quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Naquela mesa


Recebo na minha caixa postal o anúncio do espetáculo que promete: “Almir Guineto e Dorina no Teatro Rival – dias 27 a 29 de agosto”...

Acometeu-me, como não podia deixar de ser, a vontade de passar a mão no telefone e bater pro Julio Vellozo e instigar: “ vamos tomar o último de quinta para sexta? A gente amanhece lá, dia 29, e fica vagabundeando até a hora do show...”

Mas aí lembrei, incontinenti, mano Julio, que mesmo que os descompromissos sejam, num átimo, novamente possíveis; que o tempo esteja chuvoso e convide para um dia inteirinho no bar e o velho butiquim ressuscite com seus pastéis de camarão, seus chopes mal tirados e sua batida de gengibre; ainda que, por interferência de alguma força sobrenatural, a Ana Simas reapareça nas nossas vidas e nos visite docemente antes do colapso etílico; pensando possível que Almir junte de novo à sua volta malandros e sambistas de todas as estirpes a reverenciá-lo; que reunamos uma vez mais uma mesa com Luis Grande, Barebeirinho, Ary do Cavaco, Pecê Ribeiro e Marquinhos Diniz, que sejam consumidos litros de batida do buteco ao lado e infinitas rodadas de chope, e mesmo que apareça o Delcio Carvalho e a querida Eugenia pra nos visitar; mesmo que percamos o show, de bêbados demais e de felizes demais, embalados pelo espetáculo maior da vida, e ainda assim o teu nome vá parar na capa do disco... Não valerá a pena.

Não valerá a pena, ó Julio, meu irmão querido. Porque naquela mesa estará, como no samba famoso, “faltando ele”. Porque não haverá uma conversa boa e uma bebedeira gigantesca. Porque não haverá ninguém para nos acompanhar à Rodoviária, à meia-noite. Porque nenhuma mágica e nenhuma imaginação poderão aplacar a saudade dele, que está doendo em mim. Cada dia mais. Demais.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Canto de Obá

Dorival Caymmi e Jorge Amado


Meu pai Xangô
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai

Protege teu filho
Obá de Xangô
Seu Obá Otum Onikoyi
Que tanto precisa
Precisa de ti
Pro canto compor
Pra canto cantar
O canto em louvor
Das graças da flor
Da terra, do povo e do mar da Bahia

Meu pai Xangô
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai

Protege teu filho
Teu filho Caymmi
Dorival Obá Onikoyi
E Stella Caymmi
A mãe de Dori
De Nana e Danilo
Que é musa e mulher
Que é amor e amiga
Stella estrela
Da minha cantiga amor recebi, ai...

Por ser teu Obá Onikoyi
Por não merecer ser merecedor
De tanta Stella, estrela de amor, ai...

Meu pai Xangô
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai
É meu pai Xangô, é meu pai



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Republico, pela primeira vez nos mais de quatro anos e meio de vida deste blogue, texto de 30 de abril de 2004, em homenagem nunca suficiente a um dos pilares fundamentais da canção brasileira. Caymmi chegou ao Orun neste sábado e foi recebido por seu pai Xangô. Pediu benção a mãe Senhora, a Mãe Menininha do Gantois e foi tomar o assento que sempre lhe esteve reservado no conselho supremo dos Obás da música brasileira. São milhares de orfãos de sua imensa sabedoria. Particularmente, Caymmi é uma das principais referências da minha vida. Salve Dorival Caymmi! Salve Obá Otum Onikoyi! Salve o Brasil!





Pedra Noventa





A música popular brasileira está em festa. Gostaria de dizer o Brasil, mas sabemos que infelizmente, em boa parte por obra dos nossos donos, a nação ainda não se apropriou definitivamente de suas riquezas mais preciosas. Mas os que vivemos e respiramos a brisa privilegiada dessa sonoridade que brota do seio desse povo mestiço estamos com o coração exultante. Afinal, um dos mais fascinantes espíritos surgidos na canção brasileira no século passado completa nove décadas, singrando forte e decididamente as águas desse terceiro milênio.

“Dorival é gênio universal”. E não sou eu que digo: “Pegou o violão e orquestrou o mundo”, emendou o maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, para os poucos que por desconhecimento, despreparo ou inacreditável soberba podem ainda pôr-se a duvidar dessa verdade simples. Conta sempre o magistral Sivuca que, pedindo certa vez algumas partituras estrangeiras para aprofundamento de seus estudos de harmonia ao respeitadíssimo maestro Guerra Peixe, esse lhe teria rebatido: “pra quê? Está tudo lá na obra do Caymmi...”.* Depoimentos insuspeitos de quem tem a autoridade que nos falta e obriga a valermo-nos de argumentos mais extensos.

Dorival Caymmi é um dos pilares fundamentais de um processo amplo que fez a música popular brasileira, em pouco mais de um século, transformar-se de um ajuntamento de manifestações de cunho basicamente tradicional, ligadas à dança e aos folguedos, a uma das mais sofisticadas, expressivas e criativas manifestções da música universal. A dialética essencial que faz com que a o “canto de nossa aldeia” possa ser o mais universal dos cantos, segundo a definição clássica de Tolstói, encontra na música brasileira expressão privilegiada na obra de autores como Luiz Gonzaga, Pixinguinha e Noel Rosa (sem falar, por exemplo, num Waldemar Henrique, que acabou por não distender tanto suas influências por força do isolamento histórico a que a Amazônia sempre foi submetida). Esses baluartes são emblematicamente responsáveis pelo processo de integração dos elementos básicos (rítmicos, melódicos, harmônicos, líricos, dinâmicos) presentes nas manifestações de feições fortemente regionais numa música que pudesse assumir um cunho mais propriamente nacional, ser consumida em larga escala via difusão pelos meios de massificação e ser reconhecida mundialmente por seus traços distintivos gerais. Trata-se, pois, de uma especial manifestação de uma necessária sensibilidade para se reconhecer a riqueza dos elementos musicais espalhados pela tradição musical informal, sua forte presença no quadro geral dos referenciais estéticos coletivos do povo brasileiro e uma habilidade ímpar para promover sua indispensável amalgamação no processo mais geral que permitirá que se forme a idéia (ainda que arquetípica) de uma música popular especificamente brasileira.

Se Gonzaga traz o som árido do sertão cratense para o ambiente urbano do Rio de Janeiro a década de 40, gerando o dançabilíssimo baião; se Noel é quem primeiro tem consciência do processo de massificação do samba carioca, colhendo e adaptando as melodias e versos dos compsitores dos morros às necessidades musicais do rádio, do disco e do carnaval que se tranformava; se Pixinguinha condensa e sistematiza a herança riquíssima da tradição do choro, espalhando um padrão por toda a música popular que se gravaria em disco por quase três décadas; Dorival certamente abriu os caminhos para que à música popular fossem nacionalmente incorporados os temas ligados à vida no mar e à cultura afro-brasileira, o som lamentoso das canções praieiras, o ritmo dos baticuns dos terreiros etc., elementos todos que tem sua manifestação mais evidente e emblemática na sua Bahia de tanta importância e representatividade na história e na cultura brasileiras.

Caymmi foi pioneiro, ainda na década de 30, da prática de cantar suas próprias composições, fato que se tornaria corriqueiro somente a partir dos anos 60. Também introduziu definitivamente no repertório musical brasileiro a fórmula “voz e violão”, que viria mais tarde a encontrar em seu confessado discípulo e conterrâneo, João Gilberto, uma das expressões internacionalmente mais reconhecidas do gênio musical brasileiro. Como este, o mestre também fez da sonoridade singular de seu violão uma marca personalíssima de sua música, antecipando em muitos anos a larga utilização de dissonâncias harmônicas que se faria comum com o advento da bossa-nova (com sentido estético diverso, anote-se).

Outro traço singular da obra caymmiana que se incorpora definitivamente ao padrão musical brasileiro é o seu poder de síntese. Suas canções são sintéticas (se conhecem a pequena jóia “Canto de Nanã”, com 4 versos curtos e, no todo, não mais que umas 30 notas, saberão exatamente do que estou falando) sem excessos líricos ou melódicos de nenhuma espécie, numa época em que a música brasileira, embora caminhando em diverso sentido, ainda não de todo se livrara dos dramalhões lítero-musicais alla Catulo da Paixão e das serestas derramadas entoadas pelos dós-de-peito de plantão. E mesmo sua obra é enxuta, não obstante com possivelmente a maior proporção de grandes clássicos da música brasileira que qualquer outro compositor. Não temeria dizer que no caminho que conduz a música popular das modinhas derramadas do século XIX à síntese minimalista de um João Gilberto, o velho Dorival é um claro divisor de águas.

Na década seguinte (40) faz brotar inúmeras canções delicadas, de acompanhamento simples, para se ouvir no recolhimento, quando o rádio e o disco estão sendo invadidos pela sonoridade dos fox-trotes dançantes das big bands estadunidenses popularizados pelo cinema. E, finalmente, nos anos 50, quando o samba-canção ganhará o status de expressão musical oficial da classe média brasileira, criará alguns clássicos imorredouros do gênero, dominando com perfeição os temas românticos e as sonoridades intimistas, marcadamente urbanas, aperfeiçoando e superando como nenhum outro grande autor do gênero os paradigmas “bolerizantes” dos temas e melodias.

Na década de 70, aclamado pelas (hoje já não tão) novas gerações da música popular, Dorival Caymmi vai assumindo o papel que lhe cabe tão bem de grande patriarca dessa família musical que tantos belos frutos gerou. A resistência que alguns inexplicavelmente ainda lhe oferecem viria de seu sucesso? Viria do fato de ter conseguido viver dignamente de seu trabalho artístico e ter freqüentado os círculos da elite econômica e intelectual? Sim, porque inegavelmente, foi intérprete e compositor considerado e aclamado pelos seus contemporâneos de várias gerações, contrariando um paradigma demagógico que a tantos deleita: o do artista incompreendido e marginal.

Mil vezes salve Dorival Caymmi, nosso buda-nagô! Junto minha humilde prece à da Família Caymmi neste dia mágico e sensacional em que a alegria musical não nos cabe no peito, e rogo ao nosso pai Xangô:

Protege teu filho, obá de Xangô
Seu Obá Otum Onikoyi
Que tanto precisa
precisa de ti
Pro canto compor
Pra canto cantar
O canto em louvor
Das graças da flor
Da terra, do povo e do mar da Bahia
...
Protege teu filho,
teu filho Caymmi
Dorival Obá Onikoyi
E Stella Caymmi
A mãe de Dori, de Nana e Danilo
Que é musa e mulher
que é amor e amiga!...



* Fonte: Songbook Dorival Caymmi, Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1994