Juliana Amaral
No dia da sua partida ela vestiria seu vestido tão azul, que caindo solto sobre seu corpo pequeno desenharia os seios pontudos e as carnes ainda redondas. Traria nos olhos castanhos, grandes e assustados, o peso das encarnações todas, molhados de uma saudade antecipada. Dentro do peito agora azul haveria o coração vermelho que sabe, sempre soube, dos monstros atrás das portas e dos fantasmas sob os tapetes. No coração grande tantas prateleiras ocupadas, bagagem pesada a dela, carrega no peito seu o amor de outras tantas carnaturas, as palavras, os filhos, os homens, os sons e os ventos todos, as águas sem fim.
Sabia que chegaria o dia anunciado, a partida premeditada desde o primeiro dia, nada prenderia aqueles olhos, aquelas mãos, nem o enredo das suas palavras, nem seu corpo habilidoso e fácil, nem seus olhos tristes, nem o riso solto. Talvez a voz pudesse, vento que sai da garganta em busca do porto seguro dos ouvidos continentes, e que suspendendo o mundo longe do chão carrega seu umbigo feminino pra dentro da casa dos homens e lá fica, como uma lembrança boa, como um desejo sujo. Mas a sua voz que ele pouco quis ouvir, teia de aranha safada, rebenta diante do corpo masculino e duro deste homem que agora partiria simples e reto como uma flecha, como uma espada, ou antes como uma lâmina.
Na sua mala que fica o fardo da mulher que tem o coração e os olhos maiores do que as pernas, a alma despudorada que quer a pequena delícia das possibilidades, e as mãos infantis que não sabem desenhar mas que adivinham o contorno do mundo. Nos bolsos do homem todos os espaços vazios, os caminhos abertos, o tempo que o convida e o espera, generoso, para ser reconstruído e mudado em movimento e cor, as linhas fugidias desembaraçadas de quem não tem nada a perder, e a solidão espreitando como um velho no canto da sala, que um dia sem mais nem menos aparece pra jantar e senta na cabeceira da mesa, depois toma a cama, o banheiro e o quintal. E guardado no altar dos dias deles vividos um por um, a vontade compartilhada e secreta, os nomes, os lugares e as alegrias que só eles conhecerão, a memória do corpo intransferível, a urgência que jamais poderá ser roubada.
No dia da sua partida ela vestiria seu vestido tão azul e ela estaria pronta, sanguínea e delicada, com seu amor tecido em doação numa mão e seu silêncio na outra, os dentes aparecendo tímidos atrás do sorriso atrapalhado, molhado do choro que cai bonito dos olhos, e sem espanto, ela entregaria a flor sobrevivente e desmanchada nascida do tormento doce do seu coração vulcânico.
Ele agora partiria simples e reto
Ele agora partiria simples e reto como uma flecha, como uma espada, ou antes como uma lâmina. Seu corpo firme rasgaria o ar no seu caminhar assertivo e atravessaria a porta, a rua e o mundo inteiro como um punhal atravessa a pele no golpe desferido, liso, úmido e fácil, porque sabe que não é a força mas sim o jeito que penetra a faca até o fim, não é o quanto a mão aperta a empunhadura mas o tanto que o braço empurra o peso do corpo pra dentro da carne, num movimento que nasce na cintura e encerra do outro lado no vazio que começa onde termina a pele das costas.
Os olhos de menino e o gesto inquieto deles nascido anunciariam a partida. No gesto, as mãos fazedoras das linhas aonde mora o infinito, mãos que redesenhavam o corpo dedicado da mulher pequena e delimitavam seus contornos, reconstruindo de novo sua pele no ar, e definiam a largura e a altura, moldavam a cintura, as ancas, a nuca, os seios, as pernas, a boca, o sexo, que se tornavam então subita, deseperada e urgentemente seus. O mesmo gesto que dava forma ao vazio das palavras inexistentes era a voz sem corpo da sua alma sem pouso. A alma sem pouso do homem assim partiria porque era da sua natureza, porque não havia casa, ele presumia, que lhe fosse continente, e sobretudo porque o tempo o empurrava incansavelmente, o chamava, e esperava.
E haveria a mulher com seu vestido tão azul, linda como uma tarde vermelha, com os olhos tão grandes e tão doídos, tão feminina, tão insuportavelmente feminil. E teria vontade de ter de novo aquele corpo, morder as carnes macias, e ouvir a voz e afogar a cara nos cabelos, e ficar ali dentro no quente das suas coxas, no silêncio dos seus braços, no fervor das suas preces.
Ele agora partiria simples e reto como uma lâmina e atravessaria a porta e a rua como uma flecha, seus bolsos iriam vazios e seu coração iria fingindo um desprendimento que sua alma queria tanto acreditar, e o medo estaria atrás da sua orelha direita todo o tempo, mas o pânico da eternidade vestido de coragem cavalheiresca seria ainda maior do lado esquerdo, e a roda giraria então para frente, a menos que ele percebesse que bastava uma única palavra para acalmar o cavalo selvagem em seu peito de menino, uma única palavra apenas para libertar o choro de tantas infâncias.
Ele não ouviria a palavra, ele não diria nada. Seu corpo-monolito partiria com medo e coragem, não sem antes recolher embaraçado a flor ofertada, e apesar da dúvida monstruosa que inesperadamente se apossaria do seu coração masculino, ele seguiria seco e branco, levando consigo a beleza e a alegria das coisas sem importância, a certeza dos dias deles vividos um por um, e emaranhado nos seus braços livres levaria os ventos suspendidos e a água transbordada com que comporia em movimento e cor o novo sentido do mundo.
(janeiro de 2005)
Juliana Amaral é cantora, escritora e gestora de políticas públicas, pelo que sei até o momento. Nome que se guarda, quando se conhece.
Lindo, como tudo o que a Ju escreve.
ResponderExcluirJuliana é um ser de outra esfera.Possui múltiplos talentos.Além de cantar magistralmente, ainda escreve. E como escreve!
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