sexta-feira, 29 de junho de 2007

O Anjo Guerreiro da Noite




“É um trabalho de teatro. A vida é um palco e a gente se diverte”
(Armando Colacciopo)


Há três dias, por um presente divino, encontrei-o no Ó do Borogodó. Lá ia ele todas as noites, vender seus famosos bichinhos. Do mesmo jeito que no Bar do Cidão, no Bom Motivo, Filial, Sem saída e tantos outros. Como, em tempos passados, no Xodó da Paulista, no Bar Brasil, Vou Vivendo, Clube do Choro, Bar da Virada, todos passados para as páginas viradas da História. Sempre que me encontrava, rigorosamente sempre, mandava uma do repertório do Orlando Silva, nossa paixão comum, do qual era grande conhecedor. Nessa noite não foi diferente:

Esta será a última canção
Que cantarei ao me despedir
Depois verás então
Em breve eu partir...
(1)

Jamais poderia desconfiar do sentido profético dessas palavras. O telefone tocou ontem à noite e a voz da minha amada amiga Roberta Valente já denunciava a tristeza. Nosso querido Armando Colacciopo, o Armando dos bichinhos, sentiu-se mal ao final da mdrugada de ontem. De repente, como só fazem jus os escolhidos, o anjo das nossas madrugadas solitárias bateu asas pra tocar sua flautinha na morada dos Ancestrais.

Foram mais de vinte anos de convivência nas noites perdidas de São Paulo. E posso testemunhar, sem medo, que salvou minha vida em muitas oportunidades. Quantas e quantas vezes, sozinho pelos bares, enchendo a cara por falta de coragem de voltar pra casa, na certeza de que todas as almas conhecidas teriam viajado sem me comunicar, aparecia ele com seu abraço tímido, sua paz infinita estampada no rosto às vezes cansado; sentava, jogava cinco minutos de conversa fora e, cumprida sua angélica missão de me resgatar do naufrágio, seguia na sua empreitada de todas as madrugadas durante mais de trinta anos.

Se a nossa missão, enfim, é resistir, Armando talvez tenha sido o maior. Militante político convicto e incansável, teve seus problemas com a repressão da ditadura militar e buscou salvaguarda entre os hippies da década de 70. Com eles aprendeu que se pode viver de artesanato. Mesmo formado em engenharia naval pela Politécnica da USP, recusou-se durante toda a sua vida a adotar os padrões de vida burguesa que tanto repugnavam aos seus ideais de igualdade e justiça. Nunca teve patrão, sempre fez o que bem quis. “Foi assim desde criança”, lembrou alguém, hoje, ao lado do caixão. Sempre vendendo os bichinhos feitos pela inseparável companheira Vera Bertazonni, andando de ônibus ou de bicicleta, nunca pedindo nada pra ninguém, viveu sua vida, criou os filhos, provou-nos ser possível.

Começou pelos bares dos jardins, depois acompanhou a migração do movimento noturno para Pinheiros e a Vila, mas enquanto o último reduto do lado de lá respirou – o Xodó -, não deixava de dar sua passadinha, “pra depois descer”, como ele sempre dizia. Conheci-o no Bom Motivo, onde dividimos a mêsa em muito fim de noite, jornadas encerradas, em companhia de amigos como Roberto Lapiccirella e Waltinho do violão. Há anos planejava fazer com ele uma entrevista, pra registrar suas histórias. No nosso derradeiro encontro de terça, ainda falei: “A gente se conhece há 20 anos e você nunca foi lá em casa.” Peguei seu telefone e a promessa de levar D. Vera pra conhecer a Rosa. Não deu tempo de nada. Liguei para sua casa, pela primeira vez em vinte anos, pra saber o horário do enterro.

A Vila Madalena veste luto, assim como esta página. Pelas esquinas escuto violões, flautas e cavaquinhos em funeral. Soube que muitos bares ontem baixaram suas portas em homenagem ao seu anjo-guerreiro. Resta a mim, de novo, e sempre, chorar. Como choro escrevendo estas linhas, lembrando estas e tantas outras histórias. Porque a minha solidão cada dia tem menos remédio. Porque o preço da sobrevivência é ter que ver os nossos melhores tombando. Mas a nossa resistência se nutrirá de seu sangue e de seu sopro. E se fortalecerá para que não tenha sido em vão a sua luta.

Vou beber pelas madrugadas a saudade do amigo. Tuli tuli tulá... Chorar em companhia da Cobrinha Azul, do Zé Celso, do Pingüim, do Inconsciente Coletivo, do Marciano Erótico, do Libertadores (o porquinho verde que batizei em 99), tantos e tantos personagens que povoaram minha trajetória boêmia nesses anos todos, hoje órfãos.

“É um trabalho de teatro. A vida é um palco e a gente se diverte, mas hoje eu tenho lidado mais com o povo. Antigamente era mais a classe média, que agora freqüenta lugares fechados. Não tenho mais acesso a eles. Meu público é estudante, ator de teatro, jornalista...”(2)

Fechadas as cortinas, meu velho, você que foi o maior, fique com o aplauso do povo. Do teu povo.


(1) A última canção, fox-canção de Guilherme Augusto Pereira, gravada por Orlando Silva em 1937

(2) Fonte: Guia da Vila


quinta-feira, 28 de junho de 2007

Nós e nós


Deu na coluna Toda Mídia, de Nelson Sá, na Folha de S. Paulo, edição de 26 de junho passado:

“Ontem na Globo, sobre episódio no Rio de Janeiro:
- Grupo espancou e roubou empregada. Os jovens são de classe média alta... Jovens moradores de condomínios de luxo da Barra... Jovens... Os jovens são o centro desta questão perturbadora.
Dias antes na Globo, sobre episódio em São Paulo:
- Quadrilha aterrorizou moradores do Morumbi. Assalto a casa de luxo... Vários bandidos.


No mesmo jornal, mesma edição, caderno Cotidiano, a entrevista do pai de um dos agressores. Os trechos em itálico são as falas do sujeito. Intercaladamente, arrisco uma espécie de “tradução”.

"Não é justo prender cinco jovens que estudam, que trabalham, que têm pai e mãe, e juntar com bandidos que a gente não sabe de onde vieram. Imagina o sofrimento desses garotos. "

Tradução: sabem, sim senhor, de onde vieram, mas não têm coragem de dizer com todas as letras “que vieram dessas favelas aí”. É melhor que a “gente de bem” ignore esses lugares escuros, esses “outros lugares” como um nada informe e desconhecido, bem longe e apartado do nosso mundo fechado de pessoas de caráter.

"Eles cometeram erro? Cometeram. Mas não vai ser justo manter crianças que estão na faculdade, estão estudando, trabalham, presos. É desnecessário, vai marginalizar lá dentro. Foi uma coisa feia que eles fizeram? Foi. Não justifica o que fizeram. Mas prender, botar preso, juntar eles com outros bandidos... Essas pessoas que têm estudo, que têm caráter, junto com uns caras desses?"

Tradução: os nossos crimes, então, são “erros, “coisas feias”, mas nada justifica prender, coitados. Já os crimes “de uns caras desses” são monstruosidades hediondas que merecem o encarceramento de menores, a pena de morte, a prisão perpétua. Caráter é ma coisa com a qual se nasce, que vem de estirpe. Sabemos bem quem é da laia que comete crimes e os de boa cepa que podem "errar", nunca poderíamos confundir as coisas.

"Folha - Mas o sr. acha que eles poderiam estar embriagados ou drogados?
Bruno - Mas é lógico. Uma pessoa normal vai fazer uma agressão dessa? Lógico que não. Lógico que estavam embriagados, lógico que podiam estar drogados.
"

Tradução: meus filhinhos, é claro, são incapazes de uma brutalidade. Nós não somos como “eles”, nós estudamos, trabalhamos, temos caráter. Mas a droga, esse demônio que mora no lado desconhecido e que se apossa de seus corações e suas mentes, os transforma em “outros”, esses sim capazes de inomináveis barabaridades. Os outros. Nós, nunca.

"Eles não são bandidos. Tem que criar outras instâncias para puni-los. Queria dizer à sociedade que nós, pais, não temos culpa nisso."

Aí (e já chega!) a tradução tem que ser um pouco mais longa.

O verdadeiro apartheid cultural sobre o qual se assenta ideologicamente a elite brasileira smpre careceu da rejeição aos padrões populares de sociabilidade para manter sua psiquê social intacta e livre das culpas de outro modo insuportáveis. Historicamente, portanto, assume relevância seu desejo recorrente em se distinguir do “povo”, e assim faz questão de pautar seu modo de vida pelos modelos importados, bem livres da contaminação das formas de vida engendradas pelos “outros”.

O substrato dessa distinção é uma epistemologia capenga, reducionista, que nega as formas tradicionais e milenares de sabedoria em prol de um padrão do discurso dito “racional”, reduzido à operacionalidade lógica que lida fundamentalmente com a distinção de “mesmo” e “outro”: “A” e “não A”. Por outro lado, uma certa moral baseada em um tipo de psicologia maniqueísta e repressora da vontade que opera correspondentemente com a distinção de “desejável” e “não desejável”. Obviamente que esta divisão leva a impasses todas as vezes que as categorias não corresponderem, ou seja que o desejo recair sobre o que pertence à outra banda, ao “outro lado”, o lado obscuro que teoricamente deveria estar completamente apartado de “nós”; toda vez que a esfera daquelas coisas que objetiva e claramente apresentam-se ao entendimento definidas como erradas, abjetas, contrárias à moral, ruins, nefastas etc. transponham a fronteira do “não desejável” para dentro do limite dos “nossos” bastiões de fortaleza e virtude.

Então, a pseudo-razão reducionista, utilitarista da classe dominante remete a uma necessidade de diferenciar suas crenças, convicções, conceitos, desejos etc. daquilo que se nos apresenta como “o horror”. Em último plano, de estabelecer que “aquilo” faz parte de uma esfera, de uma realidade, de uma natureza, de uma substância diferente da nossa. O horror tem que se definir como a negação de nós mesmos, em todos os sentidos. Nosso intelecto que opera por dualidades excludentes não nos permite, pois, em nenhuma dimensão compartilhar pontos de contato com aquele comportamento que repelimos de maneira absoluta. O horror tem que ser, em todos os sentidos, o outro.

O raciocínio da classe dirigente predadora que se apropria do país e se nutre do sangue e do suor da imensa massa dos trabalhadores que constroem esta nação sempre fez questão absoluta de frisar essa distinção: nós e os outros. Sempre se colocou acima e em apartado do “povo”, sempre rejeitou seus modos de falar de vestir, dançar cultuar suas divindades. Esse discurso que assume tons sombrios e bizarros numa situação extrema como a em questão, não é na essência diferente daquele contra o qual não cansamos de nos bater e denunciar: a rejeição das formas singulares e dos padrões culturais do povo brasileiro. Então, se no caso específico a distinção é entre “nós, os de bem” e “eles, os bandidos”, ela só é possível e legitimável ideológicamente porque a sociedade brasileira se construiu lastreada na divisão essencial entre “nós, os letrados, instruídos, de bom gosto (e brancos, católicos etc.)” e os “outros, atrasados, ignorantes, cafonas (e pretos, mestiços, animistas etc.)”. Nesta esteira, todos os males da nação, obviamente, estão relegados “à banda de lá”. É lá que reside a pobreza, a doença, a ignorância, a maldade, o atraso, a indolência.

Portanto, mais grave do que a agressão e a violência em si mesmas, o discurso do pai que procura aplacar a cisão que o episódio evidencia nos fundamentos ideológicos dos nosssos padrões de sociabilidade denuncia gravemente que a sociedade brasileira precisa urgentemente empreender a superação da exclusão econômica, cultural, política, social e ideológica entre “uns” e “outros”. Somente uma razão dialética e dialógica, que não opere exclusivamente pelos padrões lógicos elementares do entendimento, por dualidades excludentes, pode dar conta de um tal conflito que põe em xeque suas próprias estruturas, sua integridade, sua capacidade de enfrentamento das questões mais profundas que se lhe apresentam. Somente uma razão política que se desapegue da crença absoluta nos mecanismos formais de decisão, gestão e administração dos conflitos, e empreenda a mais difícil tarefa na história da nação brasileira, no sentido de promover verdadeiramente o entendimento e a integração.

É claro que essa superação dissolve "perigosamente" as fronteiras entre “A” e “não A”, entre o “eu” e o “resto” (ou “não-eu”), entre o “certo” e o “errado” (ou “não certo”). Proscrita a separação essencial, abre-se a possibilidade de que eu compartilhe pontos substanciais com o horror que me repugna. Em última conseqüência leva à aceitação que o “outro” também faz parte de mim e eu dele, ou, dito de outra forma, aquilo que tanto me repugna, em certa medida faz parte de mim mesmo. Esta consciência de que “o mal” não está fora de nós, mas que deve ter as raízes investigadas nas nossas próprias práticas, convicções, sentimentos e desejos, talvez seja a única saída para os impasses essenciais de nosso tempo. Sem entender o horror, apenas apartando-o definitivamente de nós mesmos, resta-nos (e é mais fácil!) a condenação pura, simples e absoluta. O reconhecimento de que ele é parte da nossa natureza é o único caminho – ainda que tão doloroso - para o entendimento e a superação.

domingo, 24 de junho de 2007

Trama

Quem foi que disse
que o tempo consome a paixão?
Formosura de dama que até
Ulisses seduz...
Serei-a!
Mão secreta alteia a trama
Nada entreluz da costura
E já o nome gestara:
Iara!
Que a vida insuspeita arquiteta
À espreita e disfarçada
sob a teia de lundus marajoaras

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Outras paradas


Domingo passado, enquanto uma banda da cidade parava a fortiori em função do já tradicional desfile junino desta Capital (sobre o qual não comentarei por razões que também aqui não cabe escarafunchar), euzinho, que não sou lagoa pra esfriar bunda de pato, derrotava ampolas “mofadas” bem longe, mas bem longe mesmo dali, em companhia de figuras legendárias desta Cidade verdadeira, que não se rende e se recusa ao travestimento que vivem a lhe querer impingir.

Longe do “carnaval”, da pantomima, do furdunço, o que a gente encontra é a velha camaradagem, rapaziada bebendo na padaria (hábito dos mais paulistas), porque o dono do butiquim também é filho de Deus e a vida não é mole, não. Se não há mesa, não tem problema, porque o pessoal ao lado tá com duas, por que não ceder a que sobra? Apertam-se os copos, “leva aqui, Manoel”, as vazias vão pra o engradado. De cara, uma São Francisco pra garantir a generosidade dos propósitos, a garganta estava mesmo pegando um pouco. Petisco não, porque as senhoras nos aguardam para os respectivos repastos dominicais.

E tome prosa, comandante Deco à minha frente. Ali é só sorriso, é papo da melhor qualidade, é história que não dá vontade de largar. Ao meu lado, a cadeira vazia esperava “Seu” Juracy, que ficou pra trás de conversê com o jornaleiro. Pudera.

“Seu” Juracy foi durante quase três décadas dono da melhor banca de jornal da Avenida Paulista, da qual fui cliente - por só ali encontrar diariamente os jornais dos quatro cantos do Brasil – muito antes de desconfiar que seu filho era o maior amigo-irmão-de-infância da mulher que mudaria minha vida. Conhecido por não se intimidar com as ameças contra os jornaleiros que insistissem em vender ostensivamente jornais da chamada imprensa alternativa, entre os quais o Pasquim e os antológicos Opinião e Movimento (“quanto mais ameaçavam, mais eu pendurava bem na frente, pra todo mundo ver”), protagonizou inacreditáveis histórias. Como nas noites em que tinha quee dormir na calçada, disfarçado de mendigo, barba comprida, esperando a turma que andava explodindo as bancas (lembram?), na companhia fiel do “maior 38 de que se teve notícia na História”, segundo Deco. A confiança no parceiro tem razão de ser: sargento da Marinha de Guerra Brasileira por vinte anos, com 78 primaveras nas costas se gaba: “Ainda hoje, com a vista meio cansada, se eu errar aquele poste ali [a uns 30 metros da mesa onde bebíamos], meto uma bala na cabeça!”

Oposto ao meu corner, o grande carioca Jayme Leão, uma das maiores feras da ilustração brasileira, cartunista e capista consagrado, traço inconfundível que a gente vive a esbarrar de repente em uma página virada em publicações tão diversas como uma Caros Amigos, uma Playboy, uma Você S.A.; ou em capas de dezenas e dezenas de livros que fizeram parte da vida literária da minha geração, como as coleções Vagalume e Para gostar de ler (lembram?), editadas pela Ática. Como cartunista fez parte da geração de craques surgidas a partir dos já citados jornais Opinião e Movimento, ao lado de nomes como Angeli, Laerte, Loredano, os irmãos Caruso, Liberati, Zero, tendo mais tarde colaborado regularmente por alguns anos na Folha de S. Paulo. Empedernido ativista político, teve de exilar-se no Chile onde pôde ver de perto o governo socialista de Allende. Stefânia, Capitão Léo, Deco, os de minha geração que cresceram próximos a ele garantem: foi o exemplo formador de consciência crítica e resistência militante.

Histórias mil, cervejas muitas, bem do outro lado do Tietê. Resistência de verdade, História de verdade, numa Cidade de verdade. Mas há quem prefira a Avenida Paulista. Parada.

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Mulher e cidade Marília

Aroldo e Moraes Moreira


A cidade é assim
A mulher e a cidade
Representam pra mim
Amor e liberdade
A cidade é uma moça
Também não tem idade
É o espírito a força
Da mocidade

Meu amor também é
Toda minha verdade
Meu caminho de fé
De felicidade
A cidade e o mundo
A mulher e a cidade
Meu coração vai fundo
(saque a profundidade...)

Se ando vagabundo
Pelas ruas de noite a vagar
Seguindo tuas ruas em acordes
Para te acordar
E vou buscar no violão
Uma canção que seja aquela
Que abrirá tua janela
E também teu coração

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Anhangüera é resistência

A Internet, sem dúvida nenhuma, vem há tempos revolucionando os processos de comunicação, com as vantagens, desvantagens, problemas e limitações inerentes a qualquer quebra radical de paradigmas. Já me aventurei por essa seara, pra quem se interessar pelo tema, nos primórdios desta revista. Mas a reflexão que me move, hoje, é menos filosófica e mais prática.

Graças ao talento robusto e disposição empedernida de alguns gigantes da minha geração como meu irmão Edu Goldenberg e, mais recentemente, mestre Luiz Antonio Simas e o incansável guerreiro Bruno Ribeiro, os blogues ocuparam um espaço de resistência que pouco a pouco vai urdindo uma teia que, se não dá ainda sinais de que vá mudar o mundo, nos confere um conforto, uma força, uma sensação - quase asbsolutamente ausente em outros metiês - de que a semente de um mundo diferente ainda não foi completamente sufocada. E independentemente dos diversos graus de dedicação, disposição e mesmo, eu diria, de iniciação, pouco a pouco outras vozes vão se juntando, armando seu caixotinho virtual neste gigantesco speaker's corner sem fronteiras propiciado pelos ares ainda libertários da rede mundial de computadores. Poderia citar algumas delas, mas como aou versado em discurso de casamento e velório, “vou me furtar, para não correr o risco de cometer alguma injustiça”...

Hoje, especialmente, faço este breve intróito para recomendar vivamente a leitura de um estreante, que independentemente de ser um grande companheiro no samba, nas noites e na vida, tem vivência, memória, verve e animus narrandi - as quatro qualidades suficientes e necessárias - de um grande contador de histórias: Arthur Favela Tirone, figura habitual nesta e noutras plagas virtuais já citadas. No seu Anhangüera vêm sendo pintadas a doçura e a vileza desta Cidade que se agigantou, com suas cores tão naturais quanto algo desbotadas de poluição e antigüidade, com sua gente verdadeira, sua malandragem meio-bruta, meio-caipira, bem longe dos estereótipos e paradigmas importados que os seus usurpadores teimam em querer enfiar-lhe goela abaixo. Porque essa é a nossa verdade mestiça de guaianás acaboclados e negros oprimidos! Ali estão presentes o butiquim vagabundo, o futebol de várzea, as rodas de samba, a barafunda destas ruas de inigualável sotaque!

E vamos em frente, que as trincheiras estão cavadas e nós temos soldados destemidos e munição pesada, ainda que o inimigo seja mais numeroso e tão desleal. Porque a resistência também está plantada nesta Terra da Garoa. Tem nome de diabo velho e mora na Barra Funda!