segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O cozinheiro



Pouca coisa mais difícil de extirpar que um hábito. Não sou nenhum Edu Goldenberg, mas não posso negar minhas tendências obsessivas.

Há anos almoço todos os dias, religiosamente, no mesmo lugar. Um minúsculo restaurante japonês, mais propriamente um “nipo-butiquim”, encravado no mais improvável dos buracos. Não acharia jamais, não tivesse me servido ocasionalmente de abrigo, num desses temporais paulistanos de fevereiro ou março.

Dia após dia, calado como um daruma, o pintado no gato, o cego no peixe cru, fui sacando as histórias. Tem quarenta anos de existência o lugar, vinte sob o comando da “Dona Maria”, como é mais conhecida a japonesinha invocada que começou como empregada da antiga dona, tão solícita quanto mau-humorada, típica dona de butiquim, com nome de orixá:  Iroko. Chegada num “colunismo social”, por assim dizer, sabe e faz saber da vida de todo mundo por ali. Fiquei sabendo que o dentista não paga pensão pra ex-mulher; que o “doutor” enriqueceu fraudando concorrências públicas; soube, inclusive, o valor do cachê da modelo, ex-miss. Da minha vida - eu que não abro a boca - amigo meu veio me dizer coisa que nem eu sabia.


Quando alguma coisa não dá certo, a culpa inapelavelmente é do cozinheiro. Mas não só. Espécie de alter-ego, se fala de política, conta em quem “o cozinheiro” vai votar. Se o assunto é futebol – palmeirense, a Dona Maria, mais inteirada nos bastidores da Sociedade que o Savério Orlandi, o Téo Bressan e o Fernando Borgonovi juntos – “o cozinheiro” é quem vê todos os jogos da rodada. Um dia contou que “o cozinheiro” tinha passado mal de noite. Era o marido, o cozinheiro.

Obra da meia hora cotidianamente compartilhada, seguíamos todos ali, juntando solidões e cultivando dependências. Craque no ofício abraçado e vocação de matriarca, Dona Maria não esquece as preferências e as restrições da dieta de cada cliente, recebido sempre com a saudação de praxe e a pergunta que jamais falha:

-Irashaimase! Hoje o que vai sero?

Espécie de gato japonês, luta há mais de vinte anos contra a doença. Distribuindo lições de garra, coragem e vontade de viver, de vez em quando os olhinhos puxados não disfarçam a dor. Mancando pra lá e pra cá, no trazer de comidas e no levar de louças, já vi responder a mais de um desavisado:

- O que foi na perna, Dona Maria?

- Câncero.

Em meados de novembro, para desespero de umas duas dúzias de batedores de ponto, anunciou que venderia o restaurante. Desdenhamos da ameaça, que muita gente jurava recorrente. Fustigada daqui e dali, começou dizendo que não agüentava mais, que estava cansada. Depois, passou a aleardear que era por causa de briga com sua principal garçonete, dezoito anos de casa, dezessete e meio de briga. Um belo dia, balcão vazio, sem que eu perguntasse, confidenciou: “O cozinheiro está muito doente. Ele cuidou de mim quando precisei. Agora preciso cuidar dele.” Mas ninguém seguia acreditando no intento.

Voltando hoje das férias, cheguei pra almoçar. Butiquim fechado, placa de “passa-se o ponto”.

Morreu o cozinheiro, no primeiro dia do ano.