mundo. Mas quando os que se arvoram em donos de todas as coisas chegaram com seus faróis, motores e buzinas, falando alto e alegrando-se em excesso, o boêmio resignadamente passou a fazer do dia um palco para a sua lida e, concomitantemente, um tempo suportável de se viver. Driblando a objetividade canalha da claridade, emprestou-lhe a malícia da ocultação e do desvelamento, essência última da sedução.
O boêmio ama as ruas, mas não mora nelas. O seu flanar é do passante, do peregrino, que tem, se não a consciência, o sentimento da fugacidade das coisas. O boêmio não se demora, não permanece, mesmo que se deixe ficar. Para sintonizar-se com a poesia vagabunda e espontânea das coisas que passam. E o boêmio adora, sobretudo, as mulheres. Porque nelas se exprime em plenitude a essência desse ocultamento, dessa sedução que há na noite e no efêmero. Não as barulhentas, espalhafatosas e que bebem mal. Mas as que se fazem sentir como perfume delicado. As boêmias, claro. Mas não está nas ruas à procura delas. Nem de nada. Porque a essência do seu passar é, precisamente, a não intencionalidade. Se tem um porquê, se há uma expectativa, fenece a imprevisão, a eclosão maravilhosa do súbito; e deixa de ser boemia.
A melancolia do boêmio é a mais funda, mais agônica e, ainda assim, mais indolor. Porque é a melancolia de saber, de alguma forma, que a existência é brusca e sem sentido, explodindo pelos cantos todos do universo em improbabilidades fascinantes, pelas quais ele é apaixonado; mas que não pode – e jamais poderá! – vivenciá-las todas.
terça-feira, 1 de julho de 2008
Aos inimigos, a lei
Pois há hoje dez dias que entrou em vigor a nova lei regulamentadora dos (não) limites de ingestão alcoólica para condutores de veículos. Loas, claro. Não seria eu, que optei já há quase quatro anos pela bebida, em detrimento do volante, a criticar as inquestionáveis razões da medida. Minhas indagações são outras, até porque de razões em geral já há bastante gente a se ocupar.
Pretendendo ilustrar os impactos da nova legislação sobre a vida das cidades, matéria do Estado de São Paulo de ontem, por exemplo relata o caso do condutor de uma camionete que invadiu um posto de gasolina em alta velocidade, possivelmente por ter perdido o controle do veículo após um “racha”, matando e ferindo várias pessoas. Eu, que já perdi gente querida por irresponsabilidades automobilísticas de matizes diversas (inclusive etílicas), e não perdi outros mais por pura providência superior, pergunto: nesta hipótese específica, foi (só) a bebida que matou e feriu quem não tinha nada a ver com o peixe? É imperioso indagar que espécie de gente entra num carro e sai a altíssimas velocidades disputando corridas pelas ruas das cidades! Esse tipo de animal precisa beber, ou sua existência pura e simples já atenta contra a incolumidade alheia? Repita-se, isso não é para desqualificar os acertos das novéis restrições aos motoristas. É para perguntar: qual lei nos socorrerá da imbecilidade absoluta? Quais vergastas deverão ser impingidas, para vermos definitivamente execrados e banidos os padrões de conduta de uma casta criada sob a certeza de que o mundo, as vidas, as ruas, tudo lhes subjaz como propriedade de se pôr e dispor? Responsabilizar sempre a droga, a bebida, as más influências, o sistema, ou o quer que o valha, é sempre achar o diabo no “outro”, no que não está em nós. É fechar os olhos para a face bestial de um determinado tipo de cultura, e também, é claro, para o lado escuro, podre e vil da natureza humana que todos compartilhamos.
A estatística é, por certo, a mais ignara forma do saber humano. E não só pela razão, esta óbvia, de que não reflete nenhum conhecimento em si mesma, dependendo das interpretações e análises que a partir dos dados numéricos se possam tecer – e, conseqüentemente, da inteligência, competência, boa-fé do intérprete-analista. Mas pelo motivo superior de que ela não pode mensurar o não-ser, o não dado, que tantas vezes tem muito mais a nos dizer do que o que salta aos olhos. Pela estatística sabemos que não sei quantos por cento dos crimes violentos cometidos estão direta ou indiretamente associados ao ambiente do bar; que o uso do álcool relaciona-se a tantos por cento dos casamentos e famílias dilacerados; a outros tantos de perda do emprego, ruína pessoal e insanidade. Isso está lá nos prontuários médicos, nos boletins de ocorrência, nos registros de RH. Entretanto, o número que jamais nos será dado conhecer é: a quantos não-crimes está associada a bebida? Quantas vezes o cidadão oprimido no ambiente de trabalho, humilhado no transporte público, exasperado pela dureza da vida, não deixou de fazer uma besteira, porque antes de chegar em casa encontrou dois conhecidos no butiquim e pôde esfriar a cabeça, serenar os ânimos e pensar que ainda existem a camaradagem, a convivência e a fraternidade, isso tudo tomando uma cervejinha? Nenhum levantamento sociológico nos informará quantos cidadãos são salvos da insanidade e do desespero porque podem, vez por outra, encontrar refrigério para as vilezas de um mundo povoado de “doninhos de tudo”, relaxando e confraternizando-se em torno de uma mesa de bar. Alguém poderá contar quantas vezes a “baixa da guarda”, após algumas doses, foi responsável por reconciliações e superações de rixas e antagonismos que a dureza das “razões” jamais permitiria?
A razão tem sua esfera de eficiência e legitimidade no equacionamento de alguns dilemas da existência humana. O problema é quando se passa a tomar suas assertivas como verdades para além de qualquer questionamento, como se todo o amplo espectro do ser fosse abarcável em toda a sua complexidade por uma faculdade humana, por definição limitada. Do fato de que algumas coisas sejam inteligíveis não segue que tudo possa estar sob a égide legisladora da razão humana. O que não-é, o que só pode ser sentido ou percebido por intuição, o que é cognoscível por meio da emoção ou do prazer estético, tudo é fonte de conhecimento e sabedoria e não pode ser esquecido, sob pena de abdicarmos de uma existência plena e feliz, em nome de uma pseudo-segurança limitadora e intrinsecamente medíocre que nos confere a ditadura dos padrões "inquestionáveis" de certa racionalidade.
Parafraseando ao inverso o famoso aforismo de Martin Niemöller, um dos baluartes da resistência anti-nazista na Alemanha, quando vieram buscar os tabagistas, mesmo não sendo fumante, não me calei. No início, para proibir-se o fumo em ambientes fechados, usaram-se razões perfeitamente sólidas e defensáveis, de preocupação com as prerrogativas do não-fumante, de defesa da qualidade dos ambientes públicos, de prevalência do interesse coletivo sobre as liberdades individuais etc. Mas como nem tudo que tem cabeça tem ombro, onde passou um boi, passou a boiada inteira. Sociedades “civilizadíssimas” há em que o cidadão não pode mais fumar trancafiado sozinho dentro de um quarto de hotel, nem isolado numa ilha deserta. O uso do tabaco foi erigido em aberração moral, em desvio de conduta, em crime de lesa-humanidade, de modo que a racionalidade inicial a justificar certas restrições hoje é peça de museu.
Então, meus amigos, atenção. Hoje proíbe-se o álcool para quem vai dirigir. Aplausos. Amanhã, todo um modo de vida em que o ato de beber, mesmo não sendo estritamente essencial, é componente de um intrincado jogo de relações simbólicas e ritualizações inerentes a um específico modo de sociabilidade, estará sob a mira das bestas-feras ditadoras da moral.
terça-feira, 24 de junho de 2008
Chegou a hora da fogueira
Lamartine Babo
Chegou a hora da fogueira
É noite de São João
O céu fica todo iluminado
Fica o céu todo estrelado
Pintadinho de balão
Pensando no caboclo a noite inteira
Também fica uma fogueira
Dentro do meu coração
Quando eu era pequenino
De pé no chão
Eu cortava papel fino
Pra fazer balão
E o balão ia subindo
Para o azul da imensidão
Hoje em dia o meu destino
Não vive em paz
O balão de papel fino
Já não sobe mais
O balão da ilusão
Levou pedra e foi ao chão
sexta-feira, 20 de junho de 2008
Ao Jamelão, os respeitos do Fernando
No sétimo dia da morte do cidadão brasileiro José Bispo Clementino dos Santos, o popular Jamelão
Quando uma figura unânime como Jamelão é convocada para a reunião dos ancestrais, não resta muita coisa para se dizer. Ao contrário do que ressaltou mestre Nei Lopes, não acho que Jamelão teria sido mais reconhecido se seu nome não tivesse tão ligado à história das escolas de samba. É porque o mestre raciocina, como deve ser, pelo lado certo. Quando partem personalidades como Antônio Rago, Canhoto da Paraíba, Darcy da Mangueira, só pra ficar nos recentes, somos nós, as vozes que clamam no deserto, que precisamos assumir nossos pobres púlpitos de caixotes de cebola para nos esgoelarmos em vão pelo que deveria sobrar do Brasil, como memória para a nutrição das gerações vindouras. O incomensurável Jamelão, longe das câmeras globais e das luzes da passarela, seria lembrado com uma notinha de jornal, quando muito, como “o maior intérprete de um certo compositor gaúcho”, como é mesmo o nome? Bem ao contrário, quase tudo já se falou. Falta, como sempre, o que realmente importa.
E o que importa é o reverso do que pretendem os holofotes do xoubiz, que quando miram seus canhões sobre figuras de importância histórica, o fazem segundo a lógica única que conhecem, que é a da mercantilização, da planificação e do rebaixamento de tudo a padrões comerciais. Faltou dizer que Jamelão está entre os nomes que se pode contar nos dedos de uma única mão, a figurar simultaneamente, no círculo máximo dos intérpretes do samba, assim como no olimpo restrito dos mais completos e importantes cantores brasileiros de todos os tempos. Sim, porque escalações certíssimas no primeiro grupo seleto, como Cyro Monteiro, João Nogueira e Jorge Veiga, por exemplo, não apareceriam no segundo. Contrariamente, grandes cantores como Carlos Galhardo e o próprio Francisco Alves teriam dificuldades de serem reconhecidos como sambistas por excelência. Assim, na minha modestíssima, a figura do senhor negro e algo casmurro que desceu ao Orun passados hoje sete dias, fica para a história da música nacional, ao lado de Orlando Silva e Sílvio Caldas, como um dos três maiores cantores brasileiros de todos os tempos. Disse.
Importa ainda – e isso importa demais – dizer que mesmo Jamelão tendo sido tão incensado por quem realmente não tem a menor imporância, JAMAIS se curvou à mentalidadezinha mesquinha daqueles que fizeram por transformar o carnaval das avenidas em um espetáculo para consumo em escalas internacionais. Não gostava de bajulação, de participar de evento, nem de dar entrevista. Sua figura, apesar de tão televisiva e tão popular, não coadunou com os faustões e vìdeoxous da vida. Manteve-se fiel à sua arte e a sua cultura. Nunca negou ser um cantor profissional – mais, aliás: sempre afirmou que só continuava cantando porque precisava ganhar dinheiro para viver. Isso, no entanto, não o impediu de permanecer quase 60 anos fiel à sua escola de fé, bem ao contrário da imensa maioria de seus colegas de ofício. A efígie maiúscula de Jamelão passa para a posteridade, enquanto homem e brasileiro, como exemplo de que profissionalismo não precisa significar venalidade; que popularidade não é sinônimo de vulgarização.
Chega de papo. Peço emprestada a vitrola do meu amigo Felipinho Cereal pra abrir uma exceção e botar pra tocar, aqui no Só dói, na bolacha da vez, o clássico samba-canção de autoria do imenso Lúcio Cardim:
Jamelão - Matriz ou filial

E o que importa é o reverso do que pretendem os holofotes do xoubiz, que quando miram seus canhões sobre figuras de importância histórica, o fazem segundo a lógica única que conhecem, que é a da mercantilização, da planificação e do rebaixamento de tudo a padrões comerciais. Faltou dizer que Jamelão está entre os nomes que se pode contar nos dedos de uma única mão, a figurar simultaneamente, no círculo máximo dos intérpretes do samba, assim como no olimpo restrito dos mais completos e importantes cantores brasileiros de todos os tempos. Sim, porque escalações certíssimas no primeiro grupo seleto, como Cyro Monteiro, João Nogueira e Jorge Veiga, por exemplo, não apareceriam no segundo. Contrariamente, grandes cantores como Carlos Galhardo e o próprio Francisco Alves teriam dificuldades de serem reconhecidos como sambistas por excelência. Assim, na minha modestíssima, a figura do senhor negro e algo casmurro que desceu ao Orun passados hoje sete dias, fica para a história da música nacional, ao lado de Orlando Silva e Sílvio Caldas, como um dos três maiores cantores brasileiros de todos os tempos. Disse.
Importa ainda – e isso importa demais – dizer que mesmo Jamelão tendo sido tão incensado por quem realmente não tem a menor imporância, JAMAIS se curvou à mentalidadezinha mesquinha daqueles que fizeram por transformar o carnaval das avenidas em um espetáculo para consumo em escalas internacionais. Não gostava de bajulação, de participar de evento, nem de dar entrevista. Sua figura, apesar de tão televisiva e tão popular, não coadunou com os faustões e vìdeoxous da vida. Manteve-se fiel à sua arte e a sua cultura. Nunca negou ser um cantor profissional – mais, aliás: sempre afirmou que só continuava cantando porque precisava ganhar dinheiro para viver. Isso, no entanto, não o impediu de permanecer quase 60 anos fiel à sua escola de fé, bem ao contrário da imensa maioria de seus colegas de ofício. A efígie maiúscula de Jamelão passa para a posteridade, enquanto homem e brasileiro, como exemplo de que profissionalismo não precisa significar venalidade; que popularidade não é sinônimo de vulgarização.
Chega de papo. Peço emprestada a vitrola do meu amigo Felipinho Cereal pra abrir uma exceção e botar pra tocar, aqui no Só dói, na bolacha da vez, o clássico samba-canção de autoria do imenso Lúcio Cardim:
Jamelão - Matriz ou filial
sexta-feira, 13 de junho de 2008
Cai, cai, balão
Assis Valente
Cai, cai, balão!
Você não deve subir
Quem sobe muito
Cai depressa sem sentir
A ventania
De sua queda vai zombar
Cai, cai, balão!
Não deixa o vento te levar
Numa noite na fogueira
Enviei a São João
O meu sonho de criança
Num formato de balão
Mas o vento da mentira
Derrubou sem piedade
O balão do meu destino
Da cruel realidade
Atirado pelo mundo
Eu também sou um balão
Vou subindo de mentira
No azul da ilusão
Meu amor foi a fogueira
Que bem cedo se apagou
Hoje vivo de saudade
É a cinza que ficou!
Marcha gravada originalmente
por Francisco Alves e Aurora
Miranda para a Odeon, em 1933
Cai, cai, balão!
Você não deve subir
Quem sobe muito
Cai depressa sem sentir
A ventania
De sua queda vai zombar
Cai, cai, balão!
Não deixa o vento te levar
Numa noite na fogueira
Enviei a São João
O meu sonho de criança
Num formato de balão
Mas o vento da mentira
Derrubou sem piedade
O balão do meu destino
Da cruel realidade
Atirado pelo mundo
Eu também sou um balão
Vou subindo de mentira
No azul da ilusão
Meu amor foi a fogueira
Que bem cedo se apagou
Hoje vivo de saudade
É a cinza que ficou!
Marcha gravada originalmente
por Francisco Alves e Aurora
Miranda para a Odeon, em 1933
quarta-feira, 11 de junho de 2008
Noites de junho
Para quem, como eu, não tem a felicidade de morar no Norte, junho é uma espécie de oásis no deserto que se estende desde a quarta-feira de cinzas até as primeiras vésperas do Natal. Realmente, pra quem é da festa, como o brasileiro, o entre dezembro e fevereiro é um grande desfile de descompromissos, as fatiotas de festas remendadas por retalhos de noites quentes de cerveja e madrugadas. Mas se o resto do ano não consegue ombrear-se em matéria de viver a vida como a gente mais gosta, a grata exceção fica mesmo por conta das festas do chamado “ciclo junino”, que não se restringe a junho – há, inclusive, quem garanta que o termo é originário de “joanino”, por força do ápice das comemorações dar-se na festa de São João – começando timidozinho lá no dia de São José (19 de março), passando pelas festas tradicionais de Corpus Christi e do Divino, para culminar na celebração dos três santos mais festejados: Antônio, João e Pedro.
Se é certo que todo o nosso roteiro festivo anual é marcadamente determinado pelo calendário litúrgico católico – e o Carnaval não é exceção, tendo surgido em função dos quarenta dias de continência que antecedem a Páscoa – o espírito brasileiro, gestado no encontro de torrentes culturais tão diversas, tratou logo de extrapolar os sentidos propriamente religiosos e borrar o traço europeizante. Sem precisar rivalizar com as missas e procissões, o povo logo tratou de fazer a coisa ficar mais animada e foi inventando os bois-bumbás, as congadas, os moçambiques, as quermesses e tudo o mais que fosse de brincar e dançar e cantar e comer e beber. E assim, de norte a sul da nação, a festa de São João, ponto máximo de todo o ciclo festivo, foi se sedimentando como a maior festa popular brasileira.
Ora já ouço daqui os discordantes, empunhando a bandeira do Carnaval. Por certo, haverá nesse um interesse suplementar, em vista do que concerne ao espírito de catarse coletiva e inversões simbólicas de que tanto já se falou. Mas para mim é indubitável que se tomarmos em conta os elementos que fazem uma festa ser tipicamente popular e brasileira, vemos que as louvações aos santos de junho ocupam o primeiro degrau do pódio sentimental instalado no coração tupiniquim. O Carnaval, em verdade, como grande festa de rua, localizou-se por décadas em pólos restritos de grandes cidades como Rio de Janeiro, Recife e Bahia; no mais dos interiores todos, foi sempre mais de salão, ou de um bloquinho aqui ou acolá, para depois instalar-se nos desfiles. Não o São João. Disseminada pelos quatro cantos do país, foi, ao contrário do reinado de Momo, enfraquecida nos grandes centros urbanos, onde tende a manter-se restrita aos ambientes privados, como simples memória folclórica de um sentimento que não está mais vivo. Nos rincões, muito ao contrário, a dança, a comida, o folguedo, o espaço público ocupado ainda são a expressão mais viva da celebração que nega a sucessão indiferenciada dos dia-a-dias, essência maior do que alguém um dia chamou “festa”.
E por dizer tanto do Brasil e de nós é que meu coração banzeia, quando chega São João, de carimbós e bois nortistas, de baiões e sanfonas sertanejas, de quentões e pinhões do Sul, quadrilhas, casamentos, leilões, mastros, bandeiras, pipocas, canjiquinhas, munguzás, foguetórios e balões, muitos balões. O último, vovô começou a fazer, a meu pedido, mas não teve tempo nem forças pra terminar. Esse balão perenemente inacabado é e sempre será o meu coração a vagar, solitário, por imensidões de céus brasileiros, carrregando sonhos e preces, fingido de estrela. Que não se perca por maus ventos. Antes lhe seja dado pousar, apagado, nos braços indulgentes de algum menino.
Se é certo que todo o nosso roteiro festivo anual é marcadamente determinado pelo calendário litúrgico católico – e o Carnaval não é exceção, tendo surgido em função dos quarenta dias de continência que antecedem a Páscoa – o espírito brasileiro, gestado no encontro de torrentes culturais tão diversas, tratou logo de extrapolar os sentidos propriamente religiosos e borrar o traço europeizante. Sem precisar rivalizar com as missas e procissões, o povo logo tratou de fazer a coisa ficar mais animada e foi inventando os bois-bumbás, as congadas, os moçambiques, as quermesses e tudo o mais que fosse de brincar e dançar e cantar e comer e beber. E assim, de norte a sul da nação, a festa de São João, ponto máximo de todo o ciclo festivo, foi se sedimentando como a maior festa popular brasileira.
Ora já ouço daqui os discordantes, empunhando a bandeira do Carnaval. Por certo, haverá nesse um interesse suplementar, em vista do que concerne ao espírito de catarse coletiva e inversões simbólicas de que tanto já se falou. Mas para mim é indubitável que se tomarmos em conta os elementos que fazem uma festa ser tipicamente popular e brasileira, vemos que as louvações aos santos de junho ocupam o primeiro degrau do pódio sentimental instalado no coração tupiniquim. O Carnaval, em verdade, como grande festa de rua, localizou-se por décadas em pólos restritos de grandes cidades como Rio de Janeiro, Recife e Bahia; no mais dos interiores todos, foi sempre mais de salão, ou de um bloquinho aqui ou acolá, para depois instalar-se nos desfiles. Não o São João. Disseminada pelos quatro cantos do país, foi, ao contrário do reinado de Momo, enfraquecida nos grandes centros urbanos, onde tende a manter-se restrita aos ambientes privados, como simples memória folclórica de um sentimento que não está mais vivo. Nos rincões, muito ao contrário, a dança, a comida, o folguedo, o espaço público ocupado ainda são a expressão mais viva da celebração que nega a sucessão indiferenciada dos dia-a-dias, essência maior do que alguém um dia chamou “festa”.
E por dizer tanto do Brasil e de nós é que meu coração banzeia, quando chega São João, de carimbós e bois nortistas, de baiões e sanfonas sertanejas, de quentões e pinhões do Sul, quadrilhas, casamentos, leilões, mastros, bandeiras, pipocas, canjiquinhas, munguzás, foguetórios e balões, muitos balões. O último, vovô começou a fazer, a meu pedido, mas não teve tempo nem forças pra terminar. Esse balão perenemente inacabado é e sempre será o meu coração a vagar, solitário, por imensidões de céus brasileiros, carrregando sonhos e preces, fingido de estrela. Que não se perca por maus ventos. Antes lhe seja dado pousar, apagado, nos braços indulgentes de algum menino.
segunda-feira, 9 de junho de 2008
quinta-feira, 29 de maio de 2008
Torturante ironia
Sílvio Caldas e Orestes Barbosa
Que mágoa neste abandono
Que ânsia, perdi o sono
E vim tristonho cantar
Porque a canção mais aflita
É a forma que há mais bonita
Da gente poder chorar
Tu sobes este barranco
Sujando o vestido branco
Pisando as pedras do chão
Mas sem saber na verdade
Que desde lá da cidade
Tu pisas meu coração
Por ser do morro e moreno
É que eu soluço, é que eu peno
Bebendo meu amargor
Por que me negam querida
Esta alegria da vida
De possuir teu amor?
Que torturante ironia
O amor com categoria
Eu amo e não posso amar...
Porque a mulher que eu adoro
Não mora aqui onde eu moro
Deixem-me, então, soluçar
Valsa originalmente gravada
por Sílvio Caldas para a Odeon,
em 15/06/1935
Que mágoa neste abandono
Que ânsia, perdi o sono
E vim tristonho cantar
Porque a canção mais aflita
É a forma que há mais bonita
Da gente poder chorar
Tu sobes este barranco
Sujando o vestido branco
Pisando as pedras do chão
Mas sem saber na verdade
Que desde lá da cidade
Tu pisas meu coração
Por ser do morro e moreno
É que eu soluço, é que eu peno
Bebendo meu amargor
Por que me negam querida
Esta alegria da vida
De possuir teu amor?
Que torturante ironia
O amor com categoria
Eu amo e não posso amar...
Porque a mulher que eu adoro
Não mora aqui onde eu moro
Deixem-me, então, soluçar
Valsa originalmente gravada
por Sílvio Caldas para a Odeon,
em 15/06/1935
quarta-feira, 28 de maio de 2008
Quase que eu disse
Sílvio Caldas e Orestes Barbosa
Na febre dos meus desejos
Fui à procura de beijos
Em bocas tão desiguais
E agora de beijos farto
Tristonho volto pro quarto
Quero chorar, nada mais...
Sabiam o quanto eu te amava
Sabiam porque eu falava
a todos do meu amor
E logo a vespa da intriga
Originou esta briga
Oh, minha amiga, que horror!
Um coração sem carinho
É galho que perde o ninho
Na fúria do vendaval
E é triste um ninho rolando
E um passarinho cantando
Em busca de um canto igual
Oh, quanta desgraça junta
Toda cidade pergunta
E vai dizendo o que quer
Da mágoa que me devora...
E quase que eu disse agora
O nome dessa mulher
Valsa gravada originalmente
por Sílvio Caldas para a Odeon
em 15/06/1935
Na febre dos meus desejos
Fui à procura de beijos
Em bocas tão desiguais
E agora de beijos farto
Tristonho volto pro quarto
Quero chorar, nada mais...
Sabiam o quanto eu te amava
Sabiam porque eu falava
a todos do meu amor
E logo a vespa da intriga
Originou esta briga
Oh, minha amiga, que horror!
Um coração sem carinho
É galho que perde o ninho
Na fúria do vendaval
E é triste um ninho rolando
E um passarinho cantando
Em busca de um canto igual
Oh, quanta desgraça junta
Toda cidade pergunta
E vai dizendo o que quer
Da mágoa que me devora...
E quase que eu disse agora
O nome dessa mulher
Valsa gravada originalmente
por Sílvio Caldas para a Odeon
em 15/06/1935
terça-feira, 27 de maio de 2008
Serenata
Silvio Caldas e Orestes Barbosa
Dorme, fecha esse olhar entardecente
Não me escutes nostálgico a cantar
Pois não sei se feliz, ou infelizmente
Não me é dado beijando-te acordar...
Dorme, deixa os meus cantos delirantes
Dorme, que eu olho o céu a contemplar
A lua que procura diamantes
Para o teu lindo sono ornamentar
Na serpente de seda dos teus braços
Alguém dorme ditoso sem saber
Que eu vivo a padecer
E que o meu coração feito em pedaços
Vai sorrindo ao teu amor
Mascarado desta dor
No teu quarto de sonho e de perfume
Onde vive a sorrir teu coração
Que é teatro da ilusão
Dorme junto aos teus pés o meu ciúme
Enjeitado e faminto como um cão
Valsa-canção gravada originalmente
por Silvio Caldas para a Victor
em 12/10/1934
Dorme, fecha esse olhar entardecente
Não me escutes nostálgico a cantar
Pois não sei se feliz, ou infelizmente
Não me é dado beijando-te acordar...
Dorme, deixa os meus cantos delirantes
Dorme, que eu olho o céu a contemplar
A lua que procura diamantes
Para o teu lindo sono ornamentar
Na serpente de seda dos teus braços
Alguém dorme ditoso sem saber
Que eu vivo a padecer
E que o meu coração feito em pedaços
Vai sorrindo ao teu amor
Mascarado desta dor
No teu quarto de sonho e de perfume
Onde vive a sorrir teu coração
Que é teatro da ilusão
Dorme junto aos teus pés o meu ciúme
Enjeitado e faminto como um cão
Valsa-canção gravada originalmente
por Silvio Caldas para a Victor
em 12/10/1934
segunda-feira, 26 de maio de 2008
Suburbana
Silvio Caldas e Orestes Barbosa
Olhando o céu me demoro
Num verso triste é que eu choro
Ninguém vê o pranto meu
"Há muita lágrima triste
Que em ser sorriso consiste"
Como o poeta escreveu
Minha linda suburbana
Por trás da veneziana
Vens sorrir desta canção
Com teus lábios de doçuras
Que são tâmaras maduras
Da flora do coração
Zona Norte da cidade
Residência da saudade
Onde nasceu o teu cantor
O teu cantor comovido
Que sonha com teu vestido
E morre por teu amor
Olho as estrelas cansadas
Que são lágrimas doiradas
No lenço azul lá do céu
Estrelas são reticências
Estrelas são confidências
Do meu romance e do teu.
Valsa-canção gravada
originalmente por Silvio Caldas
para a Columbia, em 1937
Olhando o céu me demoro
Num verso triste é que eu choro
Ninguém vê o pranto meu
"Há muita lágrima triste
Que em ser sorriso consiste"
Como o poeta escreveu
Minha linda suburbana
Por trás da veneziana
Vens sorrir desta canção
Com teus lábios de doçuras
Que são tâmaras maduras
Da flora do coração
Zona Norte da cidade
Residência da saudade
Onde nasceu o teu cantor
O teu cantor comovido
Que sonha com teu vestido
E morre por teu amor
Olho as estrelas cansadas
Que são lágrimas doiradas
No lenço azul lá do céu
Estrelas são reticências
Estrelas são confidências
Do meu romance e do teu.
Valsa-canção gravada
originalmente por Silvio Caldas
para a Columbia, em 1937
Arranha-céu
Sílvio Caldas e Orestes Barbosa
Cansei de esperar por ela
Toda noite na janela
Vendo a cidade a luzir
Nesses delírios nervosos
Dos anúncios luminosos
Que são a vida a mentir...
E cada vez que subia
O elevador não trazia
Esta mulher - maldição!
E quando lento gemia
O elevador que descia
Subia o meu Coração
Cansei de olhar os reclames
E disse ao peito não ames
Que o teu amor não te quer
Descansa, fecha a vidraça
Esquece aquela desgraça,
Esquece aquela mulher!
Deitei então sobre o peito
Vieste em sonho ao meu leito
E eu acordei, que aflição...
Pensando que te abraçava
Alucinado apertava
Eu mesmo meu coração
Valsa gravada originalmente por
Sílvio Caldas para a Odeon, em
19/03/1937
Cansei de esperar por ela
Toda noite na janela
Vendo a cidade a luzir
Nesses delírios nervosos
Dos anúncios luminosos
Que são a vida a mentir...
E cada vez que subia
O elevador não trazia
Esta mulher - maldição!
E quando lento gemia
O elevador que descia
Subia o meu Coração
Cansei de olhar os reclames
E disse ao peito não ames
Que o teu amor não te quer
Descansa, fecha a vidraça
Esquece aquela desgraça,
Esquece aquela mulher!
Deitei então sobre o peito
Vieste em sonho ao meu leito
E eu acordei, que aflição...
Pensando que te abraçava
Alucinado apertava
Eu mesmo meu coração
Valsa gravada originalmente por
Sílvio Caldas para a Odeon, em
19/03/1937
sexta-feira, 23 de maio de 2008
O maior de todos

Não que esteja advogando sombra de comparação, ainda que impossível honestamente negar-lhe a decisiva influência. A medida me seria demasiado severa: ninguém, sob este céu anil encimado pelo Cruzeiro, foi mais cantor. Orlando Silva tinha a voz mais bela? Possivelmente, sobretudo pelo que se ouve nos registros realizados entre 1934 e 1942. Depois, sua carreira sabidamente declinou, possivelmente menos abalada pelo comprometimento vocal em si, do que por uma personalidade um tanto acanhada, que talvez se tenha deixado fragilizar pelas luzes (e pela ausência delas, em certo momento) que inevitavelmente se projetam sobre a vida de um artista popular. Francisco Alves foi mais importante para a história da música popular no Brasil? Talvez; pelo momento histórico (era dez anos mais velho), por seu caráter empreendedor, personalidade marcante e imenso carisma pessoal, a aglutinar forças e empresas na consolidação dos mais importantes veículos mercadológicos do nosso produto musical: o rádio e o disco. Carlos Galhardo pode ter sido mais “técnico” e a bossa de Cyro Monteiro insuperável. Mas se fosse possível, num concurso imaginário, atribuir pontuações aos diversos quesitos que importam no julgamento da carreira de um cantor, tenho para mim que Sílvio Caldas faturaria sem dificuldade o “estandarte de ouro”. Senão vejamos.
Em termos de voz, a beleza do timbre e a afinação incontestável falam por si, não havendo um único senão que eu conheça em sua discografia na casa de quatro centenas de fonogramas em 78 rotações, além de quase 20 LP’s. Só isso, que não é a única nem principal medida da grandeza de um intérprete, o coloca muito à frente de cantores como Nelson Gonçalves e o próprio Chico Alves. Se o quesito for repertório, então, a distância vai para vários corpos de vantagem, inclusive em relação a Orlando Silva, que gravou várias peças duvidosas, incluídas versões absolutamente desnecessárias. Diga-se de passagem, enquanto vários cantores recorreram a esse subterfúgio para enfrentar a concorrência crescente dos artistas estrangeiros, sobretudo a partir da década de 40, o “Caboclinho querido” manteve-se aferradamente convicto em sua defesa da canção brasileira por sete décadas a fio. Aliás, falando em longevidade e, sobretudo, regularidade, a excelência do “Seresteiro do Brasil” é digna de nota, observado um declínio no desempenho vocal, compreensivelmente, somente quando já se encontrava na casa das oitenta e tantas primaveras. Quesito versatilidade: Sílvio notabilizou-se como grande intérprete de valsas, fox e canções, no melhor estilo seresteiro, mas sua bossa para interpretar o samba era tamanha que é influência declarada de ícones do gênero, como o próprio Cyro Monteiro e Germano Mathias; despiciendo lembrar as imortais interpretações de marchinhas carnavalescas. Isso tudo para não falar do Sílvio compositor, para valer (não me constam contestações desse fato, ao contrário de muitos intérpretes seus contemporâneos), parceiro do imenso Orestes Barbosa em clássicos absolutos e imorredouros como Chão de Estrelas, Quase que eu disse, Vestido de lágrimas, Arranha-céu entre tantos outros.
Poderia passar a noite falando das qualidades do intérprete ou das proezas de sua carreira assombrosa. Mas os cliques e cravos da vida estão aí, com seus meios-acertos de hábito, a socorrer os ávidos pela factualidade cacete e pela objetividade idiota. Prefiro falar de uma noite, em 1995, no Sesc Pompéia, quando o “Poeta da voz”, do alto de seus grisalhíssimos 87 anos, assombrou a platéia com a lucidez de sua memória de personagem-historiador da música popular brasileira e, sobretudo, pela potência e convicção de sua voz, ainda que nitidamente cansada, a tremer o pequeno teatro a pelo menos meio metro de distância do microfone! Ao peito, galhardo, o “companheiro dileto” com que lhe regalara o presidente Juscelino, que constatei ter mesmo o timbre perfeito da voz de seu coração*. Prefiro lembrar outra noite, talvez 1988, ou 89, uma noite imensa. Fora, eu menino, ver a imensidade do mito no pequenino e histórico palco do Vou Vivendo. Espetáculo terminado, senta-se no andar abaixo o “Trovador das madrugadas”, rodeado do pessoal da casa numa mesa redonda não muito grande. A timidez (minha) e a fama (dele) de uma certa rudeza não me conseguiam impedir de literalmente plantar-me ao lado dos bebentes para, também eu, beber daquelas histórias todas. Foi ali que o ouvi dizer: “Ganhei muito dinheiro nessa vida. Não para ter uma ‘boa velhice’, mas para ser rico pra valer. Só tenho, hoje, minha casa em Atibaia. O resto eu torrei tudinho – graças a Deus! - nas madrugadas. E não me arrependo um segundo!” Ali aprendi que as famosas e inúmeras despedidas foram todas de sincero propósito; as “voltas”, porém - ao contrário do apregoado pelo olhar burro do século, que tudo julgando conforme a si próprio, sempre quis fossem “jogadas de márquetim” do velho seresteiro... - quase todas motivadas pelo rareamento do vil metal; sina que, ironicamente, como se vê, iguala tantos e tantos trabalhadores brasileiros menos ou mais afamados. A determinada altura, notando-me ali parado havia séculos - e fazendo jus à fama (pensei de cara) - vira-se pra mim: “Ô, garoto! Que é que tá fazendo aí plantado que nem um dois de paus”. Gelei. Ia quase me arrancando, quando o gigante emendou: “Pega logo uma cadeira e senta aqui, porra!”. E assim fiz, obediente, até as altas horas da madrugada, depois de muita lição de música e de vida.
Mas agora me dêem licença, que vou ali chamar o vô Dante e o Felipinho Cereal e colocar na vitrola uma velha bolacha com a “Deusa da minha rua”. Deixo por aqui, em honra a seu centenário, minha mais profunda reverência a esse monstro da música brasileira. Ao homem, ao compositor e ao intérprete maior: Sílvio Caldas. Que colecionou tantos epítetos quantas despedidas: "Rouxinol da família ideal", "O Cantor que Valoriza as Palavras", "A voz morena da Cidade". Ou simplesmente, como preferia, “Titio”... O Seresteiro do Brasil. O Caboclinho tão meu querido.
* “Meu companheiro”, valsa-canção de Francisco Alves e Orestes Barbosa, gravada por Sílvio em LP Colúmbia, na década de 70.
quarta-feira, 21 de maio de 2008
O barulho da rua
Como se não bastasse a “civilização do celular”, que bem retratou meu impagável mano-mestre, Bruno Ribeiro. A ordem é aproveitar o “tempo ocioso” para resolver coisas. Resolver... (solver de novo, não?) E, de quebra, ninguém fica sozinho - coisa horrível! Tem sempre um “amigo” à mão pra gente não ter que encarar o vaziozão... (té rimou!)
Como se não bastassem os butiquins infestados de televisores. Não há mais paz. Não há prosa, conversa fiada, bate papo. Onde antes a necessidade da superação das solidões encontradas – o freqüentador do buteco é, antes de tudo, um profissional da solidão -, homens e mulheres falando da vida, desabafando, mentindo, reinventando-se sem formalidades, sem o compromisso do porta-a-fora, hoje autômatos naufragados, passivos de dar dó; comentando, vez por outra, alguma notícia em voz alta. Consigo mesmos.
A praga que ora infesta nossas ruas, nossos ônibus e trens, são os insuportáveis aparelhinhos de ouvir sei-lá-o-quê. T-O-D-O-M-U-N-D-O tem uns fiozinhos pendendo das orelhas. Que diabos tanto eles ouvem? Antes, sei muito bem o que NÃO ouvem! Não ouvem o barulho das ruas, o barulho único e ensurdecedor das ruas, duro e necessário, melodia do nosso delírio coletivo. Não ouvem a piada que o sujeito dois bancos à frente contou para o companheiro de jornada, que não pára de rir. Não ouvem o comentário surreal do invariável bebum do ônibus – e, após, duvidam da sua existência. Não ouvem o operário assobiando pro mulherão que acabou de passar em frente à obra, flash de beleza a iluminar sua lida de concreto. Não ouvem o suspiro de dor da velhinha que se sentou, com dificuldade, ao lado. Não ouvem o amigo que encontra o outro na rua - tanto tempo!- e diz que agora tem mais um filho. Nem a sirene a bramir o desespero de uma vida ameaçada. Não ouvem a história triste. Nem a alegre.
Ora dirão os pascácios e os lorpas, como sempre quer meu bom amigo Fernando Borgonovi, todos irremediavelmente jovens, que as pessoas se defendem. Defendem-se. Taí, exatamente, seu crime. Defendem-se abstratamente e a priori do “outro” que a rua representa, do locus de interação e encontro, negação da privatização dos espaços, essa tão cara à nossa bela civilização. Defendem-se do encontro e do possível, e do contato e do toque que o encontro é capaz de gerar. Defendem-se do suspiro moribundo de um mundo real que ainda teima em sobreviver, por entre as frestas do Grande Simulacro onde paulatinamente nos internamos, todos.
Dirão, também, que há que se aproveitar e ouvir alguma música, alguma arte, antes que desperdiçar à toa os minutos preciosos, bestando sem fazer nada, ou mergulhados na barafunda de ruídos e fumaças. Pois a verdade é que, na ânsia de tanto aproveitar, na gana de não deixar passar, antítese absoluta do carpe diem clássico, tudo se faz e nada se faz. Ouço a música para não estar ali, naquele ônibus lotado e engarrafado no trânsito, na violência e na poluição. Mas também para não ter que ouví-la na intimidade e na solidão, eu-e-ela, sem desculpas de porquê. Ouço a música para não estar ali. Ouço-a ali para não ouví-la, afinal. E de repente a multidão não é mesmo mais do que um arquipélago perdido num mar de nada, separadas as ilhas por mudezas abissais.
Numa Cidade onde a família não janta junta, em que pais e filhos só se reúnem na frente da televisão; num mundo em que o papo-furado desaparece dos butiquins, onde os vizinhos não armam cadeiras nas ruas e os homens e mulheres não mais se reúnem para contar as histórias, trocar as receitas, aprender da vida e do trabalho: se não é na rua, meu Deus, onde mais será possível encontrar esse estranho e maravilhoso ente que atende por “Outro”?
O aprisionamento da audição não-seletiva é reafirmação do esforço da razão e da vontade de “ordenar” a experiência sensível e, ao mesmo tempo, de um domínio acachapante do elemento visual. A visão, o mais “dirigido” dos sentidos, como em nenhum animal mais, domina absolutamente nossa interação com o mundo, determinando nossa orientação, nosso apetite, nosso desejo, nossa libido. E assim nos vamos tornando animais que se relacionam com o entorno através de um único sentido, que só se dirige a escopos pré-determinados - para não dizer “pré-legitimados” - pela razão ordenadora.
E como se não bastassem, pois então, os fiozinhos de amarrar ouvidos, eis que os nossos ônibus e os nossos vagões de trem e as nossas esquinas (e até os banheiros!) estão agora a equipar-se de infinitos televisores de “programações dirigidas”, sem trégua, vinte-e-quatro horas por dia, zilhões de átimos por vida, o apelo incessante ao olhar. Ouvidos amarrados, olhares aprisionados. Atônitos e aparvalhados, (sur)presos diante do auto-retrato antecipado e impiedoso do crime que não cessamos de cometer.
quinta-feira, 15 de maio de 2008
Bella, ciao!
Una mattina mi sono alzato
Oh, bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
Una mattina mi sono alzato
E ho trovato l'invasor
Oh partigiano, portami via
Oh, bella, ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
Oh partigiano, portami via,
Che mi sento di morir
E se io muoio da partigiano
Oh, bella, ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
E se io muoio da partigiano
Tu mi devi seppellir
E seppellire lassù in montagna,
Oh, bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
E seppellire lassù in montagna
Sotto l'ombra di un bel fior
E le genti che passeranno
Oh, bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
E le genti che passeranno
Mi diranno: "Che bel fior ".
È questo il fiore del partigiano,
Oh, bella, ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
È questo il fiore del partigiano
Morto per la libertà!
quarta-feira, 14 de maio de 2008
Fenômeno
Ouvida esses dias no Bar do Palmeirense, no que parei pra tomar um ‘amargo’.
O locutor da TV, ligada, como invariavelmente:
- Gravidez confirmada: o jogador Ronaldo vai ser pai outra vez!
O bebum, do outro lado do balcão, sem levantar a cabeça:
- Engravidou o traveco? Não é à toa que ele é o fenônemo...
quarta-feira, 30 de abril de 2008
Anoiteceu antigamente
“O passado traz consigo um índice misterioso,
que o impele à redenção. Pois não somos tocados
por um sopro do ar que foi respirado antes?
Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de
vozes que emudeceram?”
(Walter Benjamin)
Anoiteceu, hoje, antigamente. E eu, de antigo, estou assim tão goldenbergueano no sentimento e no estilo. Não é simples precisar o que me faz de novo, súbito, um menino olhando a Cidade de janelas bem abertas, aboletado no banco de trás do automóvel de meu pai, as gotas de chuva dispostas no pára-brisa como essas infinitas luzes de natal, “apagando e acendendo em cores” múltiplas e alternadas desse caleidoscópio de emoções.
Espocam os fogos de uma memória sentimental, única a nos transportar impunemente além das cercas do tempo e da impiedade da linha da História, que algum dia alguém pretendeu reta e de mão-única, para morte do sonho e desperança de nossa redenção. Porque se a memória não passa de um museu pessoal de representações por definição apartadas dos obejtos a que se reportam, fundamental, ainda que morta, é na emoção que os instantes preciosos podem renascer e rebrilhar fazendo tudo, novamente, ter sentido. E, como no sonho, o tempo é vencido e uma outra História emerge como trama de múltiplos sentidos, redimidos os arroubos de vida dos grilhões de uma desmascarada sensatez.
Só no devaneio pode-se estar presentemente nos lugares outros e viver as dimensões do não-tempo que permitem aos mortos ressuscitar. Só na emoção os corpos transcendem os seus limites no espaço e se interocupam, e o mesmo pode ser de novo e de novo e sempre. A razão procurou fundar uma consciência transcendental e dialeticamente gerou o tempo a lhe aprisionar em seu fluxo inexorável, infinitamente. O sentido do tempo gera a falta de sentido da vida. Só a emoção e o sonho podem efetivamente deter o curso eterno do rio sempre outro e fundar a individualidade. Porque todos raciocinam da mesma maneira, tempo, espaço, causa, efeito; mas se ninguém sente da mesma maneira, sentir de novo o mesmo, ressentir, é a prova da existência singular. Uma singularidade fundada pelo ressentimento.
E assim, nas luzes da noite refletidas, eu sou, a despeito de tudo, “mesmo que o tempo e a distância digam não”. As insensatezes e as desimportâncias todas fundam a minha existência e me distinguem, muito antes dos meus “grandes feitos”, em geral bastante parecidos com os do meu vizinho. Nascer, morrer, casar, ser promovido, proclamar a república, fazer mil gols é o que nos aproxima. A emoção de cada gol é o que nos distingue. Ter filhos, temos todos. Uma emoção ao lado do filho é absolutamente única. Por isso o nascimento do filho é, ao contrário do que reza o senso, o momento menos importante da vida de um pai. O pai se faz a cada sorriso, a cada palavra, as não ditas antes até das ditas. Um homem se faz cosendo os retalhos de seus sentimentos menos grandiloqüentes, tecendo a colcha que há de deslindar seus desatinos e enganar seu destino fatal.
“Espelho da minha mágoa, meus olhos são poças d’água”. Caminhando entre os restos da cidade chovida, meus mortos, meus filhos, meus ausentes, meu eu, estão todos vivos demais, no mesmo instante. Aqui.
que o impele à redenção. Pois não somos tocados
por um sopro do ar que foi respirado antes?
Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de
vozes que emudeceram?”
(Walter Benjamin)
Anoiteceu, hoje, antigamente. E eu, de antigo, estou assim tão goldenbergueano no sentimento e no estilo. Não é simples precisar o que me faz de novo, súbito, um menino olhando a Cidade de janelas bem abertas, aboletado no banco de trás do automóvel de meu pai, as gotas de chuva dispostas no pára-brisa como essas infinitas luzes de natal, “apagando e acendendo em cores” múltiplas e alternadas desse caleidoscópio de emoções.
Espocam os fogos de uma memória sentimental, única a nos transportar impunemente além das cercas do tempo e da impiedade da linha da História, que algum dia alguém pretendeu reta e de mão-única, para morte do sonho e desperança de nossa redenção. Porque se a memória não passa de um museu pessoal de representações por definição apartadas dos obejtos a que se reportam, fundamental, ainda que morta, é na emoção que os instantes preciosos podem renascer e rebrilhar fazendo tudo, novamente, ter sentido. E, como no sonho, o tempo é vencido e uma outra História emerge como trama de múltiplos sentidos, redimidos os arroubos de vida dos grilhões de uma desmascarada sensatez.
Só no devaneio pode-se estar presentemente nos lugares outros e viver as dimensões do não-tempo que permitem aos mortos ressuscitar. Só na emoção os corpos transcendem os seus limites no espaço e se interocupam, e o mesmo pode ser de novo e de novo e sempre. A razão procurou fundar uma consciência transcendental e dialeticamente gerou o tempo a lhe aprisionar em seu fluxo inexorável, infinitamente. O sentido do tempo gera a falta de sentido da vida. Só a emoção e o sonho podem efetivamente deter o curso eterno do rio sempre outro e fundar a individualidade. Porque todos raciocinam da mesma maneira, tempo, espaço, causa, efeito; mas se ninguém sente da mesma maneira, sentir de novo o mesmo, ressentir, é a prova da existência singular. Uma singularidade fundada pelo ressentimento.
E assim, nas luzes da noite refletidas, eu sou, a despeito de tudo, “mesmo que o tempo e a distância digam não”. As insensatezes e as desimportâncias todas fundam a minha existência e me distinguem, muito antes dos meus “grandes feitos”, em geral bastante parecidos com os do meu vizinho. Nascer, morrer, casar, ser promovido, proclamar a república, fazer mil gols é o que nos aproxima. A emoção de cada gol é o que nos distingue. Ter filhos, temos todos. Uma emoção ao lado do filho é absolutamente única. Por isso o nascimento do filho é, ao contrário do que reza o senso, o momento menos importante da vida de um pai. O pai se faz a cada sorriso, a cada palavra, as não ditas antes até das ditas. Um homem se faz cosendo os retalhos de seus sentimentos menos grandiloqüentes, tecendo a colcha que há de deslindar seus desatinos e enganar seu destino fatal.
“Espelho da minha mágoa, meus olhos são poças d’água”. Caminhando entre os restos da cidade chovida, meus mortos, meus filhos, meus ausentes, meu eu, estão todos vivos demais, no mesmo instante. Aqui.
segunda-feira, 28 de abril de 2008
"Aqueles que estão contra o fascismo sem estar contra o capitalismo, que choramingam sobre a barbárie causada pela barbárie , assemelham-se a pessoas que querem receber sua fatia de assado de vitela, mas não querem que se mate a vitela. Querem comer vitela, mas não querem ver sangue. Para ficarem contentes, basta que o magarefe lave as mãos antes de servir a carne. Não são contra as relações de propriedade que produzem a barbárie, mas são contra a barbárie."
(Brecht)
(Brecht)
quarta-feira, 23 de abril de 2008
Do nosso jeitinho
É sabido – e tenho tantas vezes insistido aqui – que a meia-dúzia que sempre se arvorou em dona do Brasil nunca suportou o povo brasileiro. Não gostam da comida que gostamos, desprezam nosso modo de viver, nossa música, nossa sabedoria, menoscabam nosso jeito de rezar e curar os males do corpo e da alma. É claro que as coisas do povo que nunca toleraram vez por outra entram na moda por um motivo qualquer e aí é um tal de dar-se um jeito de tudo ficar mais “higiênico”, mais branco, menos mestiço – foi assim com o carnaval, a religião, está sendo com o futebol, os butiquins etc. - , mas isso é assunto pra outras conversas. Depreciam de tal modo as culturas nossas tributárias, que mesmo entre os negros que desprezam, julgam os nossos os piores, “bantos primitivos”; nossos índios estão no paleolítico enquanto os d’alhures construíram admiráveis civilizações; os portugueses são a nação mais atrasada da Europa, periferia do sistema, patrimonialistas medievais etc. Usam para nos medir uma medida extrínseca que nada tem a ver conosco e segundo a qual sempre seremos uma versão imperfeita do seu “ideal” importado: nossa democracia é atrasada, falta capitalismo, erudição, instituições deficientes...
Um dos traços mais singulares do povo brasileiro passou, por escamoteamentos ideológicos repisados até a exaustão, de exemplo da nossa brejeirice pacífica e algo gaiata, resistente e original, a uma espécie de pústula moral a ser banida dos projetos civilizatórios da modernidade (branca e capitalista, lógico): o famoso “jeitinho” brasileiro. Porque este sempre foi para nós uma capacidade de, apesar das adversidades, malgrado as impossibilidades decretadas pela conjuntura opressiva, contruir o entendimento, superar o aparentemente insuperável. Na base do “conversando é que a gente se entende”, nos orgulhávamos de uma habilidade de improviso lastreada no pouco apreço às soluções formais pre-determinadas, acreditando que a razoabilidade se constrói numa interação mediada pela atitude de entender e se fazer entendido. Mas os nossos senhores, que naturalmente usam e cuidam de sua condição, não conseguem conviver com essa fluidez embebida de encontro e possibilidade; aferrados às suas certezas, encastelados em sua condição de ditadores das regras auto-perpetuadoras, empedernidos pela lógica da eficiência a serviço da acumulação, trataram de fazer do “jeitinho” um traço de decrepitude de caráter típico dos povos atrasados, que dessa forma jamais poderiam aspirar ao mundo maravilhoso da modernidade e suas benesses.
Escrevia dias atrás sobre a falência da comunicação pela palavra falada. Num mundo que tem horror ao diálogo interpessoal – assim sempre me soou o modo europeu de vida, basta ver dois desconhecidos brasileiros se encontrando em outro país (normalmente se abraçam e comemoram o encontro, como se velhos amigos fossem) e o mesmo se dando com dois alemães... – é necessário ter regras precisas e claras para normatizar todas as situações, de modo que o mínimo espaço haja para a possibilidade de discussão. E mesmo essa, deve-se dar pelas vias institucionais, dentro dos limites formais previstos. Se um vizinho dinamarquês avançar seu muro meio metro sobre o terreno ao lado, ele responderá por isso nas barras dos tribunais, nos estritos termos da legislação. No Brasil, sempre houve a possibilidade, a menos a princípio, de se discutir a solução tomando um café no butiquim da esquina, com boa possibilidade de se deixar pra lá, contanto que o outro possa ficar com as mangas que pendem daquela frondosa mangueira sobre o seu quintal alheio... Ao menos enquanto viveu a palavra.
É por isso, meus caros, que nos desesperam as atendentes de telemárquetim que sempre responderão com seus 15 modelos de frases prêt a porter não importa se Rui Barbosa ou Leonel Brizola estejam a argumentar do outro lado da linha. É por isso que temos tanta dificuldade de aceitar os campeonatos por pontos corridos, onde o melhor vai sagrar-se campeão em 99% dos casos. O gosto pelo improviso, pelo imponderável mora em nosso espírito, faz parte da nossa natureza. A busca pelo desenvolvimento econômico e humano, por uma sociedade mais igualitária com acesso indistinto às utilidades que a modernidade logrou poduzir não pode tomar como padrão único um mundo pré-fabricado, engessado, previsível, sem espaço para a originalidade, para a criação e o improviso, fundamentos da singularidade individual e cultural. Singularidade é “jeito”, habilidade é “jeito”, solução é “jeito”. Quero meu jeitinho de volta!
E é por isso, contrariamente, que no butiquim se desconta cheque, se compra fiado (mesmo e sobretudo com a presença da plaquinha indefectível: “fiado só amanhã”), se deixa recado, se pede o prato assim ou assado, ao gosto do freguês , se decide sobre os destinos da humanidade... Tudo pode, desde que se converse! É por isso que no butiquim todos são irmãos de pratos e copos, mesmo que NUNCA se tenham visto antes. É por isso que no butiquim – e só no butiquim – ainda há jeito. Isto é, nos de verdade, os que ainda sobraram, “redutos últimos da palavra”, como quis o Poeta.
sábado, 19 de abril de 2008
Memória da tribo
Nilson Chaves e Eliakin Rufino
Minha vó me chamou:
"Curumim venha cá
Venha ver como é
O sinal do pajé
Venha cá curumim
Não vá esquecer
Essa tribo é um rio
O destino é correr
Curumim, essa terra
Nunca mais nos pertenceu
Não é de ninguém
Não tem dono
Nem Deus
Curumim venha ver
A panela de barro
O que há pra comer
É um caldo de peixe
Com as sobras do tempo
Cheiro verde, sentimento"
Minha vó me chamou...
Minha vó me chamou:

"Curumim venha cá
Venha ver como é
O sinal do pajé
Venha cá curumim
Não vá esquecer
Essa tribo é um rio
O destino é correr
Curumim, essa terra
Nunca mais nos pertenceu
Não é de ninguém
Não tem dono
Nem Deus
Curumim venha ver
A panela de barro
O que há pra comer
É um caldo de peixe
Com as sobras do tempo
Cheiro verde, sentimento"
Minha vó me chamou...
(imagem: Índia, por Iara Carvalho Szegeri:
colagem sobre papel, 2006)
terça-feira, 15 de abril de 2008
Não agüento
Este espaço nem é para isso, mas confesso que não consigo me conter. O Palmeiras perdeu domingo o primeiro jogo da semi-final do Campeonato Paulista de 2008 com um gol de mão do atacante Adriano. Não há discussão quanto ao fato: as imagens são nítidas e o próprio jogador se justifica dizendo que se o Maradona fez, ele também pode (raciocínio perfeito, claro, sendo el Dieguito um jogadorzinho qualquer e ele o grande imperador, também conhecido como prìncipenico – aboliram o acento grave, mas a situação é grave e eu quero que se dane). Anular a partida? Punir o jogador? Rebaixar o placar para 1 x 1? Balelas gigantescas e ululantes. Futebol é isso, é momento, não é televisão, e eu só estou bravo porque foi contra o meu time. Se fosse a favor, deveria valer dois.
A questão é absolutamente outra. O juiz tem, por óbvio, o direito de não ver (é humano, não é uma câmera acoplada a um computador) e também de ver e errar a interpretação da norma aplicável (se outros juízes fazem isso a torto e a direito depois de analisar questões às vezes por anos, que dirá um cidadão que tem uma fração de segundo para decidir). O QUE O PUTO DESGRAÇADO DO JUIZ NÃO PODE FAZER É DIZER QUE VALIDOU O GOL “PORQUEABOLABATEUINVOLUNTARIAMENTENAMÃODOJOGADORESEFOSSE
OZAGEIRONÃODARIAPÊNALTI”. Aí, meus queridos, deveria não só ser afastado do futebol para sempre, como preso por estelionato, banido do convívio social, deportado para a Sibéria, visto que exerce uma profissão SEM OS MÍNIMOS REQUISITOS que o habilitam para tanto. Não conhece a regra, não ENTENDEU NADA DE NADA DE NADA do nobre esporte ex-bretão, hoje universal, que se joga com os pés. Como, meu Deus, pode o desgraçado fazer uma afirmação dessas e a Federação fingir que nada aconteceu? EQUIVALE, MAIS OU MENOS, A DIZER QUE O JOGADOR ESTAVA IMPEDIDO NA HORA DO GOL, MAS INVOLUNTARIAMENTE!!! Admitisse o erro, admitisse que não viu a bola batendo na mão ESTENDIDA do Adriano e eu guardaria minha raiva estritamente palmeirense entre meus travesseiros. Mas a minha ira é mortal nesse momento porque deixa de ser esmeraldina e se transforma numa revolta cívica monumental e irreprimível.
Meu único consolo é imaginar que A DOSE DE PALHAÇADA QUE SEMPRE DÁ O AR DA GRAÇA NOS JOGOS DECISIVOS ONDE ATUA O SÃO PAULO FUTEBOL CLUBE tenha se esgotado logo no primeiro jogo. Assim espero.
E os que acham que escrevendo em maiúscula parece que estou gritando, estão absolutamente certos.
sexta-feira, 11 de abril de 2008
A manhã ulterior
O quê, meu Deus,
para iluminar a manhã cinzenta?
Qual palavra desarmada
acenderia uma lucerna nessa bruma?
Que notícia para deter tanta garoa?
Qual melodia choraria essa desesperança?
Cisma o sol na própria inconveniência
sobre meus olhos que nublam...
O dia amanheceu para dentro
tragada a luz ao buraco negro
de vãos desforços
Inundam-se as ruas de impossibilidades
brotadas do flanco aberto da Adoração
Que recordação
a silenciar este vazio?
Nenhum auspício
derreterá a brasa ensimesmada
Não há choro
que socorra a disforia perene de insuficiências
Rorate, coeli
Que todos os sóis não aquecerão
Que os olhos não descortinarão os véus da ausência
Não é dentro que chove e faz frio:
é longe
[para Betinha]
quinta-feira, 3 de abril de 2008
Meia palavra
Diz o ditado, para bom entendedor. Não vos preocupeis com deparar neste jardim, perdido entre podas e roçado negligentes, face para baixo como média de pobre, nem sonho de ofender o pudor desta sutilíssima donzela, a perturbar o sono dos filósofos e poetas há tanto. Aquietai-vos.
Para a sabedoria ancestral que herdamos de África, a palavra falada é a mais poderosa forma de transmissão do axé, a força que tudo realiza. Por isso a cultura tradicional africana é essencialmente oral: não pela presunçosamente suposta incapacidade daqueles povos desenvolverem um sistema escrito, mas para preservar a força realizadora e operadora que os ensinamentos milenares encerram. Tanto como para os judeus e para os cristãos primeiros, para quem Deus é “verbo” que existia no princípio; e que pelo verbo fez todas as coisas (Fiat!) e viu que eram boas. Mas não entre nós, claro, tão ciosos de nossa sapiência e tão dependentes dos olhos de não ver. E os sons fizeram-se imagens e pariram a História! Verba volant, scripta manent, ensinaram os latinos o que hoje só os cães parecem entender. A caneta pode ser mais poderosa que a espada? Só mesmo a cegueira crassa de quem tudo supõe poder ver é capaz de descuidar do poder dilacerante da palavra dita, com seu calor, umidade e inflexão capazes de produzir o mundo e destruí-lo.
A palavra é o veículo de conteúdo, significação e axé que vai daquele que a profere ao outro que tem a oportunidade de recebê-la. Encerra sempre uma ampla gama de referências a um universo de significados mais ou menos conscientes e será potencialmente mais poderosa na tarefa de comunicar quanto maiores forem os pontos de contato dos universos referenciais do emissor e do receptor. E o compartilhamento desses referenciais em tese aumenta na medida em que esses tenham vivências culturais convergentes e ainda mais se o meio social em que estiverem inseridos possibilite a existência de espaços de interação social não pré-determinados, vale dizer, onde a permanente repactuação das regras de conduta e dos códigos simbólicos for inerente àquela forma de socialização (nas brincadeiras de criança, por exemplo).
Justamente pelo seu poder avassalador, que encerra tamanha carga de forças e vivências acumuladas, a palavra será perigosa se não for cuidada. Não pode ficar por aí voando, conforme o ensinamento; lançada de uma parte, tem que ser recebida de outra, como passe redondo de pé em pé. Para ser bom entendedor, então, além do cabedal de referências significativas comuns com o emissor, é estritamente necessário o que o Filósofo já chamou de “atitude comunicativa”, e que nós conhecemos como a velha “boa vontade”. Uma ação comunicativa só pode ser bem sucedida se além do conhecimento do código e do compartilhamento de referenciais, emissor e receptor estiverem empenhados na tarefa. Sendo, portanto, uma forma de racionalidade essencialmente dual, seu paradigma de validade não está nas regras formais ou transcendentais que o sujeito pré-estabelece como válidas ou certas ou perfeitas. Pelo contrário, tudo o que é pré-estabelecido como certo, como dado, vai prejudicar a interação. Para que a racionalidade comunicativa se estabeleça, portanto, é requisito que os comunicantes abdiquem de suas ditaduras particulares de significados para a construção de pontos possíveis de entendimento. É preciso que admitam a falibilidade de suas pré-definições.
Ora direis que não vivemos nesse mundo. E é fato. Nosso mundinho ocidental não é feito de abdicações. Ao contrário, é orientado pela lógica do consumo e da acumulação, legitimados por uma razão que opera por exclusões entre o certo e o errado, conforme determinados de antemão. Todos buscam a defesa dos seus interesses, a vitória, a dominação, no campo de batalha que se denominou mercado. Nesse cenário, não há lugar para o entendimento, para a repactuação de definições, para falibilidade, antes somente para a um cálculo de eficiência enquanto adequação entre meios e fins. E onde o entendimento dá lugar a um cálculo instrumental, a palavra não é mais veículo de possibilidade de construção, mas é a arma letal a detonar todos os conflitos. Sem atitude comunicativa, sempre se procurará na palavra percebida as intenções ocultas, as artimanhas veladas, as estratégias de logro e dissimulação, a manipulação e o confronto. Sem entendimento, conflito.
É por isso, meus caros passantes, que tenho, a cada dia, menos vontade de falar. Porque escrever é infinitamente mais seguro! Pode-se parar e pensar e ler e reler. Pode-se deixar para o dia seguinte. Quem pode deter o poder avassalador dessas criaturas poderosas no átimo seguinte ao em que logram evadir-se de nossas bocas? A palavra só é possível onde reina a procura do outro, a compreensão e a consciência da falibilidade. Porque no cenário da guerra universal deflagrada a palavra sempre será a embaixada do inimigo, ao invés de veiculadora das essências mais sutis da alteridade. Se os indivíduos se transformam em feudos a combater isoladamente por suas verdades contra a possibilidade do encontro, enxergando no que vem de fora somente a essência do que não é, onde se albergará a hospitalidade para com a palavra fugidia? Destemperada, andarilha, ela só gerará destruição!
Loucos, os que saem por aí soltando aos ventos esses demônios da discórdia! Porque de construtoras de todas as coisas, as palavras perdem sua capacidade de tudo criar pelo paulatino imerecimento humano de usar esse poder. Mestres que somos em desperdiçar os dons que nos são legados, peritos na arte de escangalhar as preciosidades confiadas à nossa guarda, os seres humanos perdemos a oportunidade de co-participarmos da tarefa criadora do universo, conforme nos foi dado pelos Primeiros Pais. Encastelados em nossas ditaduras soberbas, seguimos gerando a discórdia que nos há de destruir.
E o butiquim será, enfim e sempre, o único reduto possível da palavra, conforme disse o Poeta. Nele – e só nele – ora direis ouvir-me falar.
terça-feira, 1 de abril de 2008
A menina Josephina
Josephina é uma menina.
Conheci-a há muito, muito tempo, quando eu também era menino. Eu deixei de ser menino, mas não Josephina.
Nasceu num 1º de abril, mas não é de mentira.
Sendo muito menina e há muito tempo, Josephina viu muitas coisas na sua longa vida de menina.
Josephina sempre foi a alegria da família. Nenhuma festa tem graça sem ela. Sem os ovos coloridos que ela gosta, na Páscoa; sem a árvore gigante que ela faz questão de enfeitar com velinhas e acender na noite de Natal. Festa é com ela, a Josephina. Quando vê todo mundo junto, a casa cheia e a mesa com muita e muita comida, brilham os olhinhos pequenos e acinzentados de menina.
Josephina tem as bochechas mais gostosas de apertar e as mãos mais macias e geladinhas, mesmo com tanto tanque e tanta roça.
Ela fala assim engraçado, umas palavrinhas bonitinhas... “Semvergonho!”, quando uma outra criança apronta uma coisa que ela acha, assim, de criança. Um dia, no jogo de forca, ela escreveu a palavrinha “barigudo” e as outras crianças que nós éramos demos risada dela.
Josephina parou de ir à escola, porque precisa cuidar dos irmãos mais novos, quatro fora ela. A professora não queria que ela fosse embora, mas ela tinha que cuidar dos irmãos e também tinha que trabalhar. Sempre precisa cuidar – e cuida – de todos. Da Elza, da Gabriella, do Lourenço, do Ernesto, da Hilda, do José grandão e do José Pequeno, da Walburga grande, da Cecília, do Germano, do Frederico, do Fernando, da Cristina, da Paula, da Elizabeth e da Verônica e da Valburga pequena, da Glória, dos filhos da Glória, da Iara e da Rosa.
E porque havia um Oceano esperando por Josephina.
Mas Josephina gosta de ler, de ler e de ler. Trabalha o dia inteirinho, roçando, lavando, cozinhando, cuidando dos bichos e dos meninos; e à noite, em vez de dormir, fica lendo e lendo e lendo. A luz da vela não é muita e o pai de Josephina briga com ela porque vai estragar os olhos. Mas Josephina é a mais teimosa de todas as meninas. Quando o sol já vai raiar, toma um banho gelado e vai fazer o café e vai pra roça e vai cuidar de todo mundo e vai lavar sua roupa.
Josephina me ensinou a gostar de ler e de viajar. Diz que, no fundo, é a mesma coisa. Gosta mais de ler sobre “o costume dos pôvos”. O chapeuzinho é para mostrar como é bonitinho o jeito dela falar. Mas não adianta muito.
Josephina tem um cheirinho de água de colônia. E o quarto secreto de Josephina tem esse cheirinho também. Mas é misturado com o de açúcar e arroz e feijão e óleo de cozinha que ela guarda lá, porque é uma menina que viu a guerra e a fome. E não gosta do frio, nem da guerra, nem da fome. (Pensando melhor, o quarto de Josephina tem cheiro de motor de máquina de costura também.)
Todos tocam a campainha na casa de Josephina. Os mendigos gostam dela. E os cegos, os sem mão, os muito pobres, os doentes. Porque ela sorri para todos. Sempre tem um pedaço de pão e uma xícara de café.
Josephina, como toda menina levada, não gosta de ir à igreja. Ela gosta de jogar cartas (como rouba, a Josephina...!) e fazer palavras cruzadas. Me ensinou a jogar, pra ela ter sempre alguém pra jogar com ela. Me ensinou a jogar sempre para ganhar, mas também me ensinou a perder. E, assim, nós sempre jogamos os jogos mais divertidos. Mamãe não gosta muito, mas a gente joga mesmo assim.
Josephina é menina, mas faz as comidas mais gostosas pra todo mundo comer e fica feliz quando vê todos bem gordinhos como ela. E faz bonecas pra gente brincar e roupas para as bonecas e para nós. Fez até um monte, mas um monte de quadradinhos coloridos, que depois ela ficou costurando uns nos outros até formarem várias mantas coloridas pra cada uma das outras crianças. Quando acabou de costurar todos os quadradinhos, ela ficou cansada e foi embora.
Josephina faz as comidas que todo mundo gosta. Mas ela mesma gosta de café com leite. Hoje mesmo dividi meu café com leite com ela e sei que ela ficou feliz. (Ah! De noite nós vamos dividir uma água tônica.)
Ia contar um segredo de Josephina, mas não vou contar, porque senão não é segredo. Se a Iara pedir, conto no ouvido dela, porque sei que Josephina não vai ficar brava.
Josephina é brava!
Josephina nunca, mas nunca se queixou de nada na vida. Sempre está alegre e ri uma risada gostosa com as mãos na barriga que balança muito quando ela ri: “Non me faça rir...” E segura o barrigão! Só ficou doente uma vez.
Josephina faz, no dia de hoje, 99 anos. Falo com ela todos os dias. Quando a Rosa chora muito e não quer dormir, eu sempre chamo Josephina. E a Rosa se aquieta. Quando a Iara fica dodói, peço pra ela cuidar da Iara. E ela cuida. Faz também hoje treze anos, três meses e cinco dias que eu não consigo enxergá-la, por alguma artimanha sua que ando tentando descobrir.
quarta-feira, 26 de março de 2008
A mais secreta
A existência de sociedades secretas povoa a imaginação dos povos há muitos e muitos séculos. Geralmente associadas a conhecimentos ocultos de caráter iniciático, hierarquias e fraternidades, sua existência é registrada em culturas que vão do oriente extremo ao Novo Mundo, passando por inúmeras nações européias e africanas desde a antigüidade.
No ocidente europeu as mais conhecidas foram a Ordem Rosa Cruz e a Maçonaria, ambas com origens históricas extremamente controvertidas e cercadas de lendas infindas que localizam suas origens em tempos-lugares tão distintos quanto o Egito de Amenophis IV e a Alemanha reformista dos séculos XV e XVI. Seja como for, é fato que a Maçonaria veio dar nas terras tupiniquins desde os tempos da presença da família real portuguesa, tendo exercido enorme influência política durante os reinados dos dois pedros (José Bonifácio como exemplo supremo – um dos mais poderosos políticos da história brasileira e destacada liderança maçônica) e, mais adiante, boa parte da República a dentro. Também do século XIX é a fundação da famosa Bucha, poderosíssima fraternidade surgida despretenciosamente sob as arcadas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da qual fizeram parte nove em cada dez figuras influentes da República Velha (dizem que dos primeiros presidentes brasileiros somente Epitácio Pessoa não teria sido confrade).
De toda sorte, se a Bucha perde grandemente seu poder a partir da era Vargas e a Maçonaria ainda anda por aí tentando suas influências - incomparáveis aos tempos d’antanho - hoje revelarei em primeira mão para a seletíssima confraria dos leitores desta semi-secreta revista os traços impressionantes da presença da mais misteriosa de todas as sociedades conhecidas na história da humanidade: o Primeiro e Único Comando das Moças Bonitas.
Não se sabe como ela opera, nem como se organiza, mas a verdade é que são assombrosos os exemplos de seu altíssimo poder de mobilização. Suas ações coordenadas em larga escala impressionam e até inspiram, dizem, organizações de todas as partes do globo, das beneméritas às criminosas. Enganam-se os que acreditam ser a igreja Católica a instituição mais longeva e disseminada do planeta! E o que é mais impressionante: embora seja inegável a sua presença em escala mundial, malgrado não se encontre praticamente quem não tenha em algum momento tido provas inequívocas de uma presença acachapante, sua atuação atinge graus de discrição inigualáveis, ao ponto de haver quem chegue (sem seriedade, é claro) a duvidar de sua efetiva existência.
Não eu, por certo. Ainda mais porque, por obra de uma qualquer sina insondável, seja um dos mais freqüentemente atingidos pelas históricas ondas de ataques orquestrados. Ignoro as razões ocultas dessa constatação estatística, embora desconfie tenham a ver com o fato de circular renitentemente, ao longo da vida, por áreas-alvo conhecidas (uma das poucas informações confiáveis detidas pelos centros de inteligência) como a Avenida Paulista, o Boulevard 28 de Setembro e as Pontifícias Universidades Católicas daqui e dalhures (despiciendo apontar a coincidência de siglas...).
Os homens, por certo, terão maiores e mais evidentes provas empíricas da presença desta impressionante e poderosa organização, embora muitas vezes os alvos primários sejam também as outras moças - ainda que estas tenham, via de regra, mais capacidade de defesa, por inegável afinidade alquímica. Os objetivos últimos, desses nunca ninguém conseguiu obter a mais remota pista. Não se sabe como elas se comunicam, sob que ordens agem ou a quais comandos atendem, mas o fato é que quando você de súbito se apercebe de uma em atitude inusual, a sina do seu dia está irremediavelmente traçada.
Não há possibilidade de contrapor-se ao seu poder. O pacato cidadão põe-se a caminho do trabalho absolutamente indesejoso de qualquer emoção maior que o “bom dia” do ascensorista; mas ele não tem a menor disposição sobre os destinos de seu humor. No momento em que põe os pés no ônibus monocórdio de todas as manhãs, a primeira lhe sorri, assim com os olhos só. Pronto! Daí por diante, todas (eu disse T-O-D-A-S) por-se-ão a perturbar a sanidade inutilmente esquiva do pobre diabo, sob as mais sutis formas de tortura. “Com que motivos?”, perguntareis. Desconheço. Outro dia típico e particularmente duro é o das não-roupas: braços, colos, coxas, insinuações desbordantes de seios e bundas e lá se vai a manutenção da ordem púbica, como dir-se-ia num butiquim qualquer da Tijuca. NUNCA se trata de uma atitude isolada, importante registrar! São ondas... Às vezes, é por temporadas a fio que manobram. Desaparecem, simplesmente. Os olhos nossos vagam, então, por sete mil mares ansiosos de alguma beleza de se ver. Em vão, não preciso dizer. Escondem-se: nenhum traço, nenhuma esperança. De enlouquecer. Quando vão voltando, Deus nos acuda...
A intenção sincera e humilde dessas mal-traçadas é apenas fazer o registro histórico, visto que pouco há para se fazer e gente muito mais apta vem-se debruçando sobre o problema. Um dos maiores estudiosos do riscado, meu mano Julio Vellozo, assevera que há evidências sutis, mas robustas, de que alguns grandes movimentos da história universal tenham-se desencadeado a partir dessas ações conjuntas em escala planetária, em épocas em que sequer sonhava-se com a decantada globalização. A derrota de Napoleão e a deflagração da Grande Guerra seriam exemplos recentes incontestáveis, segundo insiste. No passado mais distante, estariam por trás tanto da decadência do Império Romano quanto da tomada de Constantinopla pelos Turcos.
E nosso pobre Karl – inocente! – perdendo seu tempo com as contradições entre os modos de produção e as forças produtivas. “Limitações ideológicas”, posso ouvir daqui alguém maldando...
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