sábado, 28 de maio de 2005

Mais Sindô


Complemento algumas informações sobre o grande Hélio Sindô, sobre quem escrevi semana passada, haja vista que a oficialidade (é impressionante como mesmo a marginália do grande sistema tem as suas "oficialidades" particulares...) não está nem aí.

O velho violonista e compositor nasceu na cidade de Senador Pompeu, CE, no dia 07 de outubro de 1919 e morreu no último dia 09 de maio, com 85 anos, portanto.

Gravou na Contiental seu primeiro disco: "Divina Dama", samba (Henricão - Raul Marques - Buci Moreira) e "Vem ao Rio, Rita", samba (Antônio Ferreira da Silva - João Rosa - Correia Filho). Gravou ainda "O costume dela", samba (Hélio Sindô - Arlindo Pinto), "Grande Bahia", samba (Avaré - Adoniran Barbosa), "China chou", marcha (Jair Gonçalves - Hélio Sindô), "Asa negra", samba (Adoniran Barbosa), "Minha promessa", samba (Soriano - Boris), "Boogie-woogie não é samba", samba (Hélio Sindô), "Kikiricó", marcha (Arlindo pinto - Waldomiro Lobo), "Porteiro de cabaré", samba (Osvaldo França - Conde - B. França), "É de Bangu", samba (Hélio Sindô - Carlos Armando), "Marcha do tubarão", marcha (Hélio Sindô - Capitão Balduíno), "Vai dormir teu sono", samba (Heitor de Barros - Conde), "Italiana", marcha (Ciro de Sousa), "Quem é o presidente?", samba (Ciro ed Sousa), "Falso amigo", samba (Conde - Brioso), "Embrulho", samba (Djalma Mafra - Alaviade), "Medo da onda", marcha (Reinaldo dos Santos - Hélio Sindô), "Ai, se eu fosse português", samba (Hélio Sindô - Boca - Noel Victor), "Falaram tanto", samba (Hélio Sindô - Conde), "Pobre no pedir", samba (Djalma Mafra - Alvaiade), "Cabocla", samba (Arlindo Pinto - Hélio Sindô), "Sapato custa dinheiro", balanceio (Hélio Sindô - Carlos de Sousa), "Arrebenta a bexiga", samba (Mário Zan - Arlindo Pinto), "Ó Nesta", marcha (Ciro de Sousa - Polera), "Delator", samba (Hélio Sindô - Reinaldo Santos), "Vaca malhada", samba (Ciro de Sousa - Hélio Sindô), "Desapareceu", samba (Antônio Rago - Hélio Sindô), "Cachopa de branco", marcha (Jucata), "Tenho pena dela", samba (Raguinho - José Saccomani), "Triste caboclo", samba (Paraguassu), "Amor de palhaço", marcha (Orlando Monelo - Jucata), "É fingimento", samba (Júlio Nagib - Reizinho), "A volta do dobrado", dobrado (Mário Vieira - Arlindo Pinto), "Galicho ganhou", dobrado (J. E. Galvão de França - L. Ripoli Filho), "Veja você", samba (Rago - Totó), "Valete", marcha (Beduíno), "Pepita", marcha (Beduíno), "O Senhor me chamou", marcha (Hélio Sindô - Otelo Zeloni), "Flauta do Bartolo", marcha (Armando Rosas - Hélio Sindô), "Num banco de jardim", samba (Fernandes - Hélio Sindô), "Voltou o pombo correio", samba (Hélio Sindô - Ariowaldo Pires) e "Eu não posso acreditar", samba (Hélio Sindô - Domingos Romanelli).

Agradeço ao grande Roberto Lapiccirella pela preocupação constante e o carinho para com a memória do nosso grande patrimônio musical popular.

Quem tiver mais informações, peço ajuda para fazer neste canto um pequeno (e único) memorial em homenagem a esse belo personagem do nosso samba.

segunda-feira, 23 de maio de 2005

Sindô e Simon


Nos últimos dias, a música brasileira perdeu dois grandes personagens. Tão grandes quanto esquecidos.

Hélio Sindô (Hélio Rodrigues Sindeaux), paulistano de coração e cearense de nascimento, foi um dos grandes violonistas da noite desta cidade durante três décadas pelo menos. Intérprete, parceiro e amigo de Adoniran Barbosa, compositor importante, gravado por gente do tamanho de Aracy de Almeida, conheceu seu maior sucesso com o belo samba "E Você Não Dizia Nada" (com José Sacomani e Jorge Martins), gravado magistralmente por Gilberto Alves na década de 50.

Conheci o malandro pelos butiquins das Perdizes da década de 80, apresentado pelo meu irmãozinho Jason, cujo homônimo e saudoso pai - conhecido crooner de importantes casas de dança da noite paulistana como o Avenida e o Vila Sofia – com ele trabalhara durante duas décadas. O velho Sindô, então já caminhando para os 80, ainda tinha o violão e a voz seguros e as histórias na ponta da língua afiada. Dizia-se parceiro de Ataulfo Alves no famoso samba "Pois é...", mas nunca consegui uma confirmação dessa história, nem mesmo registro da parceria por qualquer meio.

E os descaminhos tão díspares e fortuitos da vida que me levaram a figuras maravilhosas da música brasileira, bem antes de eu ser intrometido como hoje (entre os quais o grande Roberto Ribeiro e, acima de qualquer outro, sua majestade Luiz Gonzaga), levaram-me também o compositor Victor Simon. Naquelas mesas do semi-finado Bom Motivo tomei com o velho bamba várias cachaças e lições. Como também numa madrugada, telefone no viva-voz, ele derramando mágoas, histórias e preciosas informações para o incansável Roberto Lapicirella, um dos grandes responsáveis pela memória deste e de outros personagens que honrada e competentemente fizeram a história e a grandeza da música popular brasileira não estarem completamente varridas do mapa. Muito diferentemente, aliás, de certas figuras que, recém-chegadas à cena, parecem julgar-se os responsáveis pela "redescoberta" da história da música brasileira, sem a menor preocupação com se suas acusações descabidas - certo motivadas mais por ignorância do que por qualquer indício de má-fé - possam levianamente enxovalhar a memória de um artista batalhador, honrado, competente e sofrido como Victor Simon. Leiam no texto abaixo, de autoria de alguém que escreve por que conhece e conhece porque estuda, a demonstração do descabimento dessa injuriosa afirmação.

Apesar dos belos currículos, nenhum dos dois malandros recém-embarcados para aquela estação de onde nunca se volta é sequer mencionado, por exemplo, na Enciclopédia de Música Brasileira, nem tampouco no empavonado Dicionário Cravo Albin. Possivelmente por darem menos ibope - ou dinheiro - do que o Simoninha e o Max de Castro, esses devidamente agraciados com os competentes verbetes.

Ante o descaso dos grandes e a incúria dos pequenos, deixo-vos com quem sabe das coisas, trabalha sério e não gosta de aparecer. Com vocês, Victor Simon pelas mãos seguras do meu querido amigo Caio Silveira Ramos.

Victor Simon

Caio Silveira Ramos


Victor Simon por Roberto Lapicirella

Já era noite alta, o telefone tocou e a voz envelhada chegou como se abrisse a porta e sentasse no sofá: "Boa noite, aqui quem fala é o Victor Simon, quem me deu seu número foi o Osvaldinho da Cuíca. Eu queria participar do Festival de Música da TV Globo: vamos fazer um samba ?" Duvidei, não podia ser. Conhecia a fama do homem, compositor famoso das décadas de 40, 50 e 60. Que fazia ali na minha sala ? Mas era ele lá e em todo lugar. Veio mastigando a alma com as histórias passeando no Rio boêmio, nos cafés, nos cassinos, nas vozes dos cantores mortos. Saiu de lá, cambaleou pela paulicéia chuviscosa e amarga e, "e aí vamos fazer aquele samba?". Me rasgou o pensamento perdido no sereno, assustei, pedi perdão: "não posso", não saberia atropelar o tempo, indigno que eu era de pertencer ao passado. Não concordou, só aceitou meu encabulamento: "então esquece o concurso, um dia a gente faz um samba junto".

Não sei se ele chegou a participar do festival – que composição inédita é que não faltava em seus papéis – mas nosso samba nunca saiu. Se perdeu pelo telefone, morreu lá. Feito ele agora: esquecido, quase indigente, morto. Compositor genuíno, batalhador pioneiro pelos direitos autorais, amigo de Custódio Mesquita e Ismael Silva, Victor cantou pouco, mas criou muito para que outros transformassem sua alma em som. Na lista de intérpretes de suas músicas, entre tantos outros, ecoam as vozes eternas de Francisco Alves, Isaurinha Garcia, Luiz Gonzaga, Bob Nelson, Gilberto Alves, Quatro Ases e Um Coringa, Os Cariocas, Trio de Ouro, Geraldo Pereira, Blecaute, Araci de Almeida, Nelson Gonçalves, Linda Batista, Carlos Galhardo, Maurici Moura, Altemar Dutra, Titulares do Ritmo, Roberto Luna, Cauby Peixoto, Anjos do Inferno e Jamelão.

Vejo alguém ali torcendo o nariz para o Bob Nelson. É´, Victor Simon compôs várias músicas para Bob, inclusive três de seus maiores sucessos: "Minha Linda Salomé" (em parceria com Denis Brean), "O Boi Barnabé" (em parceria com o próprio Bob Nelson) e "A Valsa do Vaqueiro". Mas que ninguém se iluda, atrás da roupa de caubói americano, dos falsetes tiroleses improvisando "ourureirilus" e de algumas canções desnecessárias, o cantor Bob Nelson, cujo nome de batismo era Nelson Perez, é um grande intérprete de xote, valsa, marcha de carnaval e samba. Quem duvidar pode ouvir seu domínio rítmico e melódico nos sambas-choros "Um Samba na Suíça" (dos míticos compositores – comumente visitados por João Gilberto – Haroldo Barbosa e Janet de Almeida) e "Vaqueiro no Samba" (de Irany de Oliveira e Rosalino Senos). Inspirado provavelmente pela marcha de carnaval "Cawboy do Amor" (de Wilson Batista e Roberto Martins) lançada em dezembro de 1940 pelos "Anjos do Inferno", Bob Nelson criou seu estilo, que pode até ser criticado em vários aspectos, mas não deixa de ser, no mínimo, antropofágico. No citado "O Boi Barnabé" (que era apaixonado por uma vaca que dava "leite açucarado misturado com café" "engarrafado com tampinha e com rolha") a suposta rendição à cultura americana é subvertida pela deslavada marchinha de Victor e Bob, como se o caubói se derramasse desvairado em plena terça-feira gorda. E para completar a barafunda, só faltava mesmo Ciro Monteiro fazendo com a voz o mugido do boi apaixonado. Mas nem isso faltava. Na gravação em novembro de 1945, Ciro estava presente, atendendo pelo nome de Barnabé.

A menção a Ciro Monteiro nos faz atentar para um outro nome da lista de intérpretes das obras de Victor Simon: Geraldo Pereira. Se o Formigão cantou como poucos os sambas de Geraldo, em o "Falso Patriota" a presença de Simon subverte novamente a história, pois Pereira deixa de lado a sua arte de compor para ser simplesmente intérprete. Aliás, um grande intérprete.

Tive notícia recente de um comentário em um blog onde, por causa de "Falso Patriota", Victor Simon foi chamado injusta e injuriosamente de "comprositor" (a insinuação é de que o autor verdadeiro seria Geraldo Pereira). O comentário – que foi bravamente combatido por Fernando Szegeri em um discurso inflamado diante das mesas e violões do "Ó do Borogodó" – só pode ser fruto de confusão, desinformação ou desatenção lógica e histórica, jamais de má fé, suponho. Ora, analisando a grandiosa obra (tanto em número quanto em qualidade) de Victor Simon e a extensa lista de seus (brilhantes) intérpretes, percebe-se que ele jamais foi um falso compositor que se apropriava de músicas alheias.
No que diz respeito à composição específica, o comentário injusto não encontra qualquer respaldo em obras fundamentais sobre Geraldo Pereira, como são os casos de "Um Certo Geraldo Pereira", de Alice Duarte Silva de Campos, Dulcinéa Nunes Gomes, Francisco Duarte Silva e Nelson Matos (Nelson Sargento) – Rio de Janeiro: FUNARTE/INM/Divisão de Música Popular, 1983 e "Um Escurinho Direitinho – A Vida e Obra de Geraldo Pereira, autor de ‘Falsa Baiana’, ‘Bolinha de Papel’ e dezenas de outros sambas imortais’ ", de Luís Fernando Vieira, Luís Pimentel e Suetônio Valença – Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. Isso sem falar no texto de contracapa de Zuza Homem de Mello para o LP que resgatou "Falso Patriota" do limbo dos 78 rpm, "Sambistas de Bossa & Sambas de Breque" (RCA – 107.0278 – 1977).

Do ponto de vista lógico e histórico a injúria não se justifica. "Comprositores" sempre houve em nossa música, mas tal prática se dava (e talvez ainda se dê) nas seguintes hipóteses mais constantes: a) ou o "comprador" buscava a parceria para ter seu nome impresso e divulgado ao lado de um compositor respeitado – não só para também conseguir fama, mas visando principalmente à gravação da música por algum intérprete renomado, o que resultaria em provável retorno financeiro, ou b) tal "usurpador", não raro um cantor já reconhecido, percebendo as potencialidades artísticas e econômicas de um determinado samba, comprava (das mais diversas formas) a parceria (ou a composição toda) para lucrar não só como intérprete, mas também pela arrecadação de direitos autorais. No caso de "Falso Patriota" – gravação de 26 de junho de 1953, no lado "A"do 78 rpm que apresenta no "B" "Cabritada Mal Sucedida", do próprio Geraldo, Wilton Wanderley e Jorge Gebara (RCA – Victor 80.1192) – a situação se inverte. Por mais que fosse um compositor respeitado (ainda que não fosse reconhecida sua genialidade àquela época), Pereira não era um intérprete famoso, embora igualmente fantástico. Geraldo Pereira teve dificuldade para gravar seus 32 registros como cantor, sendo talvez o referido disco, seu maior "sucesso" nessa área. Victor já era autor reconhecido na época da gravação de "Falso Patriota" e não tinha interesse nenhum em gravar com um cantor de pouca projeção, a não ser o prazer de ouvir seu samba na voz de um artista que ele, sensível como Geraldo, percebia ser um mestre. Talvez Pereira tenha tido mais interesse nessa gravação do que Victor, justamente porque, nessa época queria se firmar como cantor, e o reconhecimento de um compositor respeitado como Simon emprestava respeitabilidade ao seu disco. Logicamente Geraldo não precisava nada disso, como se pode constatar ouvindo, no lado "B", o brilhante samba "Cabritada Mal Sucedida" talvez um dos seus sambas mais perfeitos; mas dizer que Victor Simon não seria capaz de compor "Falso Patriota" é totalmente equivocado, e, repita-se, injusto. No samba – talvez uma resposta a eventuais críticos de sua ligação com Bob Nelson – Victor enaltece as coisas e valores brasileiros, criticando os que abdicam dos produtos nacionais em detrimento do estrangeiro. Se em "O Boi Barnabé" Simon praticava canibalismo cultural, em "Falso Patriota" ele beirava a xenofobia, talvez reflexo das idéias marxistas que desde essa época passara a defender com paixão. Não bastasse tudo isso, não se pode menosprezar a participação na autoria de David Raw, parceiro constante de Victor Simon e também um compositor de talento como atesta o samba (em parceria com Jucata) "Vida Dura", sucesso na voz de Caco Velho, recentemente regravado por Germano Mathias.

A preocupação social foi sempre uma constante na obra de Victor Simon, ainda que essa não apareça muitas vezes de forma explícita. No samba "Porteira do Brás" (em parceria com Lys Monteiro), gravado por Wilson
Roberto (acompanhado pelo regional de Benedito Lacerda e Raul de Barros no trombone, provavelmente no final da década de 40), ao tratar da derrubada de uma porteira da rede ferroviária que atrapalhava o trânsito no bairro paulistano do Brás, Victor Simon metaforicamente abre os olhos e ouvidos da cidade para os então renegados bairros pobres da zona leste, região marginalizada e esquecida pelos órgãos públicos. Se o então governador de São Paulo, Adhemar de Barros tentou utilizar a música em seu benefício político (já que fôra ele que, com a construção do Viaduto do Gasômetro, derrubara uma das porteiras – embora somente em 1967 o Brás tenha se livrado definitivamente de seus "entraves"), espertamente Victor Simon inseriu com pioneirismo a "cidade excluída", mencionando bairros renegados em um samba que fez muito sucesso na época e que abriu trincheiras para que Adoniran Barbosa chegasse até as Vila Ré e Esperança. Pouco depois, Victor Simon voltou a tratar de "cidades partidas" (para usar uma expressão muito cara a Zuenir Ventura): em janeiro de 1954 foi lançada a marcha "Vagalume" (em parceria com Fernando Martins) através de duas gravações diferentes, uma de Violeta Cavalcanti e outra dos Anjos do Inferno. Estrondoso sucesso de carnaval, os versos "Rio de Janeiro, cidade que nos seduz, de dia falta água, de noite falta luz" escondem por trás do genial espírito irônico (gozador, diria João Nogueira) do carioca (embora Victor fosse fluminense de Macaé, incorporara todo bom-humor da capital) uma crítica social violenta, que não se restringia a cidade do Rio de Janeiro, mas a todas as outras cidades brasileiras: o desprezo dos poderes públicos às necessidades da população. Por trás de monumentos, de praias aclamadas com lirismo, de uma cidade violentamente bela, existia outra, mal-administrada, tomada por problemas, feita de pessoas que moravam no asfalto e nos morros, vistas tantas vezes apenas como parte de uma paisagem exótica. Naquele momento, Simon e Fernando Martins não diziam isso com todas as letras, mas hoje a profecia de Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro parece querer se cumprir e o morro ameaça descer sem que seja carnaval para receber aquilo que sempre lhe foi negado. Depois de carnavalizar o caubói americano, defender sincopadamente o produto brasileiro, abrir as portas da cidade para a zona leste e seus moradores entrarem na música brasileira incomodando a elite paulistana e denunciar risonhamente o descaso do governo com a população, Victor – não antes de alcançar sucesso com o samba "Bom Dia, Café" na voz de Roberto Luna em 1958 – resolveu se embrenhar por China, Rússia, América Latina e acabou conhecendo "Che" Guevara, declarado fã do "bolero-mambo" de Simon (vertido para várias línguas), "O Vagabundo", "Que importa saber quem sou/Nem de onde venho/Nem pra onde vou/O que eu quero são os teus lindos olhos, morena/Tão cheios de amor/O sol brilha no infinito/E aquece o mundo aflito/Que importa saber quem sou/Nem de onde venho/Nem pra onde vou/Eu só quero é o teu amor/Que me dá a vida/Que me dá calor/Tu me condenas por ser vagabundo/E meu destino é viver ao léu/Pois vagabundo é o próprio mundo/Que vai girando no azul do céu".

E o mundo vagabundo foi estraçalhando Victor Simon. O autoritarismo brasileiro das décadas de 60, 70 e início da de 80 foi pouco a pouco sufocando seus sambas, sua marchas, suas idéias de igualdade e sua vida. A crença em regimes alternativos que pudessem salvar o homem que caminhava na rua acabou se transformando apenas na crença naquele homem. E nada mais. Perto do fim, talvez continuasse compondo em nome dessa fé, mas suas músicas há tempos não ganhavam vida e muitas morreram junto com ele. Amigos como Roberto Lapiccirella e Osvaldinho da Cuíca ainda conseguiram que Victor Simon, com mais de 80 anos, se apresentasse lembrando suas histórias. E nessas horas ele se desgrudava um pouco do sufoco a que fora condenado para cantar em paz.

Não se pode negar ao artista o direito de cometer erros. Victor Simon deve ter cometido os seus e sua vida terminou de maneira quase miserável. Mas os erros não se comparam à sua obra, às suas idéias, ao seu amor pelo mundo. E ele não merecia morrer da forma que tanto lutou para que o homem não vivesse. Uma segunda-feira, 16 de maio de 2005, encontrou o boêmio, compositor e sonhador Victor Simon morto, aos 88 anos. E primeiro de agosto estará logo ali, esperando pelos 89 que nunca virão.

quinta-feira, 5 de maio de 2005

A César o que é de César


Quem não é advogado dificilmente pode saber que existe na Ordem que fiscaliza e normatiza a profissão uma espécie de "comissão de desagravos", encarregada de julgar casos onde advogados no exercício de suas prerrogativas profissionais previstas em lei são desrespeitados por juízes, promotores, delegados, autoridades em geral. Se o pedido de desagravo é julgado procedente, acontece uma solenidade na qual o violador é espinafrado publicamente e a categoria, simbolicamente, presta sua solidariedade e apoio ao desacatado.

Foi exatamente essa a dimensão da cerimônia que presenciamos eu e meus bons amigos Augusto Diniz e Capitão Léo Gola, num Bar do Giba lotado e atônito. Meu bom irmão Eduardo Goldenberg, de passagem por São Paulo, foi nos encontrar para matar saudades e entornar umas. Ao chegar ao bar, seus olhos não eram os de sempre. No sorrizinho mal contido, canto de boca, residia uma satisfação íntima cujo motivo eu não podia adivinhar. Antes de me cumprimentar, foi mandando:

- Irmão, eis que o dia é chegado!

Não consegui de imediato perscrutar a profundidade da frase escatológica. Tentei, mas o homem só dizia, abraçado na pasta de trabalho como um menino à bola nova ganhada de Natal:

- Precisei viver pra ver esse dia. E você tinha que estar comigo.

Edu seguiu na bebedeira algo misterioso e mais taciturno do que de hábito. De vez em quando seus olhos rebrilhavam e deixava escapar entre muxoxos:

- Vamos vingá-lo...

- Não perdeu por esperar...

- Finalmente desentalaremos...

E por aí seguia. E o homem agarrado na tal da pasta. Uma certa hora, mais ou menos entre a quarta e quinta rodada de Buchannan's que entremeavam as Brahmas semi-congeladas, abre a pasta, tira dela um velho LP (os mais jovens podem ir ao dicionário ou ao Google, que eu não tenho saco de explicar) e se levanta em tom solene, mãos ao alto segurando o disco acima da cabeça, autêntico Carlos Alberto com sua Julles Rimet particular:

- Senhores e senhoras, paguei por isso que vocês vêem a exata medida da obra e do caráter desse pulha! Um mísero real num sebo fedorento da Boca do Lixo é o que ele vale!

Incontinenti, possuído por uma luminosidade transcendentental, fumegando pelos olhos, meu bom irmão Edu arrebenta o disco sobre a coxa, que se espatifa em estilhaços. Os presentes se levantam. Eu, a essa altura já entendendo perfeitamente o ritual, imediatamente ateio fogo à capa que flameja como uma sarsa no deserto. Garçonetes em polvorosa, o povo da cozinha saindo pra assistir a imolação. Capitão já sapateava sobre os destroços espalhados pelo chão e Augusto golpeava virulentamente a foto do encarte com uma tesoura cega, enquanto a patuléia urrava em delírio:

- Biltre! Patife! Safado!

Súbito, alguém se levantou de uma mesa do fundo, arrancou a foto do Palocci do jornal e a esmigalhou freneticamente, ao que outro gritava: "Pisa no Lula, pisa no Lula". Não tenho bem certeza, mas parece que alguém chegou a gritar: "o Severino é meu!" E foi um tal de tacar fogo em foto, pisotear aliança, arrancar uniforme, que o bar foi tomado de um espírito libertário de catarse coletiva. Edu, lágrimas de ira escorrendo pelo rosto, grunhia entre os dentes semicerrados "por você, Aldir, por você...", enquanto destroçava os últimos pedaços. E foram aplausos, apupos, uivos coletivos quando encerrávamos a cerimônia, abraçados, chorando, sensação reconfortante do dever cumprido.

A vingança, amigos, é um prato frio comido pela História. E não custa mais que um mísero real.

[para Aldir Blanc]