quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Tiro de Misericórdia mata João Bosco. Pois viva Aldir Blanc!

José Ramos Tinhorão


Em seu quarto LP, intitulado Tiro de Misericórdia (RCA Victor 103.0228), a dupla de compositores João Bosco e Aldir Blanc vem confirmar uma impressão que se reforçaria desde sua estréia, em 1973, até o ponto de uma conclusão definitiva a partir do terceiro disco, Galos de Briga, de 1976: embora o autor das músicas, João Bosco, ganhe as honras do estrelato, o grande artista da dupla é o autor das letras, Aldir Blanc.

De fato, basta ouvir com atenção as 11 faixas deste Tiro de Misericórdia para se perceber, num confronto de qualidades específicas, como o letrista Aldir Blanc é realmente um poeta, e seu pobre parceiro João Bosco não passa de um musiquim.

Experimentem acompanhar a audição de cada faixa separando a letra da música. O que nos mostram os versos de Aldir Blanc? Mostram não apenas um poeta moderno, armado em nível de mestre no artesanato das palavras, mas um observador profundo e fino das realidades brasileira e carioca, que sabe jogar com a linguagem popular para atingir ao refinado e preciso humor de um jogral especialista em escárnios e sirventes. A mesma linha de humor social que, passando por Gil Vicente, viria até a nossa linhagem de satiristas iniciada em Gregório de Matos Guerra e continuada em Martins Pena, em Manuel Antônio de Almeida e em França Júnior.

Assim, vamos ao Gênesis, que abre o LP, e vemos no Natal de mais um Jesus da pobreza malandra brasileira que ele nasce "de teimoso", em meio ao "Barro, ao invés de incenso e mirra", num dia em que "chovia canivete". Em Jogador, poema de estrutura enxuta, evitando até artigos e preposições, descobre-se a intenção descritiva do movimento de jogadores e assistentes de uma partida de sinuca (onde o jogador como que joga sempre a própria vida em cada partida, porque aquela é sua arte e sustento): "Olha a mesa,/Olha o quadro,/Olha firme/No olhar do parceiro.../Olha o taco,/Olha o roubo,/Confere o dinheiro/E não chia/Que bom jogador/Joga o jogo".
Naturalmente, as pessoas criadas em meios refinados, que nunca entraram num bar de sinuca, onde se reúne a humanidade descrita nos contos do livro Malagueta, Perus e Bacanaço, de João Antônio, esses pobres seres de vida empobrecida jamais perceberão em toda sua carga de sugestão o sentido dessa conclusão que esconde o segredo de um hai-kai popular: "Que o bom jogador/Joga o jogo". É o que há de mais orgulhoso e fatalista em matéria de filosofia que toma o jogo como vida: quer dizer, o bom jogador aceita o jogo das circunstâncias, para o melhor ou para o pior, porque, afinal, tem que ser assim porque será sempre assim, e "malandro que é malandro não estrila", e "bom cabrito não berra", e "o que tinha que ser já era".

Vai-se ao Falso Brilhante e encontra-se esta jóia de poesia verdadeira: "O amor/Sempre foi o causador/Da queda da trapezista". Assim como em Tempos do Onça e da Fera se pode descobrir a velha imagem de Orestes Barbosa das "roupas comuns dependuradas" que "pareciam bandeiras agitadas", magicamente fundida na visão do avô que saía de casa envolto no carinho da família de Vila Isabel vestindo "o sol do quarador" e, passando entre as luzes e cores das roupas estendidas, pairava um momento pelo quintal como um duende "tecido em goiabeiras, sabiás,/Cigarras, vira-latas, e um amor...". Ouve-se o Sinal de Caim e depara-se com o achado de "E o revólver não pára,/E o chapéu do mocinho/Não cai da cabeça". Da mesma forma que em Vaso Ruim Não Quebra, com o achado poético dos versos: "Nossa paixão se amarrou/Que nem um nó na garganta" (com palmas especiais para a expressão "que nem"). Ouve-se Plataforma e lá está, a partir do título, toda uma proposta filosófico-política quase anárquica e algo idealista, mas de qualquer forma carregada de intenções de valorização da vida e das pessoas, que se deve querer como "passistas à vontade/que não dancem o minueto" (ditado pelas estruturas alienantes, naturalmente).

Depois desse exercício, recolocando o disco no prato, reouça-se o LP esquecendo as letras de Aldir Blanc e ouvindo as músicas feitas para elas, ou por elas vestidas. E o que soa, então, capaz de comparar-se musicalmente à originalidade e criatividade dos versos?

Para começar, o samba, Vaso Ruim Não Quebra é montado no início do sucesso de carnaval de 1950, Se é Pecado Sambar, de Manoel Santana, gravado por Marlene. Sinal de Caim é um samba-choro de fraseado tão batido nos primeiros anos em que esse gênero foi cultivado (ou seja, a partir de inícios da década de 30), que é possível cantar junto, logo à primeira vez que se ouve. Tempo do Onça e da Fera é um samba-canção da era de influência dos fox-blues cultivado por Dick Farney, a quem deveria ser entregue a interpretação desta música, se não fosse abusar dos contrastes ideológicos. Jogador é um reles sambinha de bossa nova imitando o popular. Tiro de Misericórdia e Gênesis são espécies de macumbas-para-turistas-musicais, no sentido da crítica de Oswald de Andrade. E, finalmente, Falso Brilhante, Bijuterias e Tabelas são boleros, gênero em que, realmente, João Bosco se revela à vontade.

Em conclusão - e considerando que o divórcio já foi aprovado - a melhor coisa que poderia acontecer em benefício da família da música popular brasileira mais respeitável seria a separação amigável entre João Bosco e Aldir Blanc. Afinal, como João Bosco há de concordar, fazer letras para boleros, samba-canções americanizados ou sambinhas com plec-plec de acompanhamento de violão bossa nova qualquer um faz. Por que gastar o imenso talento, sentido poético, de humor e de compreensão humana de Aldir Blanc com tão pouco?

(Jornal do Brasil, 14/01/1978)

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Ao Poeta, com uma Flor


Respeito, Poeta
no que traz
E derrama na face
e na fala
Fêmea do poder coator
A veneração
pela palavra

Sei-o não adorador
do Artifício
escultor do que vem só
Depois

Sei-o não submisso
aos poderes acolá
Renunciada geração
da dor Toda
- e derrota
Transferida

Sei-o, Poeta
Amante
Na inspiração devota
De um hálito aquele vital
Que de beber Ela nos dá ao
Somente

Sei-o que depôs
seivas
Faz-se
Existência de antes
Vença
escorrendo cevas
Se mente


[para o poeta Edson Coelho de Oliveira]