sexta-feira, 21 de julho de 2006

Por motivo de férias coletivas de toda a redação, esta página ficará sem novos conteúdos até 13 de agosto próximo. Por ora, embarquem conosco nesta imaginária e olorosa viagem à grande Cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos. Axé e até!

Canto de amor à Bahia

Jorge Amado




















Se gostas do teu marido,
na minha frente não passes...


canta o marinheiro no cais, próximo ao Mercado, em cuja calçada, como lâminas de aço, brilham os peixes ao sol. Ah! Se amas a tua cidade, se tua cidade é o Rio, Paris, Londres, ou Leningrado, Veneza de canais ou Praga de velhas torres, Pequim ou Viena, não deves passar por essa cidade da Bahia, porque um novo amor encherá teu coração. Esplêndida cidade, noiva do mar, enhora do mistério e da beleza. Nesse mar habita Yemanjá, a dos cinco nomes, e o misterioso chamado dos atabaques ressoa nas noites dos casarões sob a lua, das igrejas de ouro, das ladeiras grávidas de passado. O mistério e a beleza da cidade te envolverão, darás teu coração para jamais; jamais poderás esquecer a Bahia, o óleo de sua beleza densa te banhou, sua mágica realidade te perturbou para sempre.

No alto da montanha, na Praça Castro Alves, o poeta vigilante no monumento estende a mão libertária e aponta o mar embaixo, de um traiçoeiro azul subitamente verde, onde as velas dos saveiros se abrem ao vento numa aventura renovada cada manhã. Plantado em meio às águas, o negro forte antigo dorme um sono centenário; há muito se incorporou à paisagem, é paisagem ele mesmo e não praça de guerra. Todas as ladeiras descem para o mar de manhã cedo, mas à noite todas elas se dirigem aos candomblés, atendendo ao insistente bater dos atabaques, aos cantos nagôs saudando os santos. Mas a manhã é a hora do mar no pequeno cais do Mercado iluminado de mangas, abacaxis, abios, cajás, cajaranas, cajus, verdes melancias e das estrelas de sangue das pitangas; no cais da Feira de Água dos Meninos, onde saveiros depositam bilhas, moringas, pratos desenhados e cavalgadas de barro, bois mansos e cavalos azuis, tudo construído pelas mãos ingênuas e sábias de anônimos artesãos: na praia de Itapuão, de onde partem as jangadas de Caymmi, com Pedro Ferreira e Bento para enfrenatar “lá fora os pés-de-vento”. A manhã é a hora do mar quando os búzios dos saviros despertam Janaína cansada da noite na macumba, das dansas rituais, e ela sai de sua morada no Dique e se espalha sobre o mar, dona das águas.

E uma beleza antiga, sólida e envolvente a dessa cidade. Não nasceu de repente, foi construída lentamente e está amassada no sangue dos escravos. No Largo do Pelourinho eles eram castigados, e das janelas dos sobradões imensos as frágeis iaiás espiavam os corpos nus cortados à chibata. Almas penadas habitam os casarões e ficam vagando pelas escadas sujas. Nos sombrios corredores ouvem-se os ais de dor dos negros injustiçados. Libertam-se pela noite de mistérios e sobem pelas ladeiras clamando vingança. É uma beleza que escorre como óleo do casario e das pedras negras de certas ruas, os nomes como poemas: Rua dos Quinze Mistérios, Ladeira do Tabuão, Rua do Cabeça, Largo das Sete Portas, Mirante dos Aflitos, que escorre das igrejas dos santos negros, esculpidos em madeira e ferro, Xangô, Oxóssi, Ogum, Exu amedrontador, a bravia Iansã e o tétrico Omolu, que comanda a varíola. Dessa arte anônima dos santeiros negros nasceu a moderna escultura baiana, Mário Cravo, Agnalso Mirabeau. Em meio à promiscuidade da mais completa pobreza, num velho casarão, surge, inesperada, a riqueza de antigos azulejos, os poucos que ainda não foram levados pelos ricos de outras terras. Como uma figura antiga, a baiana de perfeito colo desabrochado nas rendas da bata, sentada em frente ao tabuleiro de acarajé e abará, de moqueca de aratu, de cocada e beijus. Ela é como a rainha da cidade, essa pobre negra que ganha duramente a vida. De majestosa beleza, de fala mansa e coração de bondade, riso aberto e claro, suas mão criam cada dia a arte do vatapá e do caruru, do efó e do xinxim de galinha. O bordado dos papéis que cobrem os tabuleiros recorda o papel cortado da Polônia ou da China na pureza do desenho.

O homem é imaginoso e cordial nessa terra de pimenta e brisa do mar, de mariscos e água de coco. Ele sabe as palavras sonoras e por vezes difíceis, sua fala é larga, sua voz cantante. Terra do sangue misturado, mestiça com todos os coloridos do moreno, todas as nuanças entre o branco e o negro. Negras como rainhas de tribos desaparecidas, mulatas de cintura de vespa e onduloso andar, brancas desfalecendo ao falar, nasceram todas de Moema, a que de amor morreu no mar quando a cidade apenas começara. Os pintores vêm de longe para descobrí-las, para recriar as paisagens, as casas e ruas que o homem construiu. Vêm o pintor Pancetti para a praia, a jangada e o mar; o alemão Hansen para o Bar São Miguel, de tímidas rameiras inocentes; outro alemão, Udo, para os arredores do Mercado, Rescala para as igrejas e o casario, e Carybé para a cidade inteira, para nunca mais sair. Viraram baianos, todos eles e para todo o sempre. E por mais longe que estejam, levam consigo o mistério e a beleza da Bahia.

Nem tuo é poesia apenas, e o drama explode nas ruas em enxames de crianças famintas, na multiplicação dos mendigos, na fome em terra tão rica. Nem tudo é grande tampouco, e certos homens, aventureiros vindos de todas as partes, tentam reduzir essa beleza negra e pesada, densa como óleo e profunda de mistério a proporções turísticas, e tudo fica pequeno e triste quando tocado por tais mãos. Existe uma permanente e criminosa tentativa de deformar a beleza da Bahia, sua dramática beleza centenária.

À noite o mistério aumenta. Das encruzilhadas escuras chega o eco da orquestra dos atabaques, agogõs, chocalhos, cabaças, chamando os filhos e filhas-de-santo para a festa da macumba. No céu de estrelas a lua amarela se derrama sobre o mar. Os santos descem nos terreiros, vindos das florestas da África. Os homens vão pedir saúde, dinheiro, longa vida e sobretudo amor, fidelidade de inconstantes corações. O sangue dos galos e dos bodes se derrama sobre Exu, para que ele não venha perturbar a festa dos homens. Nos cantos de rua, feitiços são colocados, afastemos nossos passos desses perigos. Na noite do mar sobe a canção do marinheiro:


Se gostas do teu marido
por que vens na minha frente
tuas ancas rebolar...?


Junto aos tabuleiros das baianas se acomodam os fregueses mais habituais para saborear mingau de puba, de milho e tapioca, sarapatel, bolo de aipim, o que há de mais gostoso para comer. Dorme a cidade baixa, menos o cais; movimenta-se a cidade alta. A música domina os homens, o ritmo negro dos batuques vem de recantos perdidos e atravessa as ruas e avenidas, acompanha os ônibus e automóveis, bate no sabgue de cada habitante. À noite o mistério aumenta e a beleza da Bahia se cobre de luar.

Essa é a minha cidade e em todas as muitas cidades que andei, eu a revi num detalhe de beleza. Nenhuma assim, tão densa e oleosa. Nenhma assim, para viver. Nela quero morrer, quando chegar o dia. Para sentir a brisa que vem do mar, ouvir à noite os atabaques e as canções dos marinheiros. A Cidade da Bahia, plantada sobre a montanha, penetrada de mar.

(in Bahia de todos os Santos: guia de ruas e mistérios, Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 61-65. Ilustração de Carlos Bastos)

terça-feira, 18 de julho de 2006

Ela vestiria seu vestido tão azul

Juliana Amaral


No dia da sua partida ela vestiria seu vestido tão azul, que caindo solto sobre seu corpo pequeno desenharia os seios pontudos e as carnes ainda redondas. Traria nos olhos castanhos, grandes e assustados, o peso das encarnações todas, molhados de uma saudade antecipada. Dentro do peito agora azul haveria o coração vermelho que sabe, sempre soube, dos monstros atrás das portas e dos fantasmas sob os tapetes. No coração grande tantas prateleiras ocupadas, bagagem pesada a dela, carrega no peito seu o amor de outras tantas carnaturas, as palavras, os filhos, os homens, os sons e os ventos todos, as águas sem fim.

Sabia que chegaria o dia anunciado, a partida premeditada desde o primeiro dia, nada prenderia aqueles olhos, aquelas mãos, nem o enredo das suas palavras, nem seu corpo habilidoso e fácil, nem seus olhos tristes, nem o riso solto. Talvez a voz pudesse, vento que sai da garganta em busca do porto seguro dos ouvidos continentes, e que suspendendo o mundo longe do chão carrega seu umbigo feminino pra dentro da casa dos homens e lá fica, como uma lembrança boa, como um desejo sujo. Mas a sua voz que ele pouco quis ouvir, teia de aranha safada, rebenta diante do corpo masculino e duro deste homem que agora partiria simples e reto como uma flecha, como uma espada, ou antes como uma lâmina.

Na sua mala que fica o fardo da mulher que tem o coração e os olhos maiores do que as pernas, a alma despudorada que quer a pequena delícia das possibilidades, e as mãos infantis que não sabem desenhar mas que adivinham o contorno do mundo. Nos bolsos do homem todos os espaços vazios, os caminhos abertos, o tempo que o convida e o espera, generoso, para ser reconstruído e mudado em movimento e cor, as linhas fugidias desembaraçadas de quem não tem nada a perder, e a solidão espreitando como um velho no canto da sala, que um dia sem mais nem menos aparece pra jantar e senta na cabeceira da mesa, depois toma a cama, o banheiro e o quintal. E guardado no altar dos dias deles vividos um por um, a vontade compartilhada e secreta, os nomes, os lugares e as alegrias que só eles conhecerão, a memória do corpo intransferível, a urgência que jamais poderá ser roubada.

No dia da sua partida ela vestiria seu vestido tão azul e ela estaria pronta, sanguínea e delicada, com seu amor tecido em doação numa mão e seu silêncio na outra, os dentes aparecendo tímidos atrás do sorriso atrapalhado, molhado do choro que cai bonito dos olhos, e sem espanto, ela entregaria a flor sobrevivente e desmanchada nascida do tormento doce do seu coração vulcânico.


Ele agora partiria simples e reto

Ele agora partiria simples e reto como uma flecha, como uma espada, ou antes como uma lâmina. Seu corpo firme rasgaria o ar no seu caminhar assertivo e atravessaria a porta, a rua e o mundo inteiro como um punhal atravessa a pele no golpe desferido, liso, úmido e fácil, porque sabe que não é a força mas sim o jeito que penetra a faca até o fim, não é o quanto a mão aperta a empunhadura mas o tanto que o braço empurra o peso do corpo pra dentro da carne, num movimento que nasce na cintura e encerra do outro lado no vazio que começa onde termina a pele das costas.

Os olhos de menino e o gesto inquieto deles nascido anunciariam a partida. No gesto, as mãos fazedoras das linhas aonde mora o infinito, mãos que redesenhavam o corpo dedicado da mulher pequena e delimitavam seus contornos, reconstruindo de novo sua pele no ar, e definiam a largura e a altura, moldavam a cintura, as ancas, a nuca, os seios, as pernas, a boca, o sexo, que se tornavam então subita, deseperada e urgentemente seus. O mesmo gesto que dava forma ao vazio das palavras inexistentes era a voz sem corpo da sua alma sem pouso. A alma sem pouso do homem assim partiria porque era da sua natureza, porque não havia casa, ele presumia, que lhe fosse continente, e sobretudo porque o tempo o empurrava incansavelmente, o chamava, e esperava.

E haveria a mulher com seu vestido tão azul, linda como uma tarde vermelha, com os olhos tão grandes e tão doídos, tão feminina, tão insuportavelmente feminil. E teria vontade de ter de novo aquele corpo, morder as carnes macias, e ouvir a voz e afogar a cara nos cabelos, e ficar ali dentro no quente das suas coxas, no silêncio dos seus braços, no fervor das suas preces.

Ele agora partiria simples e reto como uma lâmina e atravessaria a porta e a rua como uma flecha, seus bolsos iriam vazios e seu coração iria fingindo um desprendimento que sua alma queria tanto acreditar, e o medo estaria atrás da sua orelha direita todo o tempo, mas o pânico da eternidade vestido de coragem cavalheiresca seria ainda maior do lado esquerdo, e a roda giraria então para frente, a menos que ele percebesse que bastava uma única palavra para acalmar o cavalo selvagem em seu peito de menino, uma única palavra apenas para libertar o choro de tantas infâncias.

Ele não ouviria a palavra, ele não diria nada. Seu corpo-monolito partiria com medo e coragem, não sem antes recolher embaraçado a flor ofertada, e apesar da dúvida monstruosa que inesperadamente se apossaria do seu coração masculino, ele seguiria seco e branco, levando consigo a beleza e a alegria das coisas sem importância, a certeza dos dias deles vividos um por um, e emaranhado nos seus braços livres levaria os ventos suspendidos e a água transbordada com que comporia em movimento e cor o novo sentido do mundo.

(janeiro de 2005)


Juliana Amaral é cantora, escritora e gestora de políticas públicas, pelo que sei até o momento. Nome que se guarda, quando se conhece.

segunda-feira, 17 de julho de 2006

Forró de Mané Vito

Luiz Gonzaga e Zé Dantas


Seu delegado
Digo a Vossa Senhoria
Eu sou fio d’uma famia
Qui num gosta de fuá
Mas trasantonte
No forró de Mané Vito
Tive que fazê bonito
A razão vô lhe explicá:
Bitola no ganzá
Preá no reco-reco
Na sanfona Zé Marreco
Se danaro pra tocá
Daqui pr’ali, pra’lá
Dançava cum Rosinha
Quando Zeca de Si'Aninha
Me proíbe de dançá.

Seu delegado
Sem increnca eu num brigo
Se ninguém buli comigo
Num sô home pra brigá.
Mas nessa festa,
Seu doutô, perdi a carma
Tive que pegá nas arma
Pois num gosto de apanhá
Pra Zeca se assombrá
Mandei pará o fole
Mas o cabra não é mole
Quis partir pra me pegá
Puxei do meu punhá
Soprei no candieiro
Botei tudo pro terreiro
Fiz o samba se acabá

[pro Zé Sérgio]

quarta-feira, 12 de julho de 2006

De brasileiros e jornalistas

ou Entendendo os amigos do Zé Sérgio V


"Na minha infância, havia primeiro o Correio da Manhã, um jornalaço. E havia A Noite, que vendia muito mais. E era um jornal muito mais amado pelo leitor. A Noite era um jornal amado. O sujeito comprava A Noite disposto a ler ou disposto a não ler. Não fazia mal isto. Ler ou não ler era um detalhe insignificante. Mas o povo gostava desse jornal. E esse antigo jornalismo permitia, por exemplo, que você fosse fazer a cobertura de um incêndio e levasse na mão uma casa de pássaro, uma gaiola e metesse a gaiola com um pássaro lá num certo ponto da casa em chamas. E aí o repórter que não era idiota da objetividade dizia que o nosso querido fotógrafo ouviu toda a cantoria do canário. E terminava dizendo: 'Morreu cantando' . O repórter fora cobrir um incêndio. Mas o fogo não matara ninguém. E a mediocridade do sinistro irritara o repórter. Tratou de inventar um passarinho: enquanto o pardieiro era lambido, o pássaro cantava, cantava. Só parou de cantar para morrer.

A história desse canário fez um sucesso tremendo. Um sujeito queria uma vala especial para o canário, o nosso querido canário cantor. Era lindo. O jornalismo de antigamente era mais ou menos assim. Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. Lemos jornais dominados pelos idiotas da objetividade. A geração criadora de passarinhos parou em Castelar de Carvalho, o autor dessa reportagem sobre o incêndio. Eis o drama: o passarinho foi substituído pela veracidade que, como se sabe, canta muito menos. Daí porque a maioria foge para a televisão. A novela dá de comer à nossa fome de mentira.

O idiota da objetividade é o jornalista que tem grande fama, todo mundo, quando fala dele, muda de flexão. Mas eu acho o idiota da objetividade um fracasso. Isso num julgamento absoluto. O idiota da objetividade é também um cretino fundamental.

O brasileiro é um tipo gozadíssimo. O diabo é que o brasileiro não pode se esforçar muito porque, senão, cai na chanchada trágica. O brasileiro é um sujeito que gosta de fazer farra, é um desses que, em pleno velório, põe a mão na viúva. E a viúva é também um caso sério porque este negócio de viúva vocacional é um fato. Há realmente um repertório sensacional de casos. O que atrapalha o brasileiro é o próprio brasileiro. Que Brasil formidável seria o Brasil se o brasileiro gostasse do brasileiro. Houve um tempo em que nem o Departamento de Pesquisa do "Jornal do Brasil" sabia quem era o brasileiro.Mas se um sujeito se apresentava como brasileiro, as pessoas de bem respondiam: 'Não te conheço!'. E muitos duvidavam que o Pão de Açúcar ou o poente do Leblon fossem brasileiros.

O remédio para isso? Nunca. Para isso não há remédio. Veja que o Brasil ganhou três vezes o campeonato mundial. Se ganhou três vezes, e se o brasileiro não fosse o otário que é, estava tudo salvo, tudo salvo. Ganhou três vezes no futebol, feito como esse ninguém teve e não se conhece isso. O brasileiro tem virtudes. É bom fazer uma ressalva nesses defeitos que digo. Diz o nosso João Saldanha : 'O Brasil fez seu jogo,jogo brasileiro'. Vocês entendem ? Não há mistério. O brasileiro é assim. Quando um de nós se esquece da própria identidade, ganha de qualquer um.

Diga-se de passagem que eu considero o brasileiro o maior sujeito do mundo. O europeu já está esgotado. O europeu tem na casa dele pires de mil anos. Escadas de mil anos. Tudo é velho pra burro. [...] Como se não bastasse a padronização de caras, corpos, costumes, usos, idéias, valores, há também a estandardização da paisagem. Tudo prodigiosamente igual. É trágica a falta de imaginação da paisagem no país desenvolvido. O desenvolvimento é burro, ao passo que o subdesenvolvimento pode tentar um livre, desesperado, exclusivo projeto de vida."

(Nelson Rodrigues*)

* texto remontado a partir de trechos pinçados da entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto - clique para ler a íntegra)

terça-feira, 11 de julho de 2006

Da morte da simplicidade

ou Entendendo os amigos do Zé Sérgio IV


"Foi tudo sem alarde, sem escândalo. Foi tudo brasileiro. E dou decisão: essa pompa, essa empáfia dessa merda aí não tem nada de Brasil."

(Aldir Blanc)

segunda-feira, 10 de julho de 2006

Da morte da liberdade

ou Entendendo os amigos do Zé Sérgio III


"A constatação de Marx acerca do trabalho na fábrica, segundo o qual 'o próprio indivíduo é dividido, transformado em engrenagem automática de um trabalho fragmentado' e, desse modo, 'atrofiado até se tornar uma anomalia', verifica-se aqui de modo tão mais evidente quanto mais elevados, avançados e 'intelectuais' forem os resultados exigidos por essa divisão do trabalho. A separação da força de trabalho e da personalidade do operário, sua metamorfose numa coisa, num objeto que o operário vende num mercado, repete-se igualmente aqui. Porém, com a diferença de que nem toda a faculdade mental é suprimida pela mecanização; apenas uma faculdade ou um complexo de faculdades destaca-se do conjunto da personalidade e se coloca em oposição a ela, tornando-se uma coisa, uma mercadoria. Ainda que os meios de seleção social de tais faculdades e seu valor de troca material e "moral" sejam fundamentalmente diferentes daqueles da força de trabalho (não se deve esquecer, aliás, a grande série de elos intermediários, de transições insensíveis), o fenômeno fundamental permanece o mesmo. O gênero específico de 'probidade' e objetividade burocráticas, a submissão necessária e total do burocrata individual a um sistema de relações entre coisas, a idéia de que são precisamente sua 'honra' e seu 'senso de responsabilidade' que exigem dele semelhante submissão, tudo isso mostra que a divisão do trabalho penetrou na 'ética' - tal como, no taylorismo, penetrou no 'psíquico'. Isso não é, todavia, um abrandamento, mas, ao contrário, um reforço da estrutura reificada da consciência como categoria fundamental para toda a sociedade. [...] E o 'virtuose' especialista, o vendedor de suas faculdades espirituais objetivadas e coisificadas, não somente se torna um espectador do devir social [...], mas também assume uma atitude contemplativa em relação ao funcionamento de suas próprias faculdades objetivadas e coisificadas. Essa estrutura mostra-se em seus traços mais grotescos no jornalismo, em que justamente a própria subjetividade, o saber, o temperamento, a faculdade de expressão tornam-se um mecanismo abstrato, independente tanto da personalidade do 'proprietário' como da essência material e concreta dos objetos em questão, e que é colocado em movimento segundo leis próprias. A 'ausência de convicção' dos jornalistas, a prostituição de suas experiências e convicções só podem ser compreendidas como ponto culminante da reificação capitalista." (sem sublinhado no original)

(Georg Lukács*)

*in História e consciência de classe, São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 220-222

sexta-feira, 7 de julho de 2006

Da morte da crítica

ou Entendendo os amigos do Zé Sérgio II


"Na expressão desses hábitos [sociais] de pensar, a tensão entre aparência e realidae, fato e fator, substância e atributo, tende a desaparecer. Os elementos de autonomia, descoberta, demonstração e crítica recuam diante da designação, asserção e limitação. Elementos mágicos, autoritários e rituais invadem a palavra e a linguagem. A locução é privada das mediações que são as etapas do processo de cognição e avaliação cognitiva. Os conceitos que compreendem os fatos, e desse modo transcendem estes, estão perdendo sua representação lingüística autêntica. Sem tais mediações, a linguagem tende a expressar e a promover a identificação imediata da razão e do fato, da verdade e da verdade estabelecida, da essência e da existência.

Essas identificações, que aparecem como uma particularidade do operacionalismo, reaparecem como características da locução no comportamento social. Aqui, a funcionalização da linguagem ajuda a repelir os elementos não-conformistas da estrutura e do movimento da palavra. O vocabulário e a sintaxe são igualmente afetados. A sociedade expressa as suas exigências diretamente no material lingüístico, mas não sem oposição; a linguagem popular ataca com humor rancoroso e desafiador a locução oficial e semi-oficial. A gíria e a linguagem familiar raramente se mostraram tão criadoras. É como se o homem comum (ou seu porta-voz anônimo) reafirmasse sua natureza em sua palavra, contra os poderes existentes, como se a rejeição e a revolta, subjugadas na esfera política, explodissem no vocabulário que dá às coisas seus verdadeiros nomes [...]

Contudo, os laboratórios da defesa, os gabinetes dos diretores, os Governos e as máquinas, os controladores de ponto e os gerentes, os técnicos em eficiência funcional, os salões de beleza dos políticos (que garantem aos líderes a maquilagem apropriadas) falam uma linguagem diferente e, portanto, parece ser deles a última palavra. É a palavra que ordena e organiza, que induz as pessoas a fazerem coisas, comprar e aceitar. É transmitida num estilo que é criação lingüística autêntica; uma sintaxe na qual a estrutura da sentença é abreviada e condensada, de modo que não é deixada tensão alguma, "espaço" algum entre as partes da sentença. Essa forma lingüística milita contra o desenvolvimento do significado. [...]

... [A] funcionalização da linguagem expressa uma condensação de significado que tem uma conotação política. [...]

Nos pontos nodais da locução pública aparecem proposições analíticas auto-validantes que funcionam como fórmulas mágico-rituais. Marteladas e remasteladas na mente do receptor, produzem o efeito de incluí-la no círculo de condições prescritas pela fórmula."

(Herbert Marcuse*)

* in A Ideologia da Sociedade Industrial, Rio de Janeiro, Zahar, 1982, pp. 93-95)

quinta-feira, 6 de julho de 2006

Rio de Lágrimas

Tião Carreiro, Lourival dos Santos e Piraci


O Rio de Piracicaba
Vai jogar água pra fora
Quando chegar a água
Dos olhos de alguém que chora

Lá no bairro onde eu moro
Só existe uma nascente
A nascente dos meus olhos
Já formou água corrente
Pertinho da minha casa
Já formou um lagoa
Com lágrimas dos meus olhos
Por causa de uma pessoa

O Rio de Piracicaba
Vai jogar água pra fora
Quando chegar a água
Dos olhos de alguém que chora

Eu quero apanhar uma rosa
Minha mão já não alcança
Eu choro desesperado
Igualzinho a uma criança
Duvido alguém que não chore
Pela dor de uma saudade
Eu quero ver quem não chora
Quando ama de verdade

[pro Edu]

Da morte da objetividade

ou Entendendo os amigos do Zé Sérgio


"Os signos evoluíram, tomaram conta do mundo e hoje o dominam. Os sistemas de signos operam no lugar dos objetos e progridem exponencialmente em representações cada vez mais complexas. O objeto é o discurso, que promove intercâmbios virtuais incontroláveis, para além do objeto."

(Jean Baudrillard)

terça-feira, 4 de julho de 2006

Apito final

Apesar de ter prometido parar de brigar depois do texto que escrevi, em boa hora, antes da eliminação da seleção brasileira, na prática não foi o que se deu. Porque a ignorância da classezinha pseudo-elitista que olha para o futebol a cada quatro anos, o "patriotismo" dos grandes brasileiros que gastaram R$ 30 mil para assistir a Copa in loco e depois queimaram publicamente a bandeira do Brasil, e o corporativismo de alguns que sabem tão bem denunciar a falta de empenho de jogadores de futebol, mas tem uma atroz dificuldade em reconhecer a venalidade e a incompetência emblemáticas da grande maioria de seus colegas de classe, infelizmente me tocaram os brios e tive que mandar uma meia-dúzia para as putas que lhes pariram. Assim mesmo, no plural.

Então, fecho aqui a minha orelhada em tema tão difícil de haver consenso e objetividade. Teorias há muitas para explicar a derrota; ouvi umas duas ou três bem interessantes - como a do meu cumpadre Julio Vellozo, que se quiser pode ocupar esse humilde espaço para se manifestar - e um sem número das mesmas bobagens de costume, empunhadas pelos cretinos fundamentais que dominam redações e microfones pelo país afora. Mas o fato é que, para usar uma frase que inventei hoje de manhã, futebol é bola na rede. OS DOIS TIMES entram em campo e quem conseguir colocar a "esférica" entre os três paus maior número de vezes ganha a partida. Só que nós, brasileiros, temos uma dificuldade absurda e absoluta de admitirmos a possibilidade de que alguém jogue melhor, que seja mais eficiente e ganhe a partida. Sempre tem de haver "forças ocultas", racha no elenco, problemas de relacionamento, convulsões, crises, bolhas, armações políticas, resultados forjados, o escambau, para justificar o fato simples e óbvio que no esporte às vezes se ganha e às vezes se perde.

A minha visão sobre a Copa e a seleção dei a conhecer semana passada e só quero redizer a mesma coisa por um outro lado, depois que o cenário inverteu-se por razões notórias. Reafirmo: não faltou vontade à seleção brasileira. Individualmente, se pegarmos um por um, fica fácil de ver. Peço um exercício: leiam estes nomes pausadamente e quem viu o jogo (porque muita gente faz carnaval, paquera, enche a cara, mas o jogo mesmo não vê) lembre de suas feições individuais, correndo em campo: Dida, Cafu (jogou talvez pior partida de toda a sua vida, superado física e tecnicamente em campo; mas correu 90 minutos incansavelmente e foi digno, assim como na chegada no Brasil, dando a cara a bater com a tranqüilidade de quem deu o melhor de si, mesmo que esse melhor seja menos do que se esperasse), Lúcio, Juan; Emerson, Gilberto Silva, o grande Zé Roberto (o segundo melhor da seleção, calando, inclusive, a minha boca); Adriano, Kaká, Ronaldo. Não vai entender nunca nada do que se passou quem continuar achando que esses seres humanos (são humanos, sim, a despeito de ganharem um milhão de dólares por mês, coisa difícil de se entender, ou só a Xuxa e o Faustão é que são humanos?) entram em campo como se estivessem cumprindo uma formalidade burocrática, pagando uma conta de luz na fila do banco. Eles tremem, sim, sentem cagaço, sim, nervoso, ansiedade, gana, medo, alegria, saudade, o escambau. E jogam, dentro das limitações objetivas a que já me referi.

Então vocês perguntarão: mas o que aconteceu, afinal? Porque a despeito do que possa parecer não sou um débil mental completo e sei que jogamos muito mal no sábado, muito mais mal do que seria previsível ou aceitável. E sei também que o time não chegou a empolgar no restante da competição. Três fatores, em minha opinião: 1) A falta de carisma, já ventilada na semana passada, que em outras palavras pode também ser lida como a falta de lideranças capazes de superar o histórico e objetivo distanciamento entre o escrete e a nação brasileira. 2) A falta de fibra, de aguerrimento, de sangue nos olhos. Isso é muito diferente de falta de vontade. Mas não é do time, não. É do brasileiro, em geral, que talvez tenha que gastar toda a sua força de luta e dedicação pra ganhar a vida suada no dia-a-dia e não sobre muito para a política, a competição esportiva etc. Essa tão propalada falta de gana é proverbial e histórica na história político-social do Brasil e também na história de seu futebol, tirando as exceções confirmatórias de sempre. Não temos a garra argentina, a sanha uruguaia. E o que, talvez, tenha feito Pelé tão maior do que todos os outros, além de suas magistrais qualidades técnicas, tenha sido o que batizou um zagueiro adversário "seu olhar de fera acuada". 3) (decorrente do funesto somatório das duas primeiras) A falta de superação das individualidades em prol de um projeto coletivo, de um espírito de equipe, voltado obstinadamente para um único objetivo, qual seja a vitória. Uma coisa é vontade de vencer e consciência de que deve-se dar o melhor de si. Isso não faltou, repito pela enésima vez. Mas falta o que faça colocar essa vontade como projeto a ser coletivamente desenvolvido, para ser coletivamente colhido o louro do sucesso. De colocar essa vontade e esse desígnio coletivo acima de qualquer outra vontade, outro desígnio, outra vaidade ou qualquer idiossincrasia.

Repito o que desde o começo desta Copa não deixa de ser a razão primordial para eu estar metendo o bedelho nessa seara tão espinhosa: quem mais atrapalha o Brasil são os brasileiros. Melhor dizendo, meia-dúzia de "brasileiros" de meia-tijela que, EXATAMENTE COMO OS JOGADORES QUE TANTO CRITICAM, não são capazes de colocar a sua torcida por uma vitória coletiva, NACIONAL, acima de suas vaidades e de seus interesses particulares. Isso vale para os jornalistas que precisam sobreviver do tradicional "eu não avisei?"; isso vale pra essa malta de mequetrefes novos-ricos que vai à Alemanha não torcer pelo Brasil, mas vai para poder dizer pros amigos "da balada" que esteve lá "dando força" e testemunhando pessoalmente o hexa; vale para os vários maus brasileiros de plantão que apreciam tanto o estigma da derrota, para poderem justificar, por exemplo, por que não pagam impostos, por que metem a mão no dinheiro público, ou por que, simplesmente, tratam tão somente de cuidar de suas vidinhas e podem danar-se para o destino da coletividade; podem eleger seus candidatos safados para servir de despachantes de seus interesses particulares.. "Por quê, afinal, tenho que pagar imposto e me importar com o destino público, se esse povo não merece?" "Por que tenho que me preocupar com os pobres, se esses não tem caráter mesmo, como bem demonstram os ex-pobres que a elite permitiu ascendessem ao círculo dos eleitos, contanto que dessem suas pernas a quebrar e seu sangue a derramar nos gramados em honra da nação?" E por aí vai

Quero fazer uma declaração e pedir ajuda (dos meus advogados Edu Goldenberg e Marcão Gramegna, no caso): declaro para todos os fins e a quem interessar possa, que se alguém queimar uma bandeira do Brasil do meu lado por causa da derrota de sábado, da eliminação da Copa ou qualquer coisa que o valha, matarei essa pessoa com as minhas próprias mãos. E transcrevo, para ilustrar, ao fim e ao cabo, da Folha de S. Paulo de hoje : "Tão derrotados quanto a brasileira, a seleção argentina chegou anteontem a Buenos Aires. Mas houve festa para os que voltavam.[...] Com bumbos e faixas de agradecimento à campanha da equipe ('Deixaram tudo em campo. Bancamos vocês até a morte'), pediram a[o técnico] Pekelman que fique. [...] A recepção calorosa foi animada pela tônica da imprensa: 'Morremos de pé'." (destaque meu, sim senhores. Enquanto isso, os "patriotas" brasileiros que foram "receber" os jogadores no aeroporto de São Paulo, ofenderam e enxovalharam a honra do Capitão do Penta, esse lutador digno, esse símbolo do futebol brasileiro, o homem que mais defendeu o Brasil em copas. O homem que quando estava no degrau mais alto do mais alto pódio tratou de exaltar o bairro humilde, pobre e esquecido onde nasceu.

A vocês, hermanos, meus respeitos. Na bola e na vida. Um dia chegaremos lá.