“O passado traz consigo um índice misterioso,
que o impele à redenção. Pois não somos tocados
por um sopro do ar que foi respirado antes?
Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de
vozes que emudeceram?”
(Walter Benjamin)
Anoiteceu, hoje, antigamente. E eu, de antigo, estou assim tão goldenbergueano no sentimento e no estilo. Não é simples precisar o que me faz de novo, súbito, um menino olhando a Cidade de janelas bem abertas, aboletado no banco de trás do automóvel de meu pai, as gotas de chuva dispostas no pára-brisa como essas infinitas luzes de natal, “apagando e acendendo em cores” múltiplas e alternadas desse caleidoscópio de emoções.
Espocam os fogos de uma memória sentimental, única a nos transportar impunemente além das cercas do tempo e da impiedade da linha da História, que algum dia alguém pretendeu reta e de mão-única, para morte do sonho e desperança de nossa redenção. Porque se a memória não passa de um museu pessoal de representações por definição apartadas dos obejtos a que se reportam, fundamental, ainda que morta, é na emoção que os instantes preciosos podem renascer e rebrilhar fazendo tudo, novamente, ter sentido. E, como no sonho, o tempo é vencido e uma outra História emerge como trama de múltiplos sentidos, redimidos os arroubos de vida dos grilhões de uma desmascarada sensatez.
Só no devaneio pode-se estar presentemente nos lugares outros e viver as dimensões do não-tempo que permitem aos mortos ressuscitar. Só na emoção os corpos transcendem os seus limites no espaço e se interocupam, e o mesmo pode ser de novo e de novo e sempre. A razão procurou fundar uma consciência transcendental e dialeticamente gerou o tempo a lhe aprisionar em seu fluxo inexorável, infinitamente. O sentido do tempo gera a falta de sentido da vida. Só a emoção e o sonho podem efetivamente deter o curso eterno do rio sempre outro e fundar a individualidade. Porque todos raciocinam da mesma maneira, tempo, espaço, causa, efeito; mas se ninguém sente da mesma maneira, sentir de novo o mesmo, ressentir, é a prova da existência singular. Uma singularidade fundada pelo ressentimento.
E assim, nas luzes da noite refletidas, eu sou, a despeito de tudo, “mesmo que o tempo e a distância digam não”. As insensatezes e as desimportâncias todas fundam a minha existência e me distinguem, muito antes dos meus “grandes feitos”, em geral bastante parecidos com os do meu vizinho. Nascer, morrer, casar, ser promovido, proclamar a república, fazer mil gols é o que nos aproxima. A emoção de cada gol é o que nos distingue. Ter filhos, temos todos. Uma emoção ao lado do filho é absolutamente única. Por isso o nascimento do filho é, ao contrário do que reza o senso, o momento menos importante da vida de um pai. O pai se faz a cada sorriso, a cada palavra, as não ditas antes até das ditas. Um homem se faz cosendo os retalhos de seus sentimentos menos grandiloqüentes, tecendo a colcha que há de deslindar seus desatinos e enganar seu destino fatal.
“Espelho da minha mágoa, meus olhos são poças d’água”. Caminhando entre os restos da cidade chovida, meus mortos, meus filhos, meus ausentes, meu eu, estão todos vivos demais, no mesmo instante. Aqui.
Sinceramente comovido, choro. E mais não digo, porque não é preciso. Gosto de você de maneira imunda.
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