terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Ano Novo

Chico Buarque de Hollanda


O rei chegou
E já mandou tocar os sinos
Na cidade inteira
É pra cantar os hinos
Hastear bandeiras
E eu que sou menino
Muito obediente
Estava indiferente
Logo me comovo
Pra ficar contente
Porque é Ano Novo

Há muito tempo
Que essa minha gente
Vai vivendo a muque
É o mesmo batente
É o mesmo batuque
Já ficou descrente
É sempre o mesmo truque
E quem já viu de pé
O mesmo velho ovo
Hoje fica contente
Porque é Ano Novo

A minha nega me pediu um vestido
Novo e colorido
Pra comemorar
Eu disse:
Finja que não está descalça
Dance alguma valsa
Quero ser seu par
E ao meu amigo que não vê mais graça
Todo ano que passa
Só lhe faz chorar
Eu disse:
Homem, tenha seu orgulho
Não faça barulho
O rei não vai gostar

E quem for cego veja de repente
Todo o azul da vida
Quem estiver doente
Saia na corrida
Quem tiver presente
Traga o mais vistoso
Quem tiver juízo
Fique bem ditoso
Quem tiver sorriso
Fique lá na frente
Pois vendo valente
E tão leal seu povo
O rei fica contente
Porque é Ano Novo

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

No tempo dos quintais

Sivuca e Paulinho Tapajós


Era uma vez um tempo de pardais
De verde nos quintais
Faz muito tempo atrás
Quando ainda havia fadas...
No bonde havia um anjo pra guiar
Outro pra dar lugar
Pra quem chegar sentar
De duvidar, de admirar...

Havia frutos num pomar qualquer
De se tirar do pé
No tempo em que os casais
Podiam mais namorar
Nos lampiões de gás
Sem os ladrões atrás
Tempo em que o medo se chamou jamais!

Veio um marquês de uma terra já perdida
E era uma vez se fez dono da vida
Mandou buscar cem dúzias de avenidas
Pra expulsar de vez as margaridas
Por não ter filhos (talvez por nem gostar...)
Ou talvez por mania de mandar!

Só sei que enquanto houver os corações
Nem mesmo mil ladrões
Podem roubar canções
E deixa estar que há de voltar
O tempo dos pardais
De verde nos quintais
Tempo em que o medo se chamou jamais...


Em tributo ao maestro paraibano Severino Dias
de Oliveira, o imortal Sivuca, perda irreparável
para a música brasileira

sábado, 16 de dezembro de 2006

O pomar e o arroio *


Quem pôde ver a centelha
Luzir em outro dezembro
Esperança em fatiota vermelha
Teimosa ainda a brilhar
Sobre a lapa onde bruxuleava
A chama de Arroyo e Pomar?

Qual solo poderá recusar
Em resistências pudendas
Enfim se deixar fecundar
De dor tornada em apoio
Se transbordou para sempre
Um tão frutuoso arroio?

Qual fome não se sacia
Dos frutos que persistem
A despeito da vil covardia
Obstinadamente em brotar
Sob a sombra benfazeja
De um tão torrentoso pomar?

Da seiva tenaz do Araguaia
Quem poderia contar
Que tão desprezível laia
Gerasse o inominável joio
Entre o trigo mais bem cevado
Pra trair Pomar e Arroyo?

Qual infâmia deterá o Rio
Imenso de pororocas caudalosas
As margens opressoras a fio
Dia e noite a solapar
Amazonas de leito inundado
Do sangue de Arroyo e Pomar?


*Em honra aos heróis do povo brasileiro
Ângelo Arroyo e Pedro Pomar
nos 30 anos da Chacina da Lapa


terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Desencontro marcado


Por onde andará o que de mim
me despedi?
O que será daquele que disse sim
quando eu disse não?

Nosso impossível reencontro:
Julgamento definitivo
Sentença imediata
de aniquilação

O desencontro marcado
É o que de tudo nos salva
o que não foi

sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

Voltando o troco - Parte final

Dr. Sebastião ia chegando com o carrão importado, vidros “filmados”, e já no que contornou a rotatória viu a muvuca na porta do condomínio, o mais moderno daquelas bandas de Deltaville XIV:

-Vai lá, Djalma, ver que perereco é esse, que eu tou atrasado pra teleconferência.

O negrão Djalma voltou branco. A confusão era imensa, uma montanha de gente querendo entrar, a segurança segurando, a coisa já estava no nível do bate-boca e os ânimos se esquentando.

- Dotô, o negócio tá feio. Tá lá aquele homem da Tv, o Celio Burroumano, ele tá aprontando o maior banzé. Eu não queria dizer, não, mas eles querem falar é com o Sinhô...

-Tá maluco, Djalma? O que é que esses caras vão querer comigo? Sou um empresário de respeito, ora...

- Sei não, dotô, mas achava melhor a gente voltar só mais tarde.

- Que qué isso, ô Djalma? Não vou entrar na minha casa, agora? Sem chance, meu camarada. Pode pôr a geringonça pra acelerar.

O resignado Djalma fez o que o patrão mandou. E até que eles entraram sem maiores problemas, que o vidro preto não deixava ver dentro nem se tivesse pegando fogo. Mas foi pisar dentro de casa que o Dr. Sebastião não teve mesmo mais sossego. Ligava síndico, ligava vizinho, ligava repórter. Até aquele vereador que lhe havia quebrado o galho no episódio de uns terreninhos invadidos ali na área da sua jurisdição telefonou pra pedir que ele atendesse o tal apresentador. “Afinal, o senhor sabe, o homem agora é o deputado mais votado. E do meu partido! O senhor entende que a gente tem alguns compromissos...” Não teve jeito. Ficou acertado que seria permitida a sua entrada acompanhado de dois clientes queixosos do tratamento que vinham obtendo da Bica D'Água Seguros. E o câmera, naturalmente. Só pra dialogar, ninguém ali queria confusão, que afinal de contas é conversando que a gente se entende. E assim foi feito, ao vivo, diante de milhares e milhares de espectadores ferrados na audiência.

- Seu Jonahtan, qual a reclamação que o senhor tem a dirigir contra a empresa dirigida aí pelo Seu Sebatião?

- Olha, Seu Céllio, o senhor sabe como funciona esse negócio, num sabe? Tem que ser na base da confiança. Ou então não dá. Igual médico, padre, garçom de butiquim...

- Mas, afinal, Seu Jonahtan, o telespectador quer saber o que está havendo na realidade.

- Olha, no início, mil maravilhas. A gente pagava a mensalidade e adeus preocupações, cervejinha no butiquim até meia-noite, portão sem cadeado, carro parado de janela aberta. O cachorro morreu de velhinho e eu nem quis outro, que as meninas já tão grandes e o senhor sabe o que é chegar em casa meia-noite com umas três além da faixa de contenção e dar com aqueles olhos pidões clamando por uma voltinha pra aliviar as necessidades? Até a patroa andava mais relaxada, ficava no carteado na casa da vizinha, nem aparecia mais no Vira Três pra me resgatar. Até o dia em que a minha sogra foi roubada na esquina de casa. Preencheu no site o formulário de reclamação. Três vezes. No telefone, após meia hora, disque dois, disque nove, disque quatro, desistiu. Quis fazer a reclamação pessoalmente, mas em nenhum lugar descobria o endereço da sede da empresa.

- Seu Jonahtan, o senhor estava em dia com o pagamento das suas mensalidades?

- Mais que em dia, seu Célio, a gente pagava até adiantado, que isso aí pra gente era mais sagrado que qualquer coisa. Tenho três filhas moças, Deus o livre! Só uma vez a gente ficou uns mesinhos no atraso, naquele ano que eu perdi o emprego, mais foi a coisa normalizar que a gente não deixou de honrar uma mensalidadezinha. Ando até com o boleto pago na carteira, que é pra qualquer eventualidade.

- O senhor tem alguma coisa a dizer S. Sebastião?

- Olha, eu não posso acompanhar pessoalmente tudo o que se passa no atendimento aos nossos clientes, mas tenho certeza que o problema aí do cidadão deve estar relacionado a uma sobrecarga dos nossos operadores, que pode ser resolvida muito facilmente. Eu pessoalmente vou encaminhar o caso dele.

- Mas e quanto à sogra assaltada?

- Olha, seu deputado, tenho certeza absoluta que deve estar havendo algum engano. Na nossa área a cobertura é total, não existem pontos cegos. Não tem roubo na nossa jurisdição. Mas, assim mesmo, como o caso é especial, pelo trabalho todo que o amizade aí teve com o caso, eu mesmo já ordenarei o ressarcimento imediato de todos os prejuízos declarados e vou verificar o que aconteceu no dia do incidente.

- Está bem pro Senhor?

- Se é assim igual ao que ele tá falando...

- Estando bom para as duas partes, Célio Burroumano pro Jornal Regional.

Mas, contrariamente ao que na hora imaginara, tudo o que não ficou foi bom pro lado do nosso segurador popular. Aquele caso morreu ali mesmo. Sebastião apurou que a desgraçada da velha foi roubada mesmo uma rua pra baixo da linha delimitadora da área de cobertura, que é que ele podia fazer? Mas pra evitar essa gritaria na porta de casa, essa algazarra que o infeliz do apresentador fazia, achou melhor não discutir e pagar o preço da tranqüilidade. Mas qual o quê... Dali pra frente foi um tal de reclamação no rádio, na tevê, o tal do Burroumano marcando em cima que até o vereador se aborreceu (que afinal, devia satisfação também aos seus clientes...), carta pro jornal. Uma delas começava assim: “Eu e minha esposa, cidadãos de bem e pagadores dos nossos impostos, estamos indignados com o tratamento dado pela seguradora Bica D'Água...” Um reclamava do site, o outro, do telefone. Até ação na justiça teve pra obrigar o Tião a se responsabilizar pelos sinistros que não estavam no contrato, cliente seqüestrado fora da jurisdição, vê se pode? As “otoridades” assustadas com a intranqüilidade que começava a se instaurar, baixaram pro malandro uma resolução dizendo que seqüestro relâmpago na área tinha que estar na cobertura. Mas seqüestro normal, dentro e fora, só pra quem tivesse o plano antigo. E a mensalidade? Tinha que ver direito esses reajustes...

A situação do Bica D'Água, malandro perigoso daquele pedaço da antiga vila operária, hoje playground dos especuladores imobiliários, dali pra frente foi só ladeira abaixo: as normatizações todas, os sinistros falsos, o percentual no negócio que ele teve de ceder pro vereador, o outro pro apresentador-deputado. Até concorrência começou a pintar, e ele já não dava conta de zelar pela fidelidade de todos os seus comandados, assediados pelas promessas da abertura de mercado, vejam só. A margem de lucro despencou, uma parte dos clientes se bandiou. Desfez-se das propriedades, voltou pra área pra cuidar de perto dos negócios, ressuscitando o velho três-oito pra comandar pessoalmente umas operações de integralização do capital desvalorizado. Mas ali já não era mais nem sombra da poderosa organização que um dia vendeu o sonho de uma cidade sem violência.

E assim foi que foi que foi. E foi. Até que um dia ninguém mais ouviu falar dele. E até – mais – quando morreu seu Joaquim e os filhos resolveram reformar o Vira Três e transformar numa moderna lanchonete, forrada de uma lajota bem bonita, com letreiro de neon: Help's...

Final borgeano: quando muitos anos depois ainda perguntavam à D. Francisca se era verdade que aquele mendigo da praça, que virava todo dia três maria-moles, se ele tinha mesmo sido um poderoso empresário da contravenção oficial, o olho da velhíssima saloia brilhava de um sorriso assim - como direi? - meio úmido.