quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Quando o confete surgiu formaram um trust para valorizar o preço

Jota Efegê


Antes havia o entrudo. Era brutal, grosseiro. O Paiz, numa resenha de quarta-feira de cinzas, referente aos festejos carnavalescos de 1885, contra ele se manifestava a 18 de fevereiro condenando-o com veemência. Escrevia, então: “O entrudo, com sua brutal expansão, perturbou ainda a ordem dos folguedos, estragando as roupas mais vistosas e cuidadas e provocando desordens e rixas.” E prosseguia mostrando a violência daquilo a que chamavam divertimento: “Os amadores mais apaixonados não se contentavam com limões de qualquer diâmetro, era aos baldes d’água que brincavam”. Gracejo estúpido, selvagem, pois, como concluía o jornal, “algumas ruas ficaram completamente alagadas com o aguaceiro caído sobre os que por ela tiveram a infelicidade de passar”.

Assim, quando as autoridades atendendo aos reclamos de toda a imprensa e da maioria da população proibiram terminantemente o absurdo recreativo, os aplausos vieram de todos os lados. Surgia também aos poucos, anos depois, um acessório gracioso para animar os festejos de Momo na metrópole carioca: o confetti, grafado com dois tês, na fidelidade que se prestava à sua procedência parisiense. Isto em junho de 1892, quando foi realizado o Carnaval (transferido da época própria devido à febre amarela), e o aparecimento dos papeizinhos multicores foi saudado efusivamente. Logo, os comerciantes, que jamais dormiram no ponto, viram na novidade um meio de aumentar o faturamento. Formaram um trust, ou sindicato, como se dizia quando a pletora de americanismos ainda não vingara em nosso linguajar, para explorar a venda do novo produto carnavalesco.


Monopólio ou sindicato ou trust

Chegado ao Brasil como art nouveau, como o chique da festa carnavalesca e classificado pela imprensa como “inocente brincadeira, muito agradável e elegante”, os comerciantes que o importaram atraíram vultosa freguesia. Alguns o vendiam a 2$000 (dois mil réis) o quilo. Outros cobravam mais e justificavam que seus confetti eram “parisienses genuínos, de variadas cores políticas, sem areia nem salicilato, nem papéis de jornais”. Justificavam com esse esclarecimento o seu preço de 3$000 e ao mesmo tempo deixavam claro que alguns concorrentes adicionavam corpos estranhos ao produto possivelmente não legítimo, não genuíno de Paris. Tudo no ambiente competitivo do meio, caracterizando aquele tempo a hoje tão propalada ‘livre iniciativa’ e quando nem se sonhava com as malsinadas Cofapes, Cecépes, Sunabes e quejandas administrando operações mercantis.

Não satisfeitos com a crescente procura que o artigo tinha, os comerciantes tentavam mais ganho. Surgiu, portanto, no aludido O Paiz, de 21 de junho do citado ano, ao lado de uma notícia de que “diversos grupos pretendem fazer batalhas de confetti, como em Paris e Nice, hoje à tarde, entre as ruas do Ouvidor e Teatro”, nova denúncia. Tinha o título “Não dormem”, e dizia: “Acha-se em vias de formação uma companhia com o capital de 1.000 contos para explorar os confetti no próximo Carnaval. Mil contos!” Isto, porém, não era tudo. O mais grave aparecia em outro suelto, sempre no mesmo matutino e em igual data: “Consta ter sido formado, ontem, um sindicato para comprar todos os confetti parisiense existentes no Rio de Janeiro para aumentar o preço. Se tal acontecer, façam greve os compradores. Olho vivo.” Tinha-se, desse modo, o Carnaval através do gracioso confete propiciando o monopólio, o sindicato ou o agora chamado trust.


Restrição, minguante, sumiço

De grande procura em 1892, quando se assinalou seu aparecimento no Rio ao mesmo tempo que nas cidades européias, o confete, já com a grafia abrasileirada, chega aos nossos dias mas sem o domínio de outrora. Agora ele vem rareando e já não acontece – como nos fala Eneida em sua História do Carnaval carioca - “a rua do Ouvidor e adjacências ficaram, em alguns pontos, como verdadeiras alcatifas de confete de 30 e mais centímetros de espessura”. Os arremessos que antes se faziam fartos, as mãos transbordantes, são agora parcos e caem sobre os alvejados como chuvinha miúda, quase permitindo que se identifique as cores e a quantidade numa conta exatae capaz de não ultrapassar duas ou três dezenas.

De origem discutida, uns dão a Itália como sua procedência e ligam-no ao termo confetto, ao mesmo tempo que consignam a sua invenção a Ettore Fenderls, falecido em novembro último na cidade de Vittorio Venetto, na Itália, com 104 anos. Outros a contestam e apontam o comerciante francês Le Malin Cassin como o criador da novidade. Há mais a afirmativa de Morales de los Rios reivindicando para a Espanha a procedência e dando-lhe o nome simples e intuitivo de papelillos ao mesmo tempo que surge o abrasileiramento papelinhos ou papeizinhos para uso correntio. O certo é que o confete surgiu no Brasil como parisien, servindo de arma graciosa para batalhas e provocando a gula de comerciantes ávidos de um faturamento abundante. Objetivo que conseguiram unindo-se em um sindicato, ou falando modernamente, formando um trust.


(in Figuras e coisas do Carnaval carioca, Rio deJaneiro, Funarte, 1982, pp 86-88. Publicado originalmente em O Jornal, edição de 22 de janeiro de 1967)

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

São Paulo 454 anos: duas perdas, uma semente

O aniversário da cidade de São Paulo, passado no último dia 25 de janeiro, foi marcado pela perda de duas grandes figuras da vida da cidade e do Brasil. Como os jornalões, às de costume, silenciaram reiterando sua ignorância crassa das coisas do Brasil, cumprimos aqui humildemente a função de cronista.

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Morreu, aos 92 anos, na pequena cela que ocupava havia dezoito anos no Mosteiro de São Bento em São Paulo, Dom Cândido Padim, bispo emérito da diocese de Bauru, uma das grandes figuras da Igreja Católica e da resistência política no Brasil do século XX. Sua cultura extraordinária de advogado, teólogo, doutor em filosofia, educador, profundo conhecedor das ciências sociais e da história da América Latina, aliada ao seu caráter e coragem inquebrantáveis fizeram com que se excetuasse a regra de que beneditinos não são elevados ao episcopado. Com participações destacadas nos encontros de Puebla e Medelín, que marcaram a guinada da Igreja latino-americana para o engajamento social, foi um dos grandes responsáveis pelo papel ativo da Igreja brasileira na resistência à ditadura militar, ao lado de Tomás Balduíno, Pedro Casaldáliga, Paulo Evaristo Arns, Adriano Hipólito e Benedito Ulhôa Vieira. Valendo-se de sua condição de prelado, usou o púlpito da Sé de Bauru para as mais veementes e diretas denúncias contra as arbitrariedades do regime, tendo testemunhado em inúmeros inquéritos em favor de intelectuais e ativistas políticos perseguidos e processados. Sua obra mais conhecida, A doutrina de segurança nacional e a missão da Igreja, de 1973, foi a mais direta contestação teórica da lenga-lenga ideológica preconizada pelo funesto General Golbery, tascando-lhe abertamente, no auge da repressão, a pecha de autoritária e fascista. Seu engajamento incansável e insubmissão aos controles castradores da Cúria Romana valeram-lhe finalmente um veto papal à sua participação no encontro episcopal de Santo Domingo.

Do privilégio que tive de conviver consigo, no ambiente do mosteiro paulistano da virada dos anos 80 para 90, tão diferente dos dias que correm, comecei a aprender a preciosa lição que viria finalmente a entender anos depois, com Mãe Stella de Oxóssi: de que qualquer que seja a matriz da sabedoria que fazemos por acumular, ela tem de ser colocada incondicionalmente a serviço do ser humano.

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Foi-se também no dia 24, aos 91, o grande violonista Antônio Rago, talvez a última das figuras legendárias do velho bairro paulistano do Bixiga. Foi na música popular da chamada época de ouro, por intermédio de seus maiores influenciadores, Américo "Canhoto" Jacomino e Armandinho, que o "Mago do violão" inscreveu seu nome entre os grandes, como acompanhante "oficial" dos maiores nomes da era do rádio e como autor de mais de 400 composições gravadas, incluindo parcerias com Adoniran Barbosa. Foi no rádio, aliás, e depois na televisão, que consagrou-se definitivamente como diretor musical, produtor e apresentador. Tendo acompanhado Francisco Alves na célebre apresentação do Largo da Concórdia, em São Paulo, em cujo regresso ao Rio o Rei da Voz sofreria o acidente fatal que o vitimou, sempre alardeou ter em vão tentado convencê-lo a não partir, permanecendo para mais um espetáculo dali a dois dias. Gabava-se também de ter sido o introdutor do violão elétrico na música brasileira.


Nos últimos anos, radicou-se em cidades do interior de São Paulo, para encerrar sua carreira em Santos, onde até há pouco apresentava seu programa semanal na Rádio Cacique, lecionava violão e fazia gravações solo.

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Nem tudo são cinzas neste pré-carnaval paulistano. Quem ficou, viu, em pleno feriado, a plúmbea metrópole de manguinhas de fora, reunindo gente, muita gente fantasiada, embalada por sambas, frevos e marchinhas. Viu milhares de pessoas pararem a Vila Madalena, nos Blocos do Ó, dos Filhos de Mamããis , do Kolombolo e no grito de carnaval da Pérola Negra. Viu o Cordão Bibi-tantã e o ajuntamento de diversidades na incansável Rua General Osório.

Quando passei o primeiro dos meus vinte carnavais no Rio de Janeiro, o glorioso e então septuagenário Cordão da Bola Preta reunia de cinco a sete mil pessoas. Hoje são quatrocentas mil. Havia a Banda de Ipanema, muito mais pra embrião das paradas multi-coloridas de hoje do que pra Carnaval, uma dúzia de bandas e blocos guerreiros de bairro e uns bate-bolas espalhados pelo subúrbio. Hoje são mais de quatrocentos blocos. Então, senhores, mesmo que estejamos tão longe do Rio de Janeiro, em tantos sentidos, há esperança.

O paulistano redescobre seu gosto pelo Carnaval de rua. Uma hora, nem prefeitura, nem c.e.t. (assim, bem minúscula – que o verdadeiro e único Senhor dos Caminhos cuide deles!) e nem a ignorância crassa dos "formadores" (pausa para risos urológicos) de opinião vão conseguir segurar.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Um jardim


"Uma rosa é uma rosa é uma rosa", teve ocasião de esclarecer-nos oportunamente a grande Gertrude Stein, com a perspicácia única e ululante dos poetas. Sem muitos riscos lógicos, só os inevitáveis, creio-me seja permitido afirmar, pois então, que um jardim é um jardim é um jardim.

Voltei a querer um jardim, sabem? Um jardim honesto, eis o desejo, mais que idéia, que me vem assaltando. Sem intenções, sem obrigações – porque a casa, mais que a vida, é minha: apenas um bom e velho – sobretudo! – jardim. Onde se possa minimamente dispor flores e pedras e reticências. E um banco. Não é possível, ou se é, não tem a menor graça, um jardim sem um banco.

Os há muito, hoje em dia, jardins. Mas raramente guardam a simplicidade existente dos velhos jardins; que não se davam a utilidades, e menos ainda a bazófias.

Que haja, pois, um jardim com um banco com um eu no banco no jardim. Que o jardim exista para ser disponível ao jardineiro e aos olhos passantes. Menos aos olhos concretos do que aos possíveis... Simplesmente, assim.

Um jardim.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Navio desengano

(Wilson Moreira e Paulo George)


Navegando eu vou levando meu navio desengano
Passa ano, entra ano, meu amor se acabando
Navegando eu vou levando meu navio desengano
Passa ano, entra ano, meu amor se acabando

O meu mar que era infinito
é um lago tão pequeno
Teu amor que era bonito
é um oceano de veneno
Minha rota é meu punhal
Aos pouco vou naufragando
É que eu vou carregando
A dor do mundo e todo mal
É que eu vou carregando
A dor do mundo e todo mal

Navegando eu vou levando meu navio desengano
Passa ano, entra ano, meu amor se acabando
Navegando eu vou levando meu navio desengano
Passa ano, entra ano, meu amor se acabando

Correndo do que vivi sonhando
Um dia fui bem no fundo das águas
As mágoas estão no mundo
todas vão se misturando
Quem sabe se de repente
você vem nessa enchente
E depois da tempestade me navega amando