(Parte III)
Dominação e formalização
Pudemos até o presente momento estabelecer as limitações do pensamento conservador no tocante à superação dos elementos negativos de uma determinada forma de organização da vida social que não sejam decorrentes exclusivamente de problemas de gestão adequada dos modelos, mas que sejam geradas pela própria estrutura dessas formas organizativas, como a questão do empobrecimento progressivo do proletariado nas formas primeiras do capitalismo industrial ou a da perda da liberdade individual nos países de experiência socialista. Advogamos a necessidade da crítica dialética que questione radicalmente, sem pruridos intelectuais, o próprio estatuto, legitimidade e limitações dessas estruturas sociais.
Cabe perguntar, nesta hora, por quê, ante a evidência do estado de degeneração social que se observa na esmagadora maior parte das sociedades humanas modernas, é tão difícil ao senso comum de nosso tempo, primeiro, aceitar que essas mazelas possam derivar das próprias estruturas da organização social; e, em, conseqüência, admitir a necessidade de uma negação radical das mesmas. Em outras palavras, por que o pensamento conservador é hegemônico.
Há que se ter em mente, o fato lógico anteriormente apontado de que um ideal que foi revolucionário se passa a conservador tão logo a revolução preconizada se consume. Isso sempre se dará quando não se tratar de uma procura incessante por formas mais elevadas de existência (função do pensamento crítico), mas tão somente uma negação específca de determinadas estruturas particularmente contrárias aos interesses/exigências dos agentes revolucionários (trate-se da burguesia pré-industrial do século XVIII ou o Partido Bolchevique) que, ipso facto, passam a hegemônicos. Principia, a partir de então, como Marx tão bem caracteriza na Ideologia Alemã, o desenrolar de um processo fortemente ideológico de transformação do que era interesse particular de um determinado grupo em interesse geral, sem o quê, por óbvio, a hegemonia das novas formas organizativas não conseguiria se impor ante a uma maioria que permanecesse indefinidamente preterida, excluída, alijada, tendendo ao saudosismo das antigas formas abolidas.
Ora, no princípio da era capitalista, a filosofia política tratou de cumprir esse papel retratando um mundo antigo (ainda que hipotético ou mítico) de selvagerias e guerras e fome e doenças contrastado com o reino da liberdade e da segurança sob o contrato social. Um esforço muitíssimo bem engendrado para dar o nome de liberdade à submissão voluntária à ordem do estado, que passa por autores tão apartados em idéias e posturas como Hobbes, Rousseau, Kant ou Hegel. Paulatinamente foram se incorporando ao discurso oficial da ordem estatal-capitalista da modernidade as idéias de ordem, previsibilidade, padronização em oposição à barbárie desordenada de um mítico estado natural. Não é de outro modo que opera a ciência iluminista, procurando leis para descrever os fenômenos, prever os eventos futuros, com o intuito de dominá-los. Tanto na ordem jurídica como nas ciências naturais, a previsibilidade, o comportamento esperado, o estabelecimento de respostas-padrão, do sistema e dos indivíduos, são fortemente estimulados. Quanto mais passíveis de serem ordenados pelo sujeito cognoscente, que exerce o poder tanto sobre a natureza quanto sobre as forças sociais, mais garantida é a dominação.
Falar em dominação é falar em segurança. Falar em segurança é falar em dominação. É necessário que se domine a rebeldia, a imprevisão, a insubordinação para que eu tenha uma ordem jurídica e econômica estáveis. Não posso produzir se não estiver dominada a sanha expropriatória do soberano, a mutabilidade das leis de tributação e comércio. Não exercerei verdadeiro domínio sobre minha propriedade acumulada, se não puder estar seguro contra os salteadores e esbulhadores. Segurança e dominação. Dominação e segurança, presididas por um caráter francamente utilitarista (voltado para finalidades, para a eficiência). Não posso estar seguro sobre os resultados do meu experimento– e portanto, não poderei prever o comportamento dos fenômenos similares no futuro – se não for garantido que segui todos os procedimentos de antemão estabelecidos pela ortopraxia acadêmico-científica.
Porque simplesmente não é possível para que a produção de bens no âmbito do mercado se dê de maneira eficiente as regras do jogo poderem ser alteradas a todo momento, ao bel prazer de quem quer que seja (nem mesmo serão regras...). Nem é possível obter-se um adequado controle (padronização) sobre os comportamentos sociais se não houver regras postas de antemão que prevejam hipóteses abstratas e as correspondentes conseqüências: se não pagou a dívida, será executado; se cometeu um delito, irá para a cadeia. É desejável que sempre mais se possa ter um pequeno grau de variabilidade entre uma ação social-econômica e sua conseqüência. A dominação, seja no âmbito dos fenômenos naturais, seja no controle social, enseja, claramente, a padronização e formalização dos procedimentos tendentes a buscar as respostas do objeto a ser conhecido/dominado. Sujeito dominante e objeto dominado devidamente apartados, mediados por uma interface formalizada que garanta um grau mínimo de variabilidade, independentemente dos conteúdos materiais. A legitimação, no direito ou na ciência, vem da correção procedimental (formal): as regras de conduta são pré-definidas e só a sua fiel observância legitima tanto a ação social (princípio da anterioridade da norma jurídica ao fato) como o procedimento científico (método). Regras que possam ser constantemente rediscutidas não são regras!
Positividade e totalitarismo
Ora, o transcorrer do século XX mudou bastante a cara da ordem capitalista mundial. Contrariamente às análises econômicas do último Marx, as contradições do capitalismo industrial liberal não puseram termo a essa forma organizativa da sociedade do ponto de vista estrutural, baseada na apropriação privada da riqueza. Ao contrário, o capitalismo mostrou uma notável habilidade em absorver suas próprias contradições, digerí-las em seu pantagruélico ventre e vomitá-las em forma de positividades devidamente “amansadas”. A face mais evidente dessa capacidade diz respeito ao próprio proletariado, alçado de encarnação da negatividade essencial a denunciar a crueldade de um sistema de acumulação da riqueza, no âmbito do capitalismo industrial do século XIX, a “exemplo” de como as “correções necessárias” podem permitir que os benefícios do sistema se estendam também à classe detentora da força de trabalho: o estado providente de bem-estar. O grande agente da revolução anti-capitalista é “amansado” a partir da distributividade falaciosa dos benefícios da rede de proteção social.
Na sanha de tudo submeter, de universalizar a dominação e de neutralizar todas as resistências, o sistema estende seus tentáculos para muito além da organização econômica, política e na produção do conhecimento. Porque dominação pede, exige e se apraz com cada vez mais dominação. É de sua essência mais intrínseca, por lógica, que seu aperfeiçoamento implique na sua universalização: quanto menos resistência, mais eficiente; quanto mais universal, mais efetiva. A lógica da padronização, então, aliada à da acumulação de riqueza, coloniza todas as esferas da vida humana, traga todas as formas de existência, todas as manifestações do espírito e do engenho humano e mostra como pode tudo conformar a si própria. Qualquer resquício de espontaneidade (leia-se: de respostas não previsíveis), gratuidade (ações não voltadas para fins), formas de sociabilidade estabelecidas sobre um outro padrão que não o dos interesses formalmente mediados (vale dizer, mediados pelas formas privilegiadas de equivalência universal: o dinheiro e o “sujeito de direitos”) ou da conformação às regras procedimentais previamente estabelecidas, o sistema tratará de tragar para dentro do buraco negro. Ante qualquer forma alternativa de existência, o sistema sempre faz a sua oferta: dinheiro, equivalência, planificação, massificação. Por que fazer um carnaval de esmolambados sambando pelo simples prazer da diversão e da arte (espontâneo, gratuito), se é possível um mega-espetáculo que será vendido para os quatro cantos do mundo e possibilitará (?) a seus realizadores galgar posições na única escala possível na sociedade formalizada? A ideologia tende a se generalizar, a hegemonia é cada vez mais avassaladora: não há alternativa fora dessa lógica; a saída, portanto é conformar-se a ela e tentar obter sucesso na empreitada particular da acumulação de riqueza e de direitos.
A conseqüência dessa planificação no nível da consciência produz um discurso que tão bem nós conhecemos e pudemos experimentar em nosso próprio quintal. A depauperação do terceiro mundo não é mais um produto obrigatório da organização estrutural do capitalismo mundial; pelo contrário, é atribuída à falta de capitalismo, de “civilização”, de “modernidade”. Tragam o estado de direito, tragam a estabilidade democrática, tragam a racionalização produtiva em larga escala, tragam a tecnologia e tereis uma sociedade emancipada! Abram os mercados, privatizem as empresas, estimulem a concorrência: injetem capitalismo! O não funcionamento crônico das nações marginais não são fruto do processo espoliatório a que elas foram submetidas, nem da inadaptabilidade das instituições formalizadas frente a realidades histórico-culturais arqui-complexas; antes, defluem de sua incapacidade cultural de fazer valer o bom funcionamento dessas formas institucionais, mormente o capitalismo de mercado e a democracia liberal.
A disseminação indiscriminada da lógica do dinheiro e da dominação tende, pois, a neutralizar todas as negatividades, tudo o que apontaria para uma saída fora do sistema. Ele “cobre” qualquer proposta! O que se pode, assim, oferecer como uma outra existência possível? O pensamento único que tudo traga impede a transcendência não só do pensamento crítico, mas também dos desejos, sonhos, aspirações. Vale dizer: por que sonhar com uma distante sociedade justa se eu posso sonhar com a minha menos distante roupa de grife? Não preciso mudar o mundo para tê-la; pelo contrário, devo mais e mais me conformar às suas regras, para que obtenha o maior grau de eficiência dentro da proposta do sistema (acumular riqueza). Quando o desejo e o sonho também estão conformados a um grau adequado de previsibilidade (só posso desejar o que me é oferecido para tanto; jamais posso ser construtor do meu próprio sonho, do meu próprio desejo), devidamente formalizados pelas regras do mercado, negar os fundamentos do sistema é, aos seus olhos, também negar os sonhos e objetos de desejo que ele oferece. E se nada mais há além de suas fronteiras, seremos inevitavelmente acusados de negar a própria faculdade de desejar.
Caro Fernando!Meu comentário vai no convite:
ResponderExcluirTeu nome, com os acompanhantes que lhe convier estão na bilheteria do teatro.
O Cobrador (Rubem Fonseca)
Teatro X - Rui Barbosa, 399
Sex, sáb, 21:00h e dom 20:00h
Eu fiz a música do espetáculo.
Quando você quiser, ok? Estará em cartaz até o final de junho.
A imposibilidade do desejo virou cobrança e que cobrança. Abração
É por isso, meu velho, que o mestre Miltom Santos falava da importância da "sabedoria da escassez" como a possibilidade de subversão da lógica do capital, a partir da necessidade de (re)invenção da vida.
ResponderExcluirLembrei-me da passagem em que Rabelais relata a doença de Pantagruel, só curada com purgantes que o fazem urinar de tal maneira que o líquido quente acaba formando as fontes de águas termais de Itália e França. O grotesco, o exagero,a caricatura, a inversão de valores, dizia o mestre Bakhtin, possibilitavam a maior forma de subversão à cultura dominante do Estado e da Igreja no quinhentos: a subversão pelo riso, pela carnavalização do mundo, que escapa e afronta a lógica dos poderosos. A salvação, pois, está nas festas do povo, nas brincadeiras grosseiras e nas inversões de gostos e comportamentos que dinamizam e recriam, numa perspectiva necessariamente popular e anti-oficial, a vida.
beijo
Fernandão:
ResponderExcluircerto dia sou interpelado por um antigo amigo, na saída de uma pelada. Começa o cara, amigo de tempos colegiais, a vangloriar-se de todas as suas posses e, até certo ponto, zombar da minha "pequenez" em não querer: a) um lugar pra morar sozinho - isso aos 25 anos; b) um carro de luxo; c) conhecer as maravilhas do neoliberalismo na Europa e norte-América.
Respondi com uma certa cara de asco e discorri sobre os preceitos básicos - e bem básicos, já que é isso que meu conhecimento me permite - do processo comunista. Em princípio, fui chamado de utópico e conformado.
A partir daí, e explorando a contradição maior de se ocultar males capitalistas travestindo tudo o resto de utopia (como se o capitalismo mesmo não fosse o grande produtor das utopias), questionei por meia hora o porquê de tanto esforço em exaltar as desigualdades e explorações, distorcidas e tranformadas em sucesso.
Nesse meio tempo, escutei barbaridades como "o capitalismo se auto-regula" e "o trabalho recompensa". Parei a prosa por ali, porque vi que havia nele um discurso de séculos que, ainda hoje, se faz presente fortemente. E preferi, por enquanto, manter o amigo e tentar, aos poucos, impregná-lo de idéias um pouco menos conservadoras.
Saindo de lá, também entendi porque chego a passar quase um ano sem falar com ele, ainda que o considere de estima...
Abraços, e que sejamos sempre os "utópicos"!
Douglas: Obrigado pelo convite e pela presença por estas bandas. A gente aparece por lá, sem dúvida, e depois, quem sabe, encara uma rabada com macarrão no Damião, que à noite eu só como coisas leves.
ResponderExcluirVelho Simas: perfeito, perfeito. Eu vou chegar lá, acredite, e espero justificar esta necessidade de compartilhar convosco esta breve e árida genealogia conceitual. Mas não se trata de outra coisa, sem dúvida, do que "inventar a vida". É isso o que nos faz viver como seres humanos. E é disso que "eles" insistirão eternamente em nos privar. Chego lá!
Craudião: Você retrata exatamente o que é encarar a hegemonia do pensamento único, da idelologia que traveste o capitalismo de um sistema formal de justiça onde se dá bem quem melhor domina a lógica da eficiência. Ou seja: o pobre é pobre porque é ineficiente na tarefa de acumular riqueza. Não há espoliação, a desigualdade é fruto da ação reguladora das leis do mercado! Por mais que o pensamento crítico e outras vertentes desconstrutivas há mais de 150 anos pelejem para desmontar essa enorme falácia, apontando tudo o que de morte, tragédia, doença e destruição ela gera, os baba-ovos continuarão a achar, para alívio de suas consciências, que se trata de extirpar os maus-caracteres (horrível, mas é português, como diria o Otto Lara) e corrigir os desvios gerenciais da democracia e do capitalismo.