quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Toniquinho Batuqueiro



"Mandei preparar o terreiro
que já vem chegando o dia
Vou encourar meu pandeiro
preparar pra folia
Quando começar o pagode
Pego o pandeiro
caio na orgia" 

(Ditado Antigo)



Hoje é dia de bater tambor. Ontem, 23 de novembro, partiu para a morada dos ancestrais o legendário compositor paulista Toniquinho Batuqueiro.

Nascido em Pau Queimado, na região de Piracicaba, em meio a uma família de cururueiros, macumbeiros e tocadores de tambu, Toniquinho encarna uma espécie de "elo perdido" do samba paulista, uma síntese dos complexos processos de formação que resultaram no samba que se faz na Paulicéia. Carregado dos batuques rurais do interior, veio para Capital morar nos Campos Elíseos, reduto de sambistas. Freqüentou as rodas do Largo da Banana e depois foi engraxate na Praça da Sé, palco das famosas rodas de tiririca e encontro de sambistas das mais variadas procedências. Na década de 70, participou do histórico espetáculo criado por seu grande amigo e parceiro, o dramaturgo Plínio Marcos:  Nas quebradas do mundaréu, ao lado dos também legendários Zeca da Casa Verde e Geraldo Filme.


- Tinha samba no Largo da Sé?
- Nossa Senhora... *


Passou por diversas escolas de samba, como Unidos de Vila Maria e Império do Cambuci, mas afirmava que seu coração pertencia à Unidos do Peruche, que ajudou a fundar junto com o não menos grande Carlão do Peruche. Foi lá, no “Cantinho” feito célebre pela queridíssima Denise - outra grande guerreira que também já está batucando na Aruanda - que o vi pela última vez, há alguns meses, bastante debilitado, mas altivo, grandioso, imponente e elegante como sempre. Ritmista legendário, cantador de belíssimo timbre, viu, conheceu de dentro, participou de literalmente tudo o que aconteceu no samba de São Paulo em cinco décadas. Mas era essa altivez, essa imponência sem soberba, o que mais chamava a atenção no velho mestre. Um homem bonito, eu diria, no alto de seus 80 anos, mesmo alquebrado pela velhice, pela doença e pela cegueira. Talvez mais que qualquer outro que tenha conhecido, via no imenso Toniquinho a encarnação da grandeza do negro,  artífice, sábio e guerreiro.  Arrastado sob vara aos porões imundos onde cruzou o oceano para nos civilizar, continua até hoje agrilhoado às correntes pesadíssimas de um cativeiro que ainda não se aboliu, “livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela”; a despeito, ou ainda talvez, em função disso, continua a construir espetacularmente sua obra libertadora, educando-nos, pela beleza, pela sabedoria e pela luta,  para a compreensão de “que a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais.”


- Como é que te descobriram lá no meio de São Paulo?
- Não descobrem ninguém, não, meu filho. Você é que tem que se descobrir. Tem que sair na hora: abriu a roda, você vai e faz. Sem ofender ninguém, você faz seu nome.


Bato daqui meus tambores em honra do mestre-fundador, que foi se ajuntar aos que o precederam. Faz parte, agora mais ainda, da galeria maravilhosa que reverenciamos em cada roda, em cada pagode, em cada batucada: aqueles que nos legaram o samba – suas melodias, versos, ensinamentos, posturas, valores -, a voz mais pujante do coração brasileiro.

Republico em sua homenagem, a seguir, um texto de cinco anos atrás. Mo jubá!




* trecho do excelente documentário que pode ser conferido na íntegra aqui, sobre o qual não ainda não consegui  encontrar os créditos, mas que vale demais a pena compartilhar. Assim que os tiver, serão inseridos aqui.




Noite


Olho para o céu de noite aberta e sem lua. Afasto-me da varanda onde a luz da arandela teimava em me contrair as pupilas ansiosas das estrelas todas. Desde menino, a mesma angústia. Mas não será, mesmo, pela toda vida esse o desassossego? Um querer, assim, que nunca não se farta?

O Velho tanto nos prevenira, mas quem somos nós a dar ouvidos a esses tantos avisos e cuidados? Quem houvera de ter paciência para aqueles sentidos ocultos, para aquelas tramas todas urdidas a despeito e contra as evidências? Tudo sabíamos, tudo podíamos, nossos corpos e olhos e mentes, era só sair por aí devorando a vida, os saberes, os mistérios. Quais segredos nos freariam a sanha toda? Tola... Quanto sofrimento não seria poupado se tivéssemos, pelo menos, aprendido a olhar.

As estrelas muitas outras agora apareceram. O Cruzeiro, as Três Marias, Orion apresentam-se na sua pujança de luzeiros-guias deste lado debaixo do Equador. Ao longe ouço já os tambores em repiques tantos quantos os infinitos pontos de luz que continuam pipocando, mais e melhor descontraio olhos e ouvidos. Evocação de noites outras. Não parece razoável serem outros os batuques se são mesmas as estrelas... Dizem-me que não estão mais ali, que aqueles ecos mortos são tão só uma visita fugaz do passado há muito esvaído. Tempo é igual ao espaço sobre a velocidade, tão evidente. Bem nos dizia o Velho, enquanto houver olhos para ver e ouvidos para ouvir, é em nós que o passado cintila e ressoa, vivo. Muito vivo.

Noite... Que tudo confunde e iguala nas suas sombras; que tanto consolou as injúrias sofridas sob a claridade violenta que tudo distinguia, separava, ordenava. Que tanto assustou os senhores temerosos da vingança da mão negra justificadora, virtuosa. Os senhores temeram a noite e temeram seus baticuns e seus luzeiros exclusivos dos seus sabedores. E os senhores nos quiseram arrancar a noite, pois os sons estacados de sua voz se fizeram insuportáveis aos ouvidos preparados para assimilar e perpetuar a ordem. Os ouvidos que puderam não ouvir o choro e o ranger de dentes não puderam com o batuques das noites quentes prenunciadoras da Grande Noite Negra de todos os atabaques e todas as estrelas.

Por tudo nos quiseram tirar a Noite; trancaram-nos nos cubículos, arrancaram-nos os couros e madeiras, quiseram impedir que os Nossos nos viessem socorrer. Porque os batuques são os mesmos, como as estrelas, e cintilam e ressoam enquanto tivermos olhos e ouvidos. E o passado que vive em nós faria viver os Nossos, com o Raio e a Espada, com o Vento e a Peste a varrer a injustiça da terra dos homens. Entre nós Eles viveriam e nos arrebatariam da claridade que nos tentou massacrar.

Proibidos, trancados, arrancados, vivemos. E vivemos porque viveu em nós, a cada dia, debaixo da claridade mais usurpadora, a nossa Pequena Noite Íntima. Dentro de cada peito negro ela viveu, e ela era toda ela, em cada um, a Grande Noite. Porque na Pequena Noite cada tambor continuou sempre a bater e cada estrela sempre a brilhar, a despeito de toda humilhação, toda violência, toda injustiça, toda... Claridade.

O Velho ensinou. Mesmo que não tenhamos dado ouvidos, agora podemos saber o quanto das noites todas, das Pequenas e da Grande, continuam a nos querer roubar. Os mesmos de sempre. Mesmo que nos tenham feito professar que as luzes que vemos são estrelas mortas e os batuques choram os que não voltarão, hoje podemos saber que é a mesma Noite que nos continuam a querer roubar. Que a sua voz ainda lhes é insuportável e que não querem que vivam os Nossos. Mas nós continuaremos resistindo, continuaremos gritando nossas Pequenas Noites por entre as claridades das horas todas. Até que a Grande Noite venha.

Os tambores já acordaram as estrelas todas, e o céu é agora uma plenitude na qual meus olhos apredidos podem se deixar. Todos os que tombaram estão lá. Estão vivos e brilham e sua voz se faz ouvir na Noite.



quinta-feira, 17 de novembro de 2011

45 anos sem Sérgio Milliet



Diferentemente do que registra a maioria das fontes disponíveis na grande rede, hoje (e não dia 09 de novembro) completam-se 45 anos da morte do paulistaníssimo, brasileiríssimo, Sérgio Milliet, retratado magistralmente por Tarsila do Amaral no célebre Retrato Azul, de 1923 (reprodução ao lado).

Em tempos em que sinto a cada dia morrer mais – e violentamente – a cidade em que nasci e moro desde sempre, impende invocar a memória do pintor, poeta, crítico, que nas palavras de outro grande baluarte destas tristes plagas, o escritor João Antônio, foi “uma exceção dentro do mundo cultural paulistano. Foi uma vocação e realização boêmia, numa cidade onde qualquer manifestação boêmia ou mal comportada é oficial e acintosamente proibida, foi o protótipo do intelectual e do artista anti-sofisticado num capital brasileira onde o formalismo é quase uma regra-de-ouro.” Como se vê, a coisa vem de longe...

Não deixe de ler aqui o fac-símile do artigo completo, publicado no Jornal do Brasil de 21 de novembro de1966. São Paulo e o Brasil precisam desesperadamente.