quarta-feira, 30 de maio de 2007

Hélio Bagunça

O samba de São Paulo está de luto. Morreu nesta madrugada, aos setenta e um anos, um dos grandes baluartes paulistanos, Hélio Romão de Paula, o legendário Hélio Bagunça.

“Seu” Hélio participou em 1953, ao lado do grande Inocêncio Tobias, do reagrupamento do antigo Grupo Carnavalesco Barra Funda que acabou dando origem ao Cordão Carnavalesco Mocidade Camisa Verde-e-Branco, da qual foi o primeiro diretor de harmonia. Compositor, ritmista, balilarino do samba, era quase um prefeito do bairro da Barra Funda, berço do samba na Terra da Garoa, onde participou da formação do antológico salão São Paulo Chic. Fundou também, em 1973, a G.R.E.S. Tom Maior e foi Cidadão Samba da Cidade de São Paulo na década de 90.

Figura presente em muitas rodas de samba da cidade, deixa uma grande lacuna entre os que nos acostumamos a ouví-lo cantar samba e contar suas histórias. Topar com ele pelos sambas e butiquins da Barra Funda era comum, sempre pronto pra tomar uma cerveja, levar um papo malandro, como nas rodas do antigo Espaço CUCA, onde tivemos a honra de ser por tantas vezes agraciados com a sua presença, exercendo essa função maioral de passar adiante o conhecimento, a sabedoria e o axé.


Brilhará sempre na constelação das estrelas mais cintilantes do samba da Paulicéia, ao lado de Dionísio Barbosa, Inocêncio Tobias, Geraldo Filme, Pato n'Água, Zeca da Casa Verde, Talismã e outros que já moram no Orun, e dos que afortunadamente ainda se encontram entre nós como “Seu” Carlão do Peruche, Toniquinho Batuqueiro, “Seu” Mário Luiz, Oswaldinho da Cuíca e outros mais. A todos, nosso respeito e veneração.


Salve Hélio Bagunça! Salve o Camisa Verde-e-Branco! Salve o samba brasileiro!

terça-feira, 29 de maio de 2007

Mosaico II

Pululam por todos os lados críticas, denúncias, desconfianças com relação à organização dos Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro, desde gente da mais alta e indubitável respeitabilidade como mestre Luiz Antônio Simas, até da escumalha estulta e incompetente que campeia nas redações dos “super jornalões s/a”, que nada mais fazem do que reproduzir o padrão de imbecilização do pouco que resta de vida inteligente na Nação. A borduna está cantando à solta. Não tenho vontade de falar do assunto, sinceramente, e com tanta coisa mais escandalosa correndo por aí, não me tenho dado ao trabalho de analisar detidamente a enxurrada de insinuações, premonições ou mesmo fatos. Mas por dever de consciência, obrigo-me a duas pontuais observações.

Em primeiro lugar, por mais plausíveis ou mesmo verificáveis que sejam os problemas apontados a torto e a direito, de procedências as mais diversas, compete-me declarar publicamente minha absoluta e irrestrita confiança na honestidade pessoal, honradez e compromisso cívico do Ministro Orlando Silva Júnior. Na história da República podem-se contar, possivelmente nos dedos de uma só mão, os ministros de estado oriundos dos estratos populares que exerceram o cargo estritamente como cumprimento de um dever para com a Nação, sem nenhuma nesga de ambição pessoal, como um simples funcionário devotado à sua missão. E este é o caso do Ministro Orlando, afirmo com toda a convicção de que sou capaz.

Em segundo, na minha última visita ao Rio de Janeiro, causou-me profunda estranheza como gente de boa cepa possa aderir irrefletidamente ao sentimento constantemente repisado pelos detratores do Brasil de que nada de que é nosso possa prestar. Criticar, denunciar, chamar às contas, discordar, esbravejar, faz parte do direito-dever inalienável de todo cidadão. Agora, torcer para que TUDO DÊ ERRADO, é algo que simplesmente não consigo compreender. A não ser vindo daqueles que sistematicamente se comprazem em reforçar a idéia de que o brasileiro é, por natureza, incompetente, indolente, incapaz de se ombrear com os maravilhosos realizadores do “primeiro mundo”.

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O Papa Bento XVI têm-se especializado na nobre arte de dizer, em segundos, bobagens que o episcopado, o clero, a diplomacia, os políticos, teólogos, historiadores têm de levar meses pra tentar consertar. Entre uma montanha de pataquadas que disse por aqui e para as quais ninguém deu a menor pelota, soltou a pérola de que a catequese dos povos pré-colombianos não foi uma violência. Claro: saroba no defecador alheio é cosquinha. Tratou-se apenas, nas suas pontifícias palavras, de conduzir a ancestral sabedoria desses povos à plenitude da verdade no conhecimento do evangelho. Depois, ele mesmo tentou limpar a meleca, mas a sagacidade popular está cansada de saber que em dispensações papais, quanto mais se mexe, maior é o característico odor exalado.

Mas isso serviu pra me lembrar a história que me contou Iya Sandra Epega de Xangô. Perguntado a uma freirinha missionária entre os índios amazônicos, ao que parece irmã do nunca assaz exaltado Marechal Cândido Rondon (entre cujos compatriotas, nunca é demais lembrar, foi recentemente apontado como “o maior” o ultra-fanho chofer de carros Ayrton Senna), como pretenderia ensinar a sua religião aos índios, respondeu:

- Eles já têm a religião deles, não preciso ensinar a minha. Venho aqui unicamente para viver o que nela aprendi: servir ao semelhante no que estiver ao meu alcance.

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O mais recente mar de lama que se abate sobre a República, cujo primeiro e mais visível alvo foi o ex-ministro das Minas e Energia, Silas Rondeau, tem servido para tirar de pauta uma operação maquinada a partir do Palácio do Planalto e que já estava em pleno andamento antes da navalha, com o objetivo de legitimar perante a opinião pública a idéia de que o abastecimento nacional de energia elétrica é prioridade de tal monta a mitigar as preocupações com os impactos ambientais decorrentes da instalação de usinas hidrelétricas. Os alvos, sabidamente, são o complexo do Rio Madeira e Belo Monte, no Xingu. O Presidente da República havia muito não abria a caixa de ferramentas de suas bufonarias, como fez há algumas semanas, para ameçar a nação com o espectro nuclear, caso não sejam felxibilizadas as exigências para a concessão das licenças ambientais. Uma espécie de versão pós-moderna dos escrúpulos de consciência mandados às favas. De sua parte, a Ministra Marina Silva andava tentando convencer a si mesma e à Nação de que os avanços conquistados na gestão de diversos problemas ambientais (aparentemente efetivos) podem e devem justificar sua permanência num ministério onde é constantemente desautorizada e considerada presença incômoda.

Água na fervura por enquanto, atentem porque o tema voltará à baila quando a poeira baixar.

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A baba-ovíssima vertente futebolística da grande imprensa paulistana este final de semana tratou de supervalorizar o episódio da substituição do atacante Edmundo, estrela maior do escrete palestrino, só porque saiu de campo no clássico contra o São Paulo sem cumprimentar o técnico Caio Júnior, que ficou que nem um bocó de bracinho esticado, esperando o aperto-de-mão que não veio. Reação, aliás, absolutamente normal de um jogador que tem sanha de bola. Mas os arautos do futebolzinho comportado e higiênico insistem em que, mesmo puto, o jogador tenha que demonstrar publicamente, para exemplo e instrução das novas gerações, simpatia, cordialidade e “espírito esportivo”. Às putas que os pariram! Por sua vez, o janotíssimo treinador perdeu excelente oportunidade de ficar de boquinha fechada, tendo em vista que sua importância histórica para o Palmeiras e sua projeção no futebol brasileiro não chegam aos calcanhares do endiabrado atacante. Atenção, pois, os atestadamente honrados e bem-intencionados (dou fé!) dirigentes atuais do futebol esmeraldino: Caio Júnior é sério e, mesmo sem demonstar até agora ser um grande gênio, tem-se apresentado apto a cumprir a tarefa que lhe está sendo confiada. Ajudêmo-lo, pois, a ter a dimensão mais nítida das proporções em sede da realidade do futebol atual, e estaremos ajudando a gloriosa Sociedade Esportiva Palmeiras.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

A existência possível (cont.)

(Parte III)


Dominação e formalização

Pudemos até o presente momento estabelecer as limitações do pensamento conservador no tocante à superação dos elementos negativos de uma determinada forma de organização da vida social que não sejam decorrentes exclusivamente de problemas de gestão adequada dos modelos, mas que sejam geradas pela própria estrutura dessas formas organizativas, como a questão do empobrecimento progressivo do proletariado nas formas primeiras do capitalismo industrial ou a da perda da liberdade individual nos países de experiência socialista. Advogamos a necessidade da crítica dialética que questione radicalmente, sem pruridos intelectuais, o próprio estatuto, legitimidade e limitações dessas estruturas sociais.

Cabe perguntar, nesta hora, por quê, ante a evidência do estado de degeneração social que se observa na esmagadora maior parte das sociedades humanas modernas, é tão difícil ao senso comum de nosso tempo, primeiro, aceitar que essas mazelas possam derivar das próprias estruturas da organização social; e, em, conseqüência, admitir a necessidade de uma negação radical das mesmas. Em outras palavras, por que o pensamento conservador é hegemônico.

Há que se ter em mente, o fato lógico anteriormente apontado de que um ideal que foi revolucionário se passa a conservador tão logo a revolução preconizada se consume. Isso sempre se dará quando não se tratar de uma procura incessante por formas mais elevadas de existência (função do pensamento crítico), mas tão somente uma negação específca de determinadas estruturas particularmente contrárias aos interesses/exigências dos agentes revolucionários (trate-se da burguesia pré-industrial do século XVIII ou o Partido Bolchevique) que, ipso facto, passam a hegemônicos. Principia, a partir de então, como Marx tão bem caracteriza na Ideologia Alemã, o desenrolar de um processo fortemente ideológico de transformação do que era interesse particular de um determinado grupo em interesse geral, sem o quê, por óbvio, a hegemonia das novas formas organizativas não conseguiria se impor ante a uma maioria que permanecesse indefinidamente preterida, excluída, alijada, tendendo ao saudosismo das antigas formas abolidas.

Ora, no princípio da era capitalista, a filosofia política tratou de cumprir esse papel retratando um mundo antigo (ainda que hipotético ou mítico) de selvagerias e guerras e fome e doenças contrastado com o reino da liberdade e da segurança sob o contrato social. Um esforço muitíssimo bem engendrado para dar o nome de liberdade à submissão voluntária à ordem do estado, que passa por autores tão apartados em idéias e posturas como Hobbes, Rousseau, Kant ou Hegel. Paulatinamente foram se incorporando ao discurso oficial da ordem estatal-capitalista da modernidade as idéias de ordem, previsibilidade, padronização em oposição à barbárie desordenada de um mítico estado natural. Não é de outro modo que opera a ciência iluminista, procurando leis para descrever os fenômenos, prever os eventos futuros, com o intuito de dominá-los. Tanto na ordem jurídica como nas ciências naturais, a previsibilidade, o comportamento esperado, o estabelecimento de respostas-padrão, do sistema e dos indivíduos, são fortemente estimulados. Quanto mais passíveis de serem ordenados pelo sujeito cognoscente, que exerce o poder tanto sobre a natureza quanto sobre as forças sociais, mais garantida é a dominação.

Falar em dominação é falar em segurança. Falar em segurança é falar em dominação. É necessário que se domine a rebeldia, a imprevisão, a insubordinação para que eu tenha uma ordem jurídica e econômica estáveis. Não posso produzir se não estiver dominada a sanha expropriatória do soberano, a mutabilidade das leis de tributação e comércio. Não exercerei verdadeiro domínio sobre minha propriedade acumulada, se não puder estar seguro contra os salteadores e esbulhadores. Segurança e dominação. Dominação e segurança, presididas por um caráter francamente utilitarista (voltado para finalidades, para a eficiência). Não posso estar seguro sobre os resultados do meu experimento– e portanto, não poderei prever o comportamento dos fenômenos similares no futuro – se não for garantido que segui todos os procedimentos de antemão estabelecidos pela ortopraxia acadêmico-científica.

Porque simplesmente não é possível para que a produção de bens no âmbito do mercado se dê de maneira eficiente as regras do jogo poderem ser alteradas a todo momento, ao bel prazer de quem quer que seja (nem mesmo serão regras...). Nem é possível obter-se um adequado controle (padronização) sobre os comportamentos sociais se não houver regras postas de antemão que prevejam hipóteses abstratas e as correspondentes conseqüências: se não pagou a dívida, será executado; se cometeu um delito, irá para a cadeia. É desejável que sempre mais se possa ter um pequeno grau de variabilidade entre uma ação social-econômica e sua conseqüência. A dominação, seja no âmbito dos fenômenos naturais, seja no controle social, enseja, claramente, a padronização e formalização dos procedimentos tendentes a buscar as respostas do objeto a ser conhecido/dominado. Sujeito dominante e objeto dominado devidamente apartados, mediados por uma interface formalizada que garanta um grau mínimo de variabilidade, independentemente dos conteúdos materiais. A legitimação, no direito ou na ciência, vem da correção procedimental (formal): as regras de conduta são pré-definidas e só a sua fiel observância legitima tanto a ação social (princípio da anterioridade da norma jurídica ao fato) como o procedimento científico (método). Regras que possam ser constantemente rediscutidas não são regras!



Positividade e totalitarismo

Ora, o transcorrer do século XX mudou bastante a cara da ordem capitalista mundial. Contrariamente às análises econômicas do último Marx, as contradições do capitalismo industrial liberal não puseram termo a essa forma organizativa da sociedade do ponto de vista estrutural, baseada na apropriação privada da riqueza. Ao contrário, o capitalismo mostrou uma notável habilidade em absorver suas próprias contradições, digerí-las em seu pantagruélico ventre e vomitá-las em forma de positividades devidamente “amansadas”. A face mais evidente dessa capacidade diz respeito ao próprio proletariado, alçado de encarnação da negatividade essencial a denunciar a crueldade de um sistema de acumulação da riqueza, no âmbito do capitalismo industrial do século XIX, a “exemplo” de como as “correções necessárias” podem permitir que os benefícios do sistema se estendam também à classe detentora da força de trabalho: o estado providente de bem-estar. O grande agente da revolução anti-capitalista é “amansado” a partir da distributividade falaciosa dos benefícios da rede de proteção social.

Na sanha de tudo submeter, de universalizar a dominação e de neutralizar todas as resistências, o sistema estende seus tentáculos para muito além da organização econômica, política e na produção do conhecimento. Porque dominação pede, exige e se apraz com cada vez mais dominação. É de sua essência mais intrínseca, por lógica, que seu aperfeiçoamento implique na sua universalização: quanto menos resistência, mais eficiente; quanto mais universal, mais efetiva. A lógica da padronização, então, aliada à da acumulação de riqueza, coloniza todas as esferas da vida humana, traga todas as formas de existência, todas as manifestações do espírito e do engenho humano e mostra como pode tudo conformar a si própria. Qualquer resquício de espontaneidade (leia-se: de respostas não previsíveis), gratuidade (ações não voltadas para fins), formas de sociabilidade estabelecidas sobre um outro padrão que não o dos interesses formalmente mediados (vale dizer, mediados pelas formas privilegiadas de equivalência universal: o dinheiro e o “sujeito de direitos”) ou da conformação às regras procedimentais previamente estabelecidas, o sistema tratará de tragar para dentro do buraco negro. Ante qualquer forma alternativa de existência, o sistema sempre faz a sua oferta: dinheiro, equivalência, planificação, massificação. Por que fazer um carnaval de esmolambados sambando pelo simples prazer da diversão e da arte (espontâneo, gratuito), se é possível um mega-espetáculo que será vendido para os quatro cantos do mundo e possibilitará (?) a seus realizadores galgar posições na única escala possível na sociedade formalizada? A ideologia tende a se generalizar, a hegemonia é cada vez mais avassaladora: não há alternativa fora dessa lógica; a saída, portanto é conformar-se a ela e tentar obter sucesso na empreitada particular da acumulação de riqueza e de direitos.

A conseqüência dessa planificação no nível da consciência produz um discurso que tão bem nós conhecemos e pudemos experimentar em nosso próprio quintal. A depauperação do terceiro mundo não é mais um produto obrigatório da organização estrutural do capitalismo mundial; pelo contrário, é atribuída à falta de capitalismo, de “civilização”, de “modernidade”. Tragam o estado de direito, tragam a estabilidade democrática, tragam a racionalização produtiva em larga escala, tragam a tecnologia e tereis uma sociedade emancipada! Abram os mercados, privatizem as empresas, estimulem a concorrência: injetem capitalismo! O não funcionamento crônico das nações marginais não são fruto do processo espoliatório a que elas foram submetidas, nem da inadaptabilidade das instituições formalizadas frente a realidades histórico-culturais arqui-complexas; antes, defluem de sua incapacidade cultural de fazer valer o bom funcionamento dessas formas institucionais, mormente o capitalismo de mercado e a democracia liberal.

A disseminação indiscriminada da lógica do dinheiro e da dominação tende, pois, a neutralizar todas as negatividades, tudo o que apontaria para uma saída fora do sistema. Ele “cobre” qualquer proposta! O que se pode, assim, oferecer como uma outra existência possível? O pensamento único que tudo traga impede a transcendência não só do pensamento crítico, mas também dos desejos, sonhos, aspirações. Vale dizer: por que sonhar com uma distante sociedade justa se eu posso sonhar com a minha menos distante roupa de grife? Não preciso mudar o mundo para tê-la; pelo contrário, devo mais e mais me conformar às suas regras, para que obtenha o maior grau de eficiência dentro da proposta do sistema (acumular riqueza). Quando o desejo e o sonho também estão conformados a um grau adequado de previsibilidade (só posso desejar o que me é oferecido para tanto; jamais posso ser construtor do meu próprio sonho, do meu próprio desejo), devidamente formalizados pelas regras do mercado, negar os fundamentos do sistema é, aos seus olhos, também negar os sonhos e objetos de desejo que ele oferece. E se nada mais há além de suas fronteiras, seremos inevitavelmente acusados de negar a própria faculdade de desejar.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Eternidade I


E esse tudo em mim se fará outro
condensado o que já não pode mais ser sem
Inconcebida a ausência de si próprio.
Caminhos devenientes ao infinito
à sombra do adeus que a si mesma devora

Esguicham saudades das frestas entre átimos
Incompreensão necessária da distância irreal,
Absurdo em essência recendente de entrega
incondicional das aspirações de algum ser

Jorra pra fora esse teu grito de pertença
Acende ao mundo a negação do teu fim!
Clama por Aquela que te faz existir
na completa confusão das telas sob os olhares,
entregue o espírito à certeza de restar:

Pari-me, ó Mãe das minhas negações
Em ti – só em ti... – reconheço o que resiste
sobre os derretimentos dos meus nadas
Pódio reluzente da minha pobre deidade,
custódia da salvação que em mim opero

Clareia o entorno onde não estou
tragado p’ras entranhas de tua presença
a encampar minha pequenez observante
Embriagada.
Devota.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

Sob as bençãos do Gigante Negro


Não costumo fazer deste espaço, senão quando a excepcionalidade das circunstâncias o exigem, um lugar de trombetização pública das minhas peripécias pelos caminhos menos virtuais da existência. Em tempos de panóptico, sou mais da turma do owo. E tanto a malandragem como as lições das artes bélicas sempre me ensinaram que em trincheira não se coloca outdoor.

Quero apenas registrar, pois, à guiza de homenagem e agradecimento o que foi a presença desta verdadeira entidade do samba brasileiro entre nós nesta última sexta-feira, primeira função desta nova temporada que pretende reviver belos encontros de samba vividos pelos Inimigos do Batente na Barra Funda, berço da resistência popular na cidade de São Paulo. Todos os que lá estivemos - entre os quais gente que o conhece há décadas, como meus amigos Nézio Simões e Gilda - fomos unânimes em reconhecer: nunca "seu" Wilson Moreira contou tanta história! Tamanhamente esteve à vontade, de tal forma parecia integrado a nós, ao lugar, ao público, que no dia seguinte nossa sensação é a de ele que tivesse, de repente, chegado à casa dos filhos, e com a família toda reunida, netaiada correndo no meio da gente, começasse a nos transmitir um legado. As histórias que ali se ouviu certamente um dia completarão o mosaico dessa página maiúscula da História do samba escrita pelo Gigante de Realengo.

Tudo o que se disser a respeito de Wilson Moreira sempre será pouco. Como descrever a presença de um homem que reúne a plenitude de aspectos por vezes tão difíceis de conciliar como a força e a doçura, a grandeza e a humildade, a genialidade e o despojamento, a altivez e a simplicidade? O que dizer de sua beleza negra, da mansidão que vem de profunda sabedoria da vida, de sua paternal majestade, de sua generosidade sem limites? Não há palavras.

Só nos resta, pois, dizer obrigado. Pelo reconhecimento e pela benção ao nosso trabalho modesto, mas esforçado, levando a diante, com tantos outros companheiros, a bandeira do samba brasileiro. Pelo privilégio de nos fazer depositários de tantas histórias, de tantas lições de vida, de sabedoria e de samba. Mas sobretudo pela alegria de podermos desfrutar, por algumas horas que fosse, da sua presença que é força, é vida, é inspiração.

E um começo desses só faz aumentar a responsabilidade em relação à continuidade dessa idéia. A partir de junho, toda última sexta-feira do mês Anhangüera dá samba! Com as bençãos do padrinho Wilson Moreira!

Axé, Alicate!

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Como se fora um coração postiço

Rubem Braga


Nasceu, na doce Budapeste, um menino com o coração fora do peito. Porém – diz um Dr. Mereje – não foi o primeiro. Em São Paulo, há sete anos, nasceu também uma criança assim. “Tinha o coração fora do peito, como se fora um coração postiço.”

Como se fora um coração postiço... O menino paulista viveu quatro horas. Vamos supor que tenha nascido às cinco horas. Cinco horas! Cinco horas! Um meu amigo, por nome Carlos, diria:

-... a hora em que os bares fecham e todas as vitudes se negam....

Madrugada paulista. Boceja na rua o último cidadão que passou a noite inteira fazendo esforço para ser boêmio. Há uma esperança de bonde em todos os postes. Os sinais das esquinas – vermelhos, amarelos, verdes – verdes, amarelos, vermelhos, borram o ar de amarelo, de verde, de vermelho. Os olhos inquietos da madrugada. Frio. Um homem qualquer, parado por acaso no Viaduto do Chá, contempla lá embaixo umas pobres árvores que ninguém jamais nunca contemplou. Humildes pés de manacá, lá embaixo. Pouquinhas flores roxas e brancas. Humildes manacás, em fila, pequenos, tristes, artificiais. As esquinas piscam. O olho vermelho do sinal sonolento, tonto na cerração, pede um poema que ninguém faz. Apitos lá longe. Passam homens de cara lavada, pobres, com embrulhos de jornais debaixo do braço. Esta velha mulher que vai andando pensa em outras madrugadas. Nasceu, em uma casa distante, em um subúrbio adormecido, um menino com o coração fora do peito. Ainda é noite dentro do quarto fechado, abafado, com a lâmpada acesa, gente suada. Menino do coração fora do peito, você devia vir cá fora receber o beijo da madrugada.

Seis horas. O coração fora do peito bae docemente. Sete horas – o coração bate... Oito horas – que sol claro, que barulho na rua! - o coração bate...

Nove horas – morreu o menino do coração fora do peito. Fez bem em morrer, menino. O Dr. Mereje resmunga: "Filho de pais alcoólatras e sifilíticos..." Deixe falar o Dr. Mereje. Ele é um médico, você é o menino do coração fora do peito. Está morto. Os "pais alcoólatras e sifilíticos" fazem o enterro banal do anjinho suburbano. Mas que anjinho engraçado! - diz Nossa Senhora da Penha. O anjinho está no céu. Está no limbo, com o coração fora do peito. Os outros anjinhos olham espantados. O que é isso, seu paulista? Mas o menino do coração fora do peito está se rindo. Não responde nada. Podia contar a sua história: "o Dr. Mereje disse que..." - mas não conta. Está rindo, mas está triste. Os anjinhos todos querem saber. Então o menino diz:

- Ora, pinhões! Eu nasci com o coração fora do peito. Queria que ele batesse ao ar livre, ao sol, à chuva. Queria que ele batesse livre, bem na vista de toda a gente, dos homens, das moças. Queria que ele vivesse à luz, ao vento, que batesse a descoberto, fora da prisão, da escuridão do peito. Que batesse como uma rosa que o vento balança...

Os anjinhos todos do limbo perguntaram:

- Mas então, paulistinha do coração fora do peito, pra que é que você foi morrer?

O anjinho respondeu:

- Eu vi que não tinha jeito. Lá embaixo todo mundo carrega o coração dentro do peito. Bem escondido, no escuro, com paletó, colete, camisa, pele, ossos, carne cobrindo. O coração trabalha sem ninguém ver. Se ele ficar fora do peito é logo ferido e morto, não tem defesa.

Os anjinhos todos do limbo estavam com os olhos espantados. O paulistinha foi falando:

- E às vezes, minha gente, tem paletó, colete, camisa, pele, ossos, carne, e no fim disso tudo, lá no fundo do peito, no escuro, não tem nada, não tem coração nenhum. E quando eu nasci, o Dr. Mereje olhou meu coração livre, batendo, feito uma rosa que balança ao vento, e disse, sem saber o que dizia: "parece um coração postiço". Os homens todos, minha gente, são assim como o Dr. Mereje.

Os anjinhos estavam cada vez mais espantados. Pouco depois começaram a brincar de bandido e mocinho de cinema e aí, foi, acabou a história. Porém o menino estava aborrecido, foi dormir. Até agora, ele está dormindo. Deixa o anjinho dormir sono sossegado, Dr. Mereje!


in O conde e o passarinho, Rio de Janeiro: Record, 1982, pp 9-12


quarta-feira, 16 de maio de 2007

Leonor

Itamar Assumpção


Devagar com esse andor, Leonor
Casamento é muito caro
Eu sou compositor, cantor
Também sou autor
Falo mais de flor do que dor, Leonor
Mas não sou Roberto Carlos
Não tenho carro de boi, Leonor
Nem outro tipo de carro
Meu cachê é um horror, Leonor
Não sobra nem pro cigarro
(não tenho nem gravador!)

Não tenho nem gravador, Leonor
Meu São Benedito é de barro
Meu menu é feijão com arroz,
Que divido com mais dois, Leonor
Quando não falta trabalho
Viver somente de amor, Leonor
É tão lindo quanto precário
Tem que morar de favor, Leonor
Lá no bairro do Calvário
(o que eu tinha de valor...)

O que eu tinha de valor, Leonor
Dois gatos, três agasalhos
Cachecol de lã
Gibis do Tarzan
Gibis de terror, cobertor
Quatro jogos de baralho
Um macacão furta-cor, Leonor
Uma colcha de retalhos
O que não tá no penhor, Leonor
Foi pra casa do Carvalho
(devagar com esse andor!)

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Mosaico


Quarenta dias após a entrada em vigor da lei “Cara-limpa, bunda-suja”, de autoria do nosso iluminado burgomestre, cujo lema de “governo” (risos incontinentes) está na boca do povão (“silêncio pouco, meu chilique primeiro”), a imagem da cidade é a esperada. Os quitandeiros, açougueiros de bairro, barbeiros, donos de butiquins e mercadinhos tiveram que dar seu jeito e sumir com as placas alusivas a suas atividades comerciais, ofensivas aos olhos sensíveis do povo paulistano, sabidamente cultor da beleza e do equilíbrio estético – vide cartões postais da cidade como a Av. Paulista, o Minhocão do Tio Salim, a Av. do Estado pós-canalização do Tamanduateí e as obras-primas da arquitetura nas quais a nossa classe média faz questão de se empoleirar. Alguns até, demonstrando perfeita sintonia com a clareza de propósitos da legislação municipal, jogaram lonas pretas sobre seus estandartes publicitários, fazendo do ruim pior. Outros, de melhor gosto, como a padaria pertinho de casa, retiraram os toldos, placas e luminosos, deixando à mostra a beleza da fachada característica dos sobradões lapeanos do começo do século passado. Só que quem viu, viu. Dois dias depois, órfãos de uma certa exuberância visual, cobriram os frontais, de alto a baixo, de um mosaico de lajotinhas brancas e cor-de-abóbora da mais ordinária procedência. Enquanto isso, na sala de justiça, os postos de gasolina, bancos, grandes supermercados etc. continuam reafirmando por quarteirões inteiros, mais do que suas logomarcas, sua condição senhorial sobre esta terra de (quase) ninguém.

***

Os jornais estamparam esta semana as cores sombrias e degradantes de mais uma chacina na cidade de São Paulo, aqui pertinho, no Jaraguá, lugar de muitos quintais amigos há tempos. Sete jovens, o mais velho com 22 ou 23 anos, assassinados em praça pública, com requintes de perversidade e violência. Até aí, a gente vai sentindo mais uma punhalada dessa seqüência aparentemente interminável que sabemos nos há de matar, só restando esperar a hora em que vá parar de doer. A pérola da vez coube ao delegado responsável pela circunscrição onde ocorreu o crime. A “otoridade” (sem risos) disse, sem pudor, sem tentar disfarçar, como em outros tempos, que se trata de “briga de vagabundos”. Questionado sobre o fato de nenhuma das vítimas ter passagens policiais, ou sequer ser apontada por testemunhas ou informantes policiais como envolvida em atividades criminosas, o gênio da raça retruca ao repórter: “Você também não tem passagem pela polícia; não é por isso que não pode matar ninguém”, ou coisa que o valha, porque eu acabei de comer e não estou com vontade de abrir o jornal pra conferir. Como se a essa “pessoa” fosse dado emitir alguma opinião pessoal sobre o caráter do que deveria ser, numa civilização, tratado como tragédia. Como se a suposta condição de qualquer das vítimas tivesse um mínimo de relevância sobre a dimensão social e, sobretudo, jurídica do ocorrido e sobre seu conseqüente dever como agente público. Agora, só não sei é como explicar a um amigo suíço que o governador (risos amarelos) José Banana-de-Pijama Serra faz ouvidos de mercador e não toma absolutamente nenhuma providência em relação ao seu subordinado - pra não dizer preposto -, mais ocupado, certamente, em entronizar no posto máximo da emissora de televisão paulista a expressão privilegiada do chapa-branquismo tucano travestida de jornalista. Aquele a quem a querida Railídia, numa noite perdida de um buteco que ainda finge que existe, impediu que eu e Marcão Gramegna, bêbados como porcos, ministrássemos algumas lições de “convivência democrática” que meu avô austríaco me repassara, aprendidas de um velho lutador de circo.

***

A visita do Papa Bento XVI ao Brasil certamente nos possibilitaria reflexões de variadíssimas ordens, a grande maioria das quais incompatíveis com o caráter deste espaço. Só umazinha me permito compartilhar aqui: a desnudação impudica da indigência intelectual/cultural da grande imprensa brasileira. Porque se a completa falta de preparo e de compromisso com qualquer coisa que não seja o óbvio ululante (estou hoje sentindo prazer especial em abusar das expressões condenadas pelos manuais de redação, esses monumentos à cristalização das arbitrariedades irrefletidas, nome completo da burrice) nos é atirada à cara todos os dias, quando se está diante de qualquer fato cuja complexidade supere minimamente as análises futebolísticas ou as metáforas do magistrado supremo da nação, a disparidade chega às raias do intolerável. Veja-se o exemplo da nossa gloriosa Folha de S. Paulo a pobre menina rica dessa disnastia oriunda da pior combinação entre o servilismo, o favorecimento oficial e a padronização ideológica que campeou nos meios jornalísticos durante todo o século XX, representada por um time cuja braçadeira está atualmente nas mangas de um Clóvis Rossi da vida, aquele que domina com maestria inigualável a arte de não dizer absolutamente nada hoje e o inverso (veja-se que inverso não é contrário...) daqui algum tempo. Incompetente para tecer qualquer análise minimamente relevante do fenômeno reportado, perde-se pateticamente em carnavalizações de frases esparsas aqui e ali, venham elas do próprio pontífice, do presidente da República ou do monsenhor responsável pelo engraxamento dos sapatos escarlates de Sua Santidade; chegando, em sua sanha de explicar o que não precisa ou não deve ser explicado, onde nenhum homem jamais esteve. É de se guardar o quadrinho explicativo da edição de hoje sobre os trajes papais. Só faltaram, mesmo, os comentários do costureiro larápio, pra saber se o alemão está in ou out.

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A melancólica eliminação do time do Flamengo da Copa Libertadores dá a dimensão simbólica que faltava a algo que por si só sempre foi de uma evidência acaciana: a completa insignificância do campeonato estadual do Rio de Janeiro. Que de resto, diga-se de passagem, não difere substancialmente da banalidade dos outros vinte e sete que se espremem país afora nos primeiros meses do ano, como consolo para a enorme massa de times alijados das três divisões do campeonato nacional. Só não vê quem não quer, e acho bem bom, até, não querer. A comemoração de domingo é justíssima, válida, legítima e todas as outras adjetivações que estou com preguiça de procurar, jamais discutirei, bem como o aborrecimento dos vencidos. Acho, inclusive, invejável como os queridos amigos do Rio se relançam a paixões que julgava eu fossilizadas, mas se prova estarem até recentemente apenas em estado cataléptico. E é só a isso que se presta o derreado torneio, é o que procuro aqui firmar, um campeonato de três times, com a melhor das boas vontades. Aos botafoguenses restando, pois, segundo a interpretação otimista ou pessimista que leva a reputar-se o mesmo copo meio cheio ou meio vazio, comemorar o vice-campeonato, ou lamentar a penúltima colocação.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

No elo Noël


Eu ia deixar passar. Sabia que fariam melhor que eu. Mas o texto do meu amigo Luiz Antonio Simas inspirou-me a um pitaco rápido pelos setenta anos completos que o nosso querido Poeta da Vila foi morar no Orun.

Noel foi um homem de seu lugar e de seu tempo. Não é preciso dizer do quanto ele incorporou do espírito coletivo da cidade do Rio de Janeiro e como soube, como pouquíssimos mais, transformar tudo em arte. Arte que cumpre a tarefa fundamental de ritualmente colocar em relevo e possibilitar a celebração do que, de outro modo, ficaria perdido no turbilhão quotidiano que tudo traga. Mas foi fundamentalmente um homem de seu tempo, um tempo de transformação dos traços remanescentes da organização colonial da sociedade brasileira rumo à tão propalada "modernização". Entendendo e dominando a incipiente linguagem de massa então representada pelo disco e pelo rádio, sua personalidade despida dos preconceitos típicos da elite e dos estratos médios brasileiros, dada à comunicação e ao encontro, pôde ir ao encontro das fontes mais populares de nossa cultura musical. Com sensibilidade para perceber seu papel de “ponte” e a generosidade - que tanto outros não tiveram – para não simplesmente se apropriar do que colhia, foi figura fundamental para a consolidação de uma forma de samba que seria predominante nos meios de comunicação a partir de então. Percebendo que a forma dominante do samba então feito nos morros e demais redutos de compositores - compostos primordialmente para a roda, só com refrão, para que os versos fossem tirados na hora de improviso – não se adequava a um produto destinado à comercialização, demandando a fixação de sua forma definitiva, especializou-se em escrever as chamadas segundas partes para tantos sambas de compositores ditos “do morro”, como Ismael, Cartola, Canuto, entre outros. Assim, possibilitava que o samba brotado dessas fontes chegassem aos ouvidos do grande público, preservada a identidade de seus compositores e superada a diluição da identidade criadora que sempre caracterizou as formas tradicionais da criação popular.

Que Noël esteja conosco, em nossos sambas, em nossos bares, neste final de semana e sempre, e nos possa ajudar a entender que a nossa missão não é mais do que isso: sintonizados com o nosso tempo, fazermos a ponte entre o que nos foi legado e o que a nós sobreviverá. Porque tudo estará perdido no dia em que um elo da cadeia se romper completamente. Que nos ajude, enfim, a entender, de uma vez por todas, a despeito de todos os hermanos vianas que teimam em nos confundir, que a originalidade da forma brasileira de estar e agir no mundo não está em outro lugar senão nessa privilegiada capacidade de promover dialeticamente o encontro e a comunicação (em seu mais forte sentido), a integração e a preservação, a criação e a continuidade. E que tudo mais não passa dos frutos abençoados desse ventre generoso.

E com a vossa licença, vou ali tomar uma gelada na Visconde de Abaeté, camisa aberta, ventre livre, chinelo nos pés, por entre as notas das calçadas musicais, assobiando “Vila Isabel veste luto...”