Pouca coisa mais
difícil de extirpar que um hábito. Não sou nenhum Edu Goldenberg,
mas não posso negar minhas tendências obsessivas.
Há anos almoço todos
os dias, religiosamente, no mesmo lugar. Um minúsculo restaurante
japonês, mais propriamente um “nipo-butiquim”, encravado no mais
improvável dos buracos. Não acharia jamais, não tivesse me servido
ocasionalmente de abrigo, num desses temporais paulistanos de
fevereiro ou março.
Dia após dia, calado
como um daruma, o pintado no gato, o cego no peixe
cru, fui sacando as histórias. Tem quarenta anos de existência o
lugar, vinte sob o comando da “Dona Maria”, como é mais
conhecida a japonesinha invocada que começou como empregada da
antiga dona, tão solícita quanto mau-humorada, típica dona de
butiquim, com nome de orixá: Iroko. Chegada num “colunismo
social”, por assim dizer, sabe e faz saber da vida de todo mundo
por ali. Fiquei sabendo que o dentista não paga pensão pra
ex-mulher; que o “doutor” enriqueceu fraudando concorrências
públicas; soube, inclusive, o valor do cachê da modelo, ex-miss. Da
minha vida - eu que não abro a boca - amigo meu veio me dizer coisa
que nem eu sabia.
Quando alguma coisa não dá certo, a culpa inapelavelmente é do cozinheiro. Mas não só. Espécie de alter-ego, se fala de política, conta em quem “o cozinheiro” vai votar. Se o assunto é futebol – palmeirense, a Dona Maria, mais inteirada nos bastidores da Sociedade que o Savério Orlandi, o Téo Bressan e o Fernando Borgonovi juntos – “o cozinheiro” é quem vê todos os jogos da rodada. Um dia contou que “o cozinheiro” tinha passado mal de noite. Era o marido, o cozinheiro.
Obra da meia hora
cotidianamente compartilhada, seguíamos todos ali, juntando solidões
e cultivando dependências. Craque no ofício abraçado e vocação
de matriarca, Dona Maria não esquece as preferências e as
restrições da dieta de cada cliente, recebido sempre com a saudação
de praxe e a pergunta que jamais falha:
-Irashaimase!
Hoje o que vai sero?
Espécie de gato
japonês, luta há mais de vinte anos contra a doença. Distribuindo
lições de garra, coragem e vontade de viver, de vez em quando os
olhinhos puxados não disfarçam a dor. Mancando pra lá e pra cá,
no trazer de comidas e no levar de louças, já vi responder a mais
de um desavisado:
- O que foi na perna,
Dona Maria?
- Câncero.
Em meados de novembro,
para desespero de umas duas dúzias de batedores de ponto, anunciou
que venderia o restaurante. Desdenhamos da ameaça, que muita gente
jurava recorrente. Fustigada daqui e dali, começou dizendo que não
agüentava mais, que estava cansada. Depois, passou a aleardear que
era por causa de briga com sua principal garçonete, dezoito anos de
casa, dezessete e meio de briga. Um belo dia, balcão vazio, sem que
eu perguntasse, confidenciou: “O cozinheiro está muito doente. Ele
cuidou de mim quando precisei. Agora preciso cuidar dele.” Mas
ninguém seguia acreditando no intento.
Voltando hoje das
férias, cheguei pra almoçar. Butiquim fechado, placa de “passa-se
o ponto”.
Morreu o cozinheiro, no
primeiro dia do ano.
Puta história triste!
ResponderExcluirLinda história, cheia de dor, coragem, Humanidade, Poesia...
ResponderExcluirLindo texto. Quase senti-me sentado no nipobotequim há anos...
ResponderExcluirBom te ver por aqui, Vinagret's...
ResponderExcluirOrra, Fê, só você para aguentar as má-criações da honorável japa e ainda arrancar poesia disso tudo. Chorei!!! GRande beijo e saudades. Lu e Sofia!
ResponderExcluirCaramba, não sei se é porque estou particularmente sensivel hoje, mas fiquei mesmo emocionada com esse texto.
ResponderExcluirUm belo tema, escrito com talento e sentimento.
com um ligeiro atraso, acabo de ler e, se fosse veado, teria vontade de chorar
ResponderExcluirEba, Fernando! - fiz uma boa leitura - saudades.
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