O aniversário da cidade de São Paulo, passado no último dia 25 de janeiro, foi marcado pela perda de duas grandes figuras da vida da cidade e do Brasil. Como os jornalões, às de costume, silenciaram reiterando sua ignorância crassa das coisas do Brasil, cumprimos aqui humildemente a função de cronista.
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Morreu, aos 92 anos, na pequena cela que ocupava havia dezoito anos no Mosteiro de São Bento em São Paulo, Dom Cândido Padim, bispo emérito da diocese de Bauru, uma das grandes figuras da Igreja Católica e da resistência política no Brasil do século XX. Sua cultura extraordinária de advogado, teólogo, doutor em filosofia, educador, profundo conhecedor das ciências sociais e da história da América Latina, aliada ao seu caráter e coragem inquebrantáveis fizeram com que se excetuasse a regra de que beneditinos não são elevados ao episcopado. Com participações destacadas nos encontros de Puebla e Medelín, que marcaram a guinada da Igreja latino-americana para o engajamento social, foi um dos grandes responsáveis pelo papel ativo da Igreja brasileira na resistência à ditadura militar, ao lado de Tomás Balduíno, Pedro Casaldáliga, Paulo Evaristo Arns, Adriano Hipólito e Benedito Ulhôa Vieira. Valendo-se de sua condição de prelado, usou o púlpito da Sé de Bauru para as mais veementes e diretas denúncias contra as arbitrariedades do regime, tendo testemunhado em inúmeros inquéritos em favor de intelectuais e ativistas políticos perseguidos e processados. Sua obra mais conhecida, A doutrina de segurança nacional e a missão da Igreja, de 1973, foi a mais direta contestação teórica da lenga-lenga ideológica preconizada pelo funesto General Golbery, tascando-lhe abertamente, no auge da repressão, a pecha de autoritária e fascista. Seu engajamento incansável e insubmissão aos controles castradores da Cúria Romana valeram-lhe finalmente um veto papal à sua participação no encontro episcopal de Santo Domingo.
Do privilégio que tive de conviver consigo, no ambiente do mosteiro paulistano da virada dos anos 80 para 90, tão diferente dos dias que correm, comecei a aprender a preciosa lição que viria finalmente a entender anos depois, com Mãe Stella de Oxóssi: de que qualquer que seja a matriz da sabedoria que fazemos por acumular, ela tem de ser colocada incondicionalmente a serviço do ser humano.
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Foi-se também no dia 24, aos 91, o grande violonista Antônio Rago, talvez a última das figuras legendárias do velho bairro paulistano do Bixiga. Foi na música popular da chamada época de ouro, por intermédio de seus maiores influenciadores, Américo "Canhoto" Jacomino e Armandinho, que o "Mago do violão" inscreveu seu nome entre os grandes, como acompanhante "oficial" dos maiores nomes da era do rádio e como autor de mais de 400 composições gravadas, incluindo parcerias com Adoniran Barbosa. Foi no rádio, aliás, e depois na televisão, que consagrou-se definitivamente como diretor musical, produtor e apresentador. Tendo acompanhado Francisco Alves na célebre apresentação do Largo da Concórdia, em São Paulo, em cujo regresso ao Rio o Rei da Voz sofreria o acidente fatal que o vitimou, sempre alardeou ter em vão tentado convencê-lo a não partir, permanecendo para mais um espetáculo dali a dois dias. Gabava-se também de ter sido o introdutor do violão elétrico na música brasileira.
Nos últimos anos, radicou-se em cidades do interior de São Paulo, para encerrar sua carreira em Santos, onde até há pouco apresentava seu programa semanal na Rádio Cacique, lecionava violão e fazia gravações solo.
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Nem tudo são cinzas neste pré-carnaval paulistano. Quem ficou, viu, em pleno feriado, a plúmbea metrópole de manguinhas de fora, reunindo gente, muita gente fantasiada, embalada por sambas, frevos e marchinhas. Viu milhares de pessoas pararem a Vila Madalena, nos Blocos do Ó, dos Filhos de Mamããis , do Kolombolo e no grito de carnaval da Pérola Negra. Viu o Cordão Bibi-tantã e o ajuntamento de diversidades na incansável Rua General Osório.
Quando passei o primeiro dos meus vinte carnavais no Rio de Janeiro, o glorioso e então septuagenário Cordão da Bola Preta reunia de cinco a sete mil pessoas. Hoje são quatrocentas mil. Havia a Banda de Ipanema, muito mais pra embrião das paradas multi-coloridas de hoje do que pra Carnaval, uma dúzia de bandas e blocos guerreiros de bairro e uns bate-bolas espalhados pelo subúrbio. Hoje são mais de quatrocentos blocos. Então, senhores, mesmo que estejamos tão longe do Rio de Janeiro, em tantos sentidos, há esperança.
O paulistano redescobre seu gosto pelo Carnaval de rua. Uma hora, nem prefeitura, nem c.e.t. (assim, bem minúscula – que o verdadeiro e único Senhor dos Caminhos cuide deles!) e nem a ignorância crassa dos "formadores" (pausa para risos urológicos) de opinião vão conseguir segurar.
Boa nova também é a sua volta ao blog, Fernandão!
ResponderExcluirE o Carnaval paulistano é feito por abnegados como você e todo o pessoal que se vira do avesso pra conseguir colocar bloco na rua. Mas também tenho esperanças de tempos melhores.
Dia 2, debuto no Bola.
Abraços!
Opa! Eu escrevi sobre a partida de Antônio Rago! A imprensa brasileira pode ter ignorado em peso a sua passagem. Eu não, querido! Eu não!
ResponderExcluirPS: Bom tê-lo de volta, hermano. Muito, muito bom.
Caríssimo Bruno, irmão-camarada-companheiro de trincheira, se você está querendo um merecido confetezinho, lá vai, que afinal é Carnaval: é claro que você é uma honrosíssima exceção (que de mais a mais só confirma a regra), entre as cada vez mais raras na atualidade do jornalismo brasileiro. Se eu tivesse lido (continuo sem encontrar o Correio por aqui...), certamente faria o registro.
ResponderExcluirAbraço forte e saudoso!