Substratos ideológicos da questão da produção de saúde no município de São Paulo
Ana Lucia Marinho Marques
“O
prefeito fará uma visita à nossa unidade na próxima semana”.
Dita essa frase, inicia-se um movimento desesperado de ordenação e
organização dos espaços e lugares. Nada pode estar fora da posição
determinada. Cadeiras laranjas não podem conviver com as pretas. Nas
paredes, não pode haver nenhum cartaz, aviso, foto ou rabisco. E, a
fim de garantir o bom andamento da visita, nenhum usuário do serviço
que ameace esboçar qualquer tipo de questionamento ao senhor
prefeito deve ser convidado para a cerimônia.
Talvez
não tenha começado bem aí. Mas essas cenas recorrentes começaram
a me dar indicativos do que se estava (está) compreendendo por
espaços de produção de saúde: paraísos assépticos,
higienizados, limpos e organizados. A cena descrita não é mera
simulação. Foi reproduzida, ao longo desta gestão, muitas vezes,
em diversos serviços de saúde, sempre sob justificativas
diferenciadas.
Agora,
chegando ao extremo dessa compreensão, sob o pretexto de defesa da
saúde, crianças, jovens e adultos em situação de rua estão sendo
gentilmente convidados a se retirarem das ruas e encaminhados para que possam ser
alocados em espaços mais "apropriados". De preferência, para além de
onde nossa vista possa alcançar.
Em torno à figura do usuário de crack, o “crackeiro”, constrói-se um discurso médico-sanitário, que o “liberta” de um certo discurso exclusivamente moral, mas o aprisiona no lugar de doente, tornando-o inofensivo e esvaziando seu potencial de desterritorialização. Esse sujeito, assim, é reputado incapaz de realizar escolhas para a sua própria vida, precisando que um ser qualificado lhe diga o melhor caminho a tomar. E os profissionais de saúde, dotados de poderes socioculturalmente atribuídos, são incumbidos de desempenhar esse papel de estabelecer definições e certezas. E o melhor, nesse caso, é que seja confinado a espaços adequados de tratamento, a despeito do que possa ser a sua vontade, para que se tornem aptos a se reintegrarem à sociedade.
Melhor
para quem? Quem escutou esses sujeitos antes da proposição de tais
propostas e projetos de lei? Antes de serem doentes
(e não pretendo, de maneira nenhuma, negar a
dimensão do sofrimento corporal envolvido na experiência de
dependência de uma substância psicoativa), estamos falando de
cidadãos
a
quem, em sua maioria, foi negado o acesso aos bens e direitos sociais
básicos. O “drogado”, esse que mora na rua, que atrapalha o
trânsito, a segurança e a bela vista da cidade parece, também,
denunciar a falência de uma administração pública que ao invés
de encarar as condições sociais que produzem esse tipo de situação
e construir políticas públicas consistentes para enfrentá-las,
resolveu se defender. E esconder aquilo que não se quer ver.
Difícil
não associar: os diversos internamentos (dos leprosos, dos
tuberculosos, dos vagabundos, dos loucos, de todos os grupos em torno
dos quais, em dado momento, não havia tolerância possível),
possibilitados e legitimados em determinados contextos
sócio-históricos, estiveram, de certa forma, relacionados a
questões de trabalho e como forma de combate da miséria. Seria
desta vez diferente? Muda-se o ator social, e do que se está
falando, afinal?
Sob
a bandeira do cuidado, estão justificativas tão absurdas quanto bem
elaboradas. Algumas ditas, outras veladas. Passiveis de
interpretações as mais variadas. Cria-se uma sensibilidade social
em torno do tema que vai criando cenários possíveis e condições
necessárias para o desenrolar de um novo (ou o mesmo?) tipo de
confinamento. Sob o ideal asséptico de uma cidade livre dos males
que a assolam, subjuga-se a potência da vida de encontrar respostas.
Produção
de saúde é produção de vida. Vida que se dobra e desdobra, que
imagina e desenha linhas de fuga. E que cria e criará, sem dúvida,
lugares possíveis de existência e de resistência ao ideal da
construção de uma Cidade Limpa.
* terapeuta ocupacional, mestre pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Sabe que ao ler seu texto...lembrei-me de um episódio que vi na TV da última copa...
ResponderExcluirNaquela ocasião não tão distante vi uma cena sobre a "limpeza" que estavam fazendo em determinada região para que as pessoas torcedoras de seus mais variados times fossem para este continente tão "privilegiado" que é a África e não fossem recebidos por imagens "tão duras de pobreza"...
Como se isso fosse novidade para alguém neste planeta...
Enfim com a justificativa "pobre" e "suja" as pessoas foram varridas de seus barracos...
A prática de isolamento é inerente ao ser humano...e data tempos muito, muito antigos. Mas como você mesma fala: melhor para quem?
É o que aquele ditado diz: bom para inglês ver né?
E a minha sensação é de que realmente não sabemos mas quem é a a prioridade, o sujeito aquele que merecia a "nossa proteção" deixou de ser...e deu lugar uma prática que não prioriza a vida...
Muito boa discussão....
Abraço Ana