terça-feira, 19 de abril de 2005

Exportação Brasileira

Nilson Chaves e Joãozinho Gomes


Um índio da nossa tribo
Arriscou entrar no mato
Foi caçar alguma coisa
Pra matar a sua fome
E a companhia estrangeira
Avistando o movimento
Apagou sua memória
Lhe caçou com um tiro só

Só deram conta que o bicho
Não era onça nem lontra
Quando uma lady inglesa
Se queixou da pele estranha

Depois de muito cochicho
E muito disse me disse
Notaram que o tal casaco
Gelava o corpo da dama

Um índio da nossa tribo
Que fareja longe um ardil
Descuidou-se na caçada
Virou casaco de frio

quinta-feira, 7 de abril de 2005

Sergipe


Lá pela altura dos meus dezesseis anos, já era dono de uma bagagem bem considerável no que se referia às coisas da música popular brasilieira e relativamente iniciado no ambiente boêmio-musical quando meu pai, percebendo um certo talento meu para a coisa, apresentou-me a um velho boteco do centro de São Paulo, bem ali na zona das boates, na Rua Santa Isabel. E no velho Pena D'Ouro (que todo o mundo só chamava de "Pena Dourada", nunca entendi bem por quê) quem capitaneava a função, literalmente de segunda a segunda, era um maravilhoso setecordista e cantor, amigo de papai havia bem umas duas décadas, a quem ele chamava "irmão branco".

Músico autodidata, compensava com paixão e dedicação sacerdotais o que pudesse lhe faltar da teoria ou da técnica, assim como a voz rouca, quase chorosa, curtida no sereno e na cachaça, sobrava no sentimento o que claudicasse na afinação. Figuraça conhecidíssima nos círculos da boemia musical, o velho Sergipe comandava aquele furdunço diuturnamente freqüentado por sambistas (salve Jorge Costa!), músicos, jogadores de futebol (apareciam com freqüência o velho Dorval, o Rubens Feijão e o Getúlio "Gegê da cara grande", lateral-direito do São Paulo), policiais, mulheres da noite, todos na estrita desincumbência desse ônus que pesa sobre todo aquele contaminado pelo vírus incurável da boemia. Até porque o velho França, ajudado pela D. Marlene, proprietários do local, faziam questão de garantir o "ambiente de família".

E assim o era, e não precisa dizer que fiz carreira por lá. Sergipe, impressionado com o meu domínio sobre todo aquele baú de velhas serestas empoeiradas, de onde a cada semana eu tirava uma raridade pra seu deleite, adotou aquele menino abusado e curioso como discípulo, afilhado e companheiro. "É uma criança..." derramava-se admirado, debulhando baixarias em seu surradíssimo sete cordas, enquanto eu cantava um samba da década de 30, do auge dos meus dezoito anos. Papai ausente, "tio preto" ensinou-me muito, mas muito mesmo, sobre a noite, a boemia, a música, a vida enfim, nos papos intermináveis à espera do amanhecer, pra eu voltar pras Perdizes e ele lá pro Camargo Velho. Tinha um coração maior que o mundo, o negrão, pai de uns onze filhos com umas seis ou sete mulheres diferentes. E como bebia, meu Deus... Com ele corri os butecos todos, conheci os músicos, as putas e os leões de chácara da boca-do-luxo, virei o princepezinho do Pena Dourada, protegido dos graçons e das cafetinas. Com ele comecei, de verdade, a cantar e a beber.

A inexorável decadência do centro da cidade de São Paulo foi-se consumando absolutamente na virada da década de 80 para 90, no que foi acompanhado pelo bar. Clientes minguando, a boemia mudando de endereço (pra onde exatamente, não sei até hoje...), o bom mocismo politicamente correto entrando em moda, inflamando o animus reclamandi dos vizinhos. Sintonizado visceralmente com tudo aquilo, o velho Sergipe também foi acabando. Diabético, hipertenso e com pronunciados sintomas de falência hepática, foi-se afastando progressivamente das noites no comando da função, o que acentuou a perda do charme do lugar e, conseqüentemente, do interesse dos clientes. Agüentaram aos trancos e barrancos até os idos de 1992, mais ou menos. Depois, o bar ainda virou uma espécie de lanchonete, ainda sob o comando dos mesmos donos, onde vez por outra eu ainda encontrava o velho, ou pelo menos sabia notícias dele.

Foi assim que em 1998, no meu aniversário, vi-o pela última vez. Localizei-o, convidei para uma noitada em memória dos velhos tempos e ele aceitou, mesmo bem doente, não podendo beber nem guaraná diet. Chamei também papai, que veio de Belo Horizonte, sem que nenhum dos dois soubesse da presença do outro. Foi assim que, de surpresa, reuni os "irmãos" pela última vez, regados a muita emoção, lembranças e histórias que desaguaram num porre homérico e coletivo do qual nem o meu velho preto escapou.

Depois disso a Marlene morreu, o França voltou pro Ceará conforme prometia há séculos e o bar virou um restaurante por quilo, desses medonhos que funcionam só de dia. Estive lá há uns seis meses, ninguém jamais ouviu falar de Pena Dourada. Perdi o velho Sergipe de vista até a semana passada, quando soube que o velho malandro Kazinho, de quem falou recentemente neste espaço meu irmãozinho Caio Silveira Ramos, também mora há muitos anos lá pras bandas do Camargo Velho. Foi através dele que eu soube, anteontem, que meu tio preto dormiu pra sempre há uns três anos.

Fica aqui, pois, esta saudosa e prosaica elegia boêmia em memória dessa figura humana maravilhosa, grande músico e grande coração, meu mestre nesse ofício indeclinável da noite, da música e da cachaça. Meu companheiro, meu amigo. Meu querido Tio Preto.