segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Defender a vida ou defender-se da vida?


Substratos ideológicos da questão da produção de saúde no município de São Paulo


Ana Lucia Marinho Marques


“O prefeito fará uma visita à nossa unidade na próxima semana”. Dita essa frase, inicia-se um movimento desesperado de ordenação e organização dos espaços e lugares. Nada pode estar fora da posição determinada. Cadeiras laranjas não podem conviver com as pretas. Nas paredes, não pode haver nenhum cartaz, aviso, foto ou rabisco. E, a fim de garantir o bom andamento da visita, nenhum usuário do serviço que ameace esboçar qualquer tipo de questionamento ao senhor prefeito deve ser convidado para a cerimônia.

Talvez não tenha começado bem aí. Mas essas cenas recorrentes começaram a me dar indicativos do que se estava (está) compreendendo por espaços de produção de saúde: paraísos assépticos, higienizados, limpos e organizados. A cena descrita não é mera simulação. Foi reproduzida, ao longo desta gestão, muitas vezes, em diversos serviços de saúde, sempre sob justificativas diferenciadas.

Agora, chegando ao extremo dessa compreensão, sob o pretexto de defesa da saúde, crianças, jovens e adultos em situação de rua estão sendo gentilmente convidados a se retirarem das ruas e encaminhados para que possam ser alocados em espaços mais "apropriados". De preferência, para além de onde nossa vista possa alcançar.

Em torno à figura do usuário de crack, o “crackeiro”, constrói-se um discurso médico-sanitário, que o “liberta” de um certo discurso exclusivamente moral, mas o aprisiona no lugar de doente, tornando-o inofensivo e esvaziando seu potencial de desterritorialização. Esse sujeito, assim,  é reputado incapaz de realizar escolhas para a sua própria vida, precisando que um ser qualificado lhe diga o melhor caminho a tomar. E os profissionais de saúde, dotados de poderes socioculturalmente atribuídos, são incumbidos de desempenhar esse papel de estabelecer definições e certezas. E o melhor, nesse caso, é que seja confinado a espaços adequados de tratamento, a despeito do que possa ser a sua vontade, para que se tornem aptos a se reintegrarem à sociedade.

Melhor para quem? Quem escutou esses sujeitos antes da proposição de tais propostas e projetos de lei? Antes de serem doentes (e não pretendo, de maneira nenhuma, negar a dimensão do sofrimento corporal envolvido na experiência de dependência de uma substância psicoativa), estamos falando de cidadãos a quem, em sua maioria, foi negado o acesso aos bens e direitos sociais básicos. O “drogado”, esse que mora na rua, que atrapalha o trânsito, a segurança e a bela vista da cidade parece, também, denunciar a falência de uma administração pública que ao invés de encarar as condições sociais que produzem esse tipo de situação e construir políticas públicas consistentes para enfrentá-las, resolveu se defender. E esconder aquilo que não se quer ver.

Difícil não associar: os diversos internamentos (dos leprosos, dos tuberculosos, dos vagabundos, dos loucos, de todos os grupos em torno dos quais, em dado momento, não havia tolerância possível), possibilitados e legitimados em determinados contextos sócio-históricos, estiveram, de certa forma, relacionados a questões de trabalho e como forma de combate da miséria. Seria desta vez diferente? Muda-se o ator social, e do que se está falando, afinal?

Sob a bandeira do cuidado, estão justificativas tão absurdas quanto bem elaboradas. Algumas ditas, outras veladas. Passiveis de interpretações as mais variadas. Cria-se uma sensibilidade social em torno do tema que vai criando cenários possíveis e condições necessárias para o desenrolar de um novo (ou o mesmo?) tipo de confinamento. Sob o ideal asséptico de uma cidade livre dos males que a assolam, subjuga-se a potência da vida de encontrar respostas.

Produção de saúde é produção de vida. Vida que se dobra e desdobra, que imagina e desenha linhas de fuga. E que cria e criará, sem dúvida, lugares possíveis de existência e de resistência ao ideal da construção de uma Cidade Limpa.


* terapeuta ocupacional, mestre pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Anti-blogue


Este blogue caminha para completar oito anos no ar. Seria uma bela marca, fosse ele um blogue de verdade; antes, se não se tivesse erigido num quase verdadeiro anti-blogue - o que em nenhum momento foi intenção, mas eu gosto da expressão, que se não me engano é do Zé Sérgio Rocha.

Nos blogues de verdade, como é prática absolutamente corriqueira em qualquer meio de comunicação hoje em dia, a “audiência” é monitorada sistematicamente. O prestígio dos “blogueiros” ( e "tuiteiros" e outros "eiros" que não se precisa relacionar), verdadeiros arautos do mundo hiper-conectado, varia diretamente em função do número de acessos registrado; conseqüentemene, os convites que recebem etc. Lembro-me do caso – mas não me lembro exatamente onde foi – de gente que, quando os acessos caíam, metia lá em alguma parte, para inflar artificialmente os índices, uma expressão de busca dessas campeãs do Google , normalmente relativa aos fetiches sexuais mais bizarros (são engraçadíssimas, só não reproduzo porque a coisa funciona mesmo e tarados por aqui bastam os de sempre...).

Não vou mentir que seja adrede, mas o fato dificilmente contestável é que esse espaço parou de ser alimentado toda vez que a média de audiência começou a inchar. Nada muito além, diga-se, de 70 ou 80 acessos diários, o que é literalmente nada. É só que vai passando o tempo, e a gente tem cada vez menos o que dizer para o mundo e cada vez mais para a meia-dúzia da barra da saia. Não chega a ser uma opção; é mais uma conseqüência do que se diz, do como se diz e do sobre o que se fala, sobretudo. Este ofício não é propriamente produto de vaidade: é um exercício doloroso de punção das pequenas e grandes ulcerações que a vida vai colecionando pra nós, e que seria muito mais prudente deixar repousar em seus recônditos.

Ora direis: por que então não segue, então, sem publicar? Por que às vezes é triste que isso tudo vá desaparecer para sempre qualquer dia desses, sem vestígio, sem possibilidade. Os que engarrafaram eternamente suas mensagens não tiveram, necessariamente, a esperança ou a fé no resgate.

Assim, é com indisfarçável satisfação que constato que em quase oito meses de inatividade, a média de acessos só não foi a zero por causa daqueles que aportam nesta praia por absoluto acaso a partir dos mecanismos de busca. E que a expressão campeoníssima, disparado, é “simpatia gases”, seguida por “greve 1917”. Aos peidorreiros impedernidos e aos grevistas ultra-mortos – meus irmãos, meus semelhantes! - minha gratidão sincera, meus respeitos. Meu brinde. Em vossa honra e com vosso incentivo, sigo.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Torneirinhas


O que me anima a continuar por aí dizendo minhas bobagens, escorado nos balcões da existência, é que mesmo os bons vez por outra deixam os pudores de lado e abrem suas “torneirinhas de asneiras”, como o bom Visconde de Sabugosa se referia às pérolas vindas da cabecinha cheia de macela da Emília. Só assusta um tantinho, vez por outra, quando ameaçam levar as patacoadas a sério.

Vejam o que soltou o nosso estimado Luiz Fernando Veríssimo, com seu invejável talento para manejar a pena (e não é boato da Internet...), no Estadão de hoje. Pois ele também tem direito. Não tem problema nenhum. Desde que não se leve a sério.