sexta-feira, 23 de abril de 2010

Belo Monte

Em resposta ao artigo do camarada deputado Eron Bezerra, publicado no Portal Vermelho.

Lamento que uma figura com a importância e o conhecimento de causa do deputado Eron Bezerra perca a oportunidade de um debate efetivamente aprofundado, para aderir ao discurso simplista e superficial, para não dizer eleitoreiro. Qualquer um que conheça minimamente a Amazônia sabe que o problema não se resume num embate entre preservacionistas histéricos e desenvolvimentistas sem coração. Assim como também não resolve a questão a opção retórica pela “sustentabilidade”, como se fosse uma palavra mágica, como uma panacéia, como se sempre houvesse uma equação possível para equilibrar intervenção e preservação.

Aliás, preservação não se entenda como simples proteção à flora e fauna nativas. A Amazônia (para não dizer “as Amazônias”, em vista da extraordinária multiplicidade de características das suas diversas micro-regiões) se caracteriza por um complexo e intrincado jogo de relações entre a natureza e a ocupação humana, essa entendida como atividade econômica, sim, mas também como cultura. A complexidade das relações e a delicadeza dos múltiplos aspectos envolvidos requer extremo cuidado na avaliação dos impactos das intervenções de grande porte, normalmente planejadas de fora para dentro, a partir dos grandes centros de tomadas de decisões que pouquíssimo compreendem a dinâmica dos problemas da região. Não é por outro motivo que o prestigiado jornalista Lúcio Flávio Pinto defende a tese de que o Brasil “oficial”, voltado para os interesses dos grandes centros econômico-politicos do sul-sudeste, sempre manteve com a Amazônia uma relação de metrópole para colônia, esta última vista como uma fonte de recursos a serem explorados, como um deserto a ser desbravado e/ou ocupado, como um povo a ser assistido e integrado à cultura oficial, e nunca um território com particularidades naturais, geográficas, históricas, humanas, culturais a ser respeitado; nunca como uma face diferenciada do Brasil, com a qual se poderia estabelecer um intercâmbio de vivências, conhecimentos, saberes, expressões.

O amazônida sente a Floresta, os grandes rios como entidades míticas a serem respeitadas, não só por sua importância material no suprimento à subsistência humana e na manutenção do equilíbrio entre as forças da natureza. O Xingu é um gigante, um deus imponente e majestoso, que não se afronta impunemente. Não posso deixar de lembrar a eminente historiadora, Profa. Denise Bernuzzi de Sant'Anna: “Compreender e ver as coisas como elas são não é tratá-las como coisas em si, indivisíveis, sem mistério nem profundidade. (...) Dizer igualmente que o sentido se localiza nas relações ainda não é suficiente, porque é preciso saber que as coisas e os seres possuem forças, apelos, latências cujas singularidades a compreensão humana não consegue esgotar.”

Todos sabemos as conseqüências desastrosas dos mega-projetos impostos à região amazônica goela-abaixo, como o Projeto Jari, a hidrelétrica de Tucuruí, Serra Pelada, a Transamazônica, o pólo alumineiro Alunorte-Albrás etc. etc. etc. Quem conhece a realidade das vilas e cidades transpostas por força dos alagamentos das barragens, sabe o que é um cenário de desenraizamento do homem de seu entorno, sabe o que é a geração dos “filhos dos estupros”, sabe o que são o alcoolismo e o suicídio nessas levas de desterrados. A região da cidade de Altamira já sofreu o suficiente por conta da abertura da Transamazônica. Todos sabemos que não é só o alagamento (no caso, o alagamento da área da barragem e o ressecamento de grande parte do leito atual do Xingu, na região da Volta Grande): é a violência, física e simbólica (a jornalista Railídia Carvalho, comunista e altamirense, relata o sentimento da população olhando para as grandes linhas de transmissão da eletricidade produzida em Tucuruí em direção aos mega-consumidores, que cruzavam os céus da cidade enquanto a população passava as noites às escuras, por força do racionamento de energia), são as doenças, é a invasão cultural, é o colpaso da estrutura de serviços públicos, é o desemprego no pós-obra, a poluição, a destruição das formas tradicionais de sociabilidade etc. etc. etc.

Nós, comunistas, temos o dever histórico de não sucumbir às lógicas do senso comum, mas altear a voz da razão dialética como crítica impiedosa de todas as conjunturas que ensejem a opressão do homem. Está na hora do Partido abrir-se ao debate sério, embasado, com as vozes que conhecem a profundidade do drama amazônico. Vamos ouvir Lúcio Flávio Pinto, vamos ouvir D. Erwin Krautler, vamos ouvir os técnicos respeitados em geração de energia, como Célio Bermann, que tecem duras críticas à relação “custo sócio-ambiental / benefício econômico” da energia gerada por Belo Monte. Não que sejam os donos da verdade, mas, ao menos, vozes respeitáveis a que devemos dar crédito.

Cito afirmação recente do citado prof. Célio Bermann, na Folha de S. Paulo (reproduzida aqui): “A insistência do governo de levar adiante o projeto de Belo Monte mostra que a lógica técnica e econômica cedeu o lugar à obsessão. Com graves consequências que não se restringem às populações indígenas e comunidades ribeirinhas do rio Xingu. Elas serão também sentidas nos bolsos de todos nós, consumidores de eletricidade. […] A energia a ser produzida pela usina não será utilizada para aliviar a pobreza e incorporar uma parcela da população que sempre esteve excluída das benesses do consumo. Ela será destinada a satisfazer a demanda de grandes grupos mínero-metalúrgicos na perpetuação do modelo que se apropria dos recursos naturais e das águas dos rios da região para produzir bens de baixo valor agregado e de alto conteúdo energético para exportação. A isso chamam de desenvolvimento. E a que custos?

O mesmo professor, numa entrevista de 2008, asseverava: “Hoje, 30% da energia hidroelétrica no Brasil é usada pelas indústrias que consomem muita energia, as chamadas eletrointensivas, e que produzem alumínio, aço, celulose, ferroligas, etc. São indústrias cuja previsão de expansão para os próximos 20 anos está estabelecida. Grande parte dessa expansão de energia elétrica é para assegurar esse tipo de produção - que coloca o Brasil numa posição dentro do processo de globalização como mero produtor de bens primários, de baixo valor agregado, baixo valor no mercado internacional e o alto consumo de energia elétrica. São indústrias que os países industriais não querem mais. Países como o Brasil se transformam em reféns desse processo, em que a produção é determinada internacionalmente, mas que a responsabilidade é brasileira. É do Brasil a responsabilidade de manter esta produção. Mas é também dos países que hoje se beneficiam desse processo, países que encontram outros, como o Brasil, em que a demanda de produtos é assegurada ainda que esta produção gere conflitos sociais e problemas ambientais.

Será esse o modelo econômico que os comunistas defendemos??? É esse o nacionalismo que provoca as reações inflamadas do nobre deputado, contra um cineasta estrangeiro??? Não parece estar bem mais próximo do projeto de nação traçado e executado pelo governo FHC, que pleiteia voltar a ditar os rumos da política nacional através da candidatura Serra???

segunda-feira, 19 de abril de 2010

A luta por direitos do povo guarani em São Paulo

 
Na zona oeste da cidade, as aldeias Guarani Tekoá Pyaú e Tekoá Ytú enfrentam problemas como a inserção de grandes projetos na região, carências no atendimento à saúde e educação

Beatriz Catarina Maestri  e  Vanessa Ramos *


Nhanderu (Deus) está triste. Ele quis deixar seu corpo e seu espírito aqui na terra. Mas os juruá (não-indígenas) não estão colaborando com sua obra e estão destruindo tudo. A terra vai ficando pobre, mal cuidada e vai se revoltando. Aí vemos coisas ruins acontecendo como terremotos, enchentes e deslizamentos. As palavras em tom de lamento, ditas por Alísio, liderança Guarani Mbyá, em São Paulo, refletem o sentimento das comunidades indígenas que vivem nas periferias da grande metrópole.

A terra para os Guarani é fonte de vida e sobrevivência e, segundo o subsídio Semana dos Povos Indígenas - 2009, do Conselho Indigenista Missionário, (CIMI) "não é só a base do sustento, mas também o lugar onde jazem os ancestrais, onde se reproduzem a cultura, a identidade e a organização social". Na zona oeste de São Paulo as aldeias Guarani, Tekoá Pyaú e Tekoá Ytú, localizadas perto do Pico do Jaraguá, enfrentam problemas como a inserção de grandes projetos na região, carências no atendimento à saúde e educação. A Tekoá Pyaú está entre as menores aldeias do Brasil que esperam pela demarcação de sua terra de apenas 2,7 hectares, onde vivem mais de 80 famílias. Considerando o aumento da população, esta área exígua será insuficiente para abrigar um número maior de famílias.

Para o Xeramoi (pajé) José Fernandes, da aldeia Tekoá Pyaú "o processo de demarcação da aldeia está indo bem mal, porque os juruá (não-índios) são muitos e não sabem como realizar", afirma. A preocupação maior das lideranças locais advém da morosidade dos órgãos públicos que deveriam agir conforme a Constituição Federal que assegura os direitos dos povos originários.

Porém, os processos são lentos e quase nunca se estabelece um diálogo preciso com as comunidades envolvidas, mesmo sabendo que a não consulta prévia aos povos, fere a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante este direito aos povos indígenas, quando estes forem afetados. Neste sentido, cabe ao poder público atender as comunidades indígenas no Brasil, expostas à violência por conta da negação de suas terras e interferência de grandes projetos. 


Megaprojetos

Um grande sofrimento destas comunidades no Jaraguá teve início em 1998, ainda no governo Mário Covas (1995- 2001), quando a empresa Desenvolvimento Rodoviário S.A. (Dersa) iniciou a construção do Rodoanel Mário Covas, cortando parte de aldeias e interferindo em outras. Ainda assim, as propagandas do governo de São Paulo insistem que "O Rodoanel não é apenas a maior obra viária do Brasil. É também a que mais emprega".

As lideranças afirmam que, na época, não foram consultadas sobre este projeto e suas interferências. A empresa propõe atualmente negociações junto à comunidade, através da compra de terras como medida compensatória. A comunidade tem dialogado, mas se posiciona na exigência da demarcação da terra no Jaraguá.

Estes fatos remontam à inserção de projetos pelo Brasil. Vale lembrar as críticas em relação à construção da usina hidrelétrica Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará. Como obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), custará milhões de dólares e afetará toda a população. Dom Erwin Kräutler, bispo da Prelazia do Xingu e presidente do CIMI, denuncia que a obra terá conseqüências irreversíveis e imprevisíveis, inundando bairros inteiros, afetando 30 mil famílias e causando a destruição de terras indígenas.


Saúde

Para as lideranças do Jaraguá, em sintonia com outros povos que vivem na cidade de São Paulo, este é um assunto preocupante. Em maio de 2009, enquanto lideranças indígenas, incluindo as das aldeias Guarani de São Paulo, no 6º Acampamento Terra Livre, em Brasília, elaboravam uma nova proposta de texto para o novo Estatuto dos Povos Indígenas abrangendo, também, a questão da saúde, outras lideranças deste povo, em conjunto com representantes de 36 aldeias do estado de São Paulo, ocupavam a sede da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) na cidade de São Paulo, reivindicando, entre outras coisas, a demissão do coordenador regional Raze Razek, avaliado por essas comunidades como péssimo gestor na ação efetiva do atendimento médico e sanitário.

Em dezembro de 2009, no Encontro de Articulação das lideranças indígenas de São Paulo, representantes de diversas etnias reuniram-se na aldeia Tekoá Pyaú para retomar os compromissos assumidos após a ocupação, como reclamar do descaso de remédios e de atendimento, tendo presente as necessidades emergenciais que vivem as comunidades. Novamente, se constatou que não ocorreram muitos avanços por parte do poder público no atendimento diferenciado aos povos que vivem na área urbana, considerando suas reais necessidades e reivindicações.


Educação

Uma dificuldade está na preservação da educação tradicional que sempre foi transmitida oralmente, desde seus antepassados, às crianças e jovens e que é "omitida" ou descaracterizada nas escolas públicas. Na aldeia Tekoá Pyaú, um projeto interessante, desde 2001, é o Centro de Educação e Cultura Indígena que nasceu a partir "da necessidade de se fazer frente à influência crescente da cultura não indígena, nas aldeias Guarani existentes na cidade de São Paulo". É um espaço onde as crianças da aldeia contam com ensino bilíngüe.

Na aldeia Tekoá Ytú há também uma escola onde se fala e ensina a língua Guarani, mas, para Davi Martim, professor Guarani, muitos avanços na educação escolar das crianças ainda são necessários. Para ele, faltam recursos pedagógicos para atuar dentro da escola e a educação na aldeia deve ser pensada de forma diferenciada, levando em conta a especificidade cultural de seu povo. Assim, "não há como aplicar, na escola da aldeia, o modelo não indígena que existe nas escolas públicas do estado e do município de São Paulo", enfatiza.

Em São Paulo, uma conquista que pode ser observada nesta área é o Programa Pindorama da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) que, em parceria com a Pastoral Indigenista e comunidades indígenas, oferece bolsas de graduação aos indígenas de várias etnias. Davi, por exemplo, é estudante de Ciências Sociais. A universidade torna-se um espaço possível para a atuação desses estudantes, conferindo-lhes a oportunidade de participar na construção de novas formas de pensar.


Descaso do poder público

Grande parte da sociedade reforça a idéia de que a cidade e a periferia, não são espaços para indígenas viverem. Para as lideranças da aldeia no Jaraguá, esse tipo de afirmação é discriminatória. "Os povos indígenas que vivem na área urbana não deixam de ser indígenas por isso", apontam. 
Para eles, é preciso que a sociedade repense seus conceitos e preconceitos, as concepções pejorativas e discriminatórias a que, por séculos, foi levada a pensar. Além do preconceito, o que se evidencia é o descaso dos órgãos públicos na efetivação dos direitos dos povos indígenas, agindo com lentidão e sem reposta às necessidades de demarcação de terras, educação, saúde, moradia e reconhecimento destes povos que vivem na cidade de São Paulo. Mais que urgente, deve-se perceber que os antigos moradores de nossa terra estão esquecidos e reduzidos por interesses econômicos e políticos corruptos. 

[ *originalmente publicado em  Brasil de Fato, 07/04/2010]