quarta-feira, 11 de julho de 2007

90 anos da Greve de 1917

Augusto Buonicore*



“Em São Paulo só não ganha dinheiro

quem não trabalha, só é pobre quem é vadio”


(Correio Paulistano - junho/1917)




Um operário morreu, e agora?

A situação era tensa. Um grupo de operários chegou à porta do cotonifício Crespi e conclamou os trabalhadores a aderirem ao movimento grevista, que havia se iniciado há dias. A polícia, decidida a não permitir piquetes, interveio violentamente. O saldo do conflito: um morto. A vítima chamava-se José Martinez, era sapateiro e tinha apenas 21 anos. Depois deste dia São Paulo não seria mais a mesma.

Numa fria manhã de julho, dia 11, uma multidão de cerca de 10 mil pessoas caminhou lentamente pelas principais ruas da cidade. A cidade de São Paulo estava parada numa última homenagem ao operário assassinado. As bandeiras vermelhas e negras tremulavam entre choros e sentimentos de vingança. A São Paulo proletária estava nas ruas, nunca se tinha visto aquilo antes.

O cortejo fúnebre seguiu lento pelo aterro do Carmo, hoje continuação da avenida Rangel Pestana, tentando se dirigir ao palácio do Governo, mas foi impedida pela policia. Seguiu então pela rua Floriano Peixoto até a praça XV de Novembro. De repente, a multidão parou e só se ouviu um grito: “Libertem Nalepinsk! Libertem Nalepinsk!”.

Nalepinsk, outro sapateiro, preso por ter denunciado o assassinato de Martinez. Uma comissão se deslocou até a Secretaria da Justiça para exigir sua libertação. O delegado-geral, acuado, prometeu soltá-lo logo após o cortejo. Uma vitória, a primeira. A multidão avançou, chegou a Praça da Sé. Agora era a vez dos discursos. O cortejo seguiu então até o cemitério do Araçá, sua última parada.

Ali, diante do túmulo de Martinez, os oradores se revezavam. Eram homens e mulheres do povo. Na voz traziam a indignação e a revolta. “Soldados, não deveis perseguir os vossos irmãos de miséria. A fome reina em nossos lares, e os nossos filhos nos pedem pão. Os perniciosos patrões contam, para sufocar as nossas reclamações, com as armas de que vos armaram (...) Soldados! Recusai-vos ao papel de carrascos”. A multidão chorava. Nem mesmo os soldados, escalados para vigiar o movimento, se contiveram e enxugavam os olhos com as mangas de suas fardas. Um operário morreu, e agora?



Produzir, produzir, deve ser o lema dos paulistas

Ser operário naqueles dias não era nada fácil, nunca foi. Trabalhava-se em media 14 horas diárias, sem férias, sem descanso semanal remunerado e sem nenhum tipo de assistência. Para eles apenas o trabalho. “Produzir, produzir, deve ser o lema dos paulistas”, afirmava a imprensa burguesa. Mas, produzir para quem? Perguntavam os operários.

Por todo este trabalho, recebiam parcos salários que não eram o suficiente para o sustento de suas famílias, o que levava mulheres e crianças a se empregarem nas fábricas, submetendo-se as mesmas condições de trabalho dos homens e recebendo menores salários. Os serviços eram insalubres, as jornadas de trabalho longas, sem horário para as refeições que eram feitas ao lado das máquinas. Afinal, São Paulo não podia parar. “Oh! Pobre dos proletários!”, dizia uma canção anarquista.

Em 1912, 67% dos trabalhadores têxteis eram mulheres. Em 1918, mais de 50% do operariado fabril era constituído de menores, como podemos constatar neste trecho de artigo publicado em um jornal da época: “Assistimos a entrada de cerca de 60 menores, às 7 horas da noite (...) Essas crianças saem às 6 horas da manhã.

Trabalham, pois, 11 horas a fio em serviço noturno, apenas com um descanso de 20 minutos (...) O pior é que elas se queixam de serem espancadas pelo mestre de fiação (...) Alguns apresentam mesmo ferimentos produzidos por uma manivela. Trata-se de crianças de 12, 13 e 14 anos”.

O custo de vida aumentava dia-a-dia. Em 1916, os gêneros alimentícios subiram mais de 60%, sem que houvesse qualquer reajuste salarial. Começava a faltar alimentos e toda nossa produção era vendida para a Europa, que estava em guerra. A fome batia as portas das famílias dos trabalhadores. É neste contexto que teve inicio a onda da greve que abalou o país.

Em julho de 1917, o que parecia mais uma simples greve, como outras tantas que já haviam ocorrido desde o começo do século, acabou por desembocar no maior movimento de contestação operária já visto na historia do Brasil até então.



E os operários disseram não!

Uma comissão de operários do Cotonifício Crespi se dirigiu à direção da empresa exigindo um aumento salarial de 20%, baseado na elevação do custo de vida. O dono da empresa não aceitou o pedido. Os operários o ameaçaram com uma greve. A resposta patronal foi fechar a fábrica. A greve então se ampliou estendendo-se a outras categorias.

No dia 8 de julho ocorreu o primeiro incidente na porta da fabrica. Um choque entre operários e policias deixou inúmeros feridos; os ânimos se acirraram. Na manhã do dia seguinte, novo incidente, agora na porta da Companhia Antártica. Trabalhadores enfurecidos tomaram um caminhão da companhia e destruíram as garrafas por ele transportadas. Seguiram, então, em passeata pelo Brás até a fábrica de tecelagem Mariângela. Ali ocorreu um novo e mais grave confronto com a polícia. Martinez caiu mortalmente ferido. Um operário morreu, e agora?

Saindo do enterro do jovem sapateiro a multidão dirigiu-se à Praça da Sé para um grande comício de protesto. Ali exigiu-se a reabertura das ligas operárias, proibidas de funcionar no dia anterior, a libertação dos grevistas presos e a punição dos assassinos de Martinez.

O Comitê de Defesa Proletária, formado no dia anterior, assumiu a direção do movimento e apresentou sua pauta de reivindicações: aumento de 35% dos salários, proibição do trabalho de menores de 14 anos, abolição do trabalho noturno para menores de 14 anos e mulheres, jornada de trabalho de 8 horas, respeito ao direito de associação, congelamento de preços dos alimentos e redução dos aluguéis.

Nos bairros operários explodiu o descontentamento. Milhares de populares saquearam lojas e armazéns. O numero de grevistas cresceu dia-a-dia. De 10 mil, o número de grevistas subiu para 20 mil - mais de quarenta mil trabalhadores entrariam em greve durante o movimento. Eram sapateiros, eletricitários, trabalhadores das companhias de gás, mecânicos e a quase a totalidade dos trabalhadores de pequenas oficinas, que compunham o grosso da classe operaria do período.

Aumentou a greve, aumentou a repressão e a resposta dos operários foi imediata: ergueram-se barricadas. Os grevistas tomaram os bondes da cidade. Alguns foram destruídos pela fúria popular. “Uma multidão de garotos, afirmou o jornal O Estado de São Paulo, se entregou à todos os excessos, escolhendo para alvo de suas loucuras os carros elétricos (...) E o que é mais deplorável, é que um bando de mocinhas, infelizes operárias de fabricas, imitou os gestos da garotada, tomando conta de três elétricos no Largo da Sé”. Os grevistas tentaram ocupar a 5ª delegacia do Brás e não conseguiram. O posto policial passou a ser defendido pelas tropas de infantaria e a cavalaria.

No largo da Estação Norte, os policiais tentaram invadir um Café, onde se reuniam alguns líderes grevistas, mas foram recebidos à bala. No tiroteio que se seguiu, vários caíram feridos. Novamente, ergueram-se barricadas com sacos de mantimentos e veículos tombados. As ruas do Brás e da Mooca transformaram-se, instantaneamente, num labirinto de barricadas, que ninguém ousava percorrer. No dia 13 de Julho os jornais publicaram uma nota da Delegacia Geral: “pedimos ao povo pacifico que se recolha às suas casas para não ser recolhido no meio dos desordeiros (...), pois a policia (...) vai manter a ordem, para isso empregando os meios mais energéticos”.

Frente aos constantes casos de insubordinação da Força Pública e da guarda cívica, que se recusavam a reprimir os grevistas, foram solicitadas tropas do interior. Navios de guerra aportaram na cidade de Santos. Marinheiros foram destacados para reprimir populares que saqueavam os armazéns do porto. “A policia não permitirá reuniões nas praças e ruas públicas, dissolverá pela força os que pretendiam ir contra a esta resolução”, afirmava um novo comunicado governamental. Tropas de Infantaria e a Cavalaria percorriam as ruas dispersando aglomerações.

Na sexta-feira, faltava pão, gás, transporte e um grupo de operários tentou parar um dos poucos bondes que ainda teimava em circular, escoltado por policiais fortemente armados. Novo tiroteio, outra vítima fatal: uma menina de 12 anos. Os tiroteios se sucediam. Outro morto, o pedreiro Nicola Salermo. O que era uma simples greve por aumento salarial e melhoria de condições de trabalho estava se transformando numa verdadeira insurreição operária.

Diante do impasse nas negociações entre operários e patrões, uma comissão de jornalistas de diversas publicações da capital paulista foi formada para mediar o conflito. O resultado dessas negociações foi uma proposta de aumento geral de salários em 20%, respeito ao direito de associação, não dispensa dos grevistas. O governo, por sua vez, se comprometeu a libertar os presos e a reconhecer o direito de reunião e eu “o poder publico intercederá (...) para que sejam estudadas e votadas medidas que protejam os trabalhadores menores de 18 anos e as mulheres no trabalho noturno”. Propostas que foram aceitas prontamente pelo Comitê de Defesa Proletária.

O Comitê decidiu, então, comunicar a proposta em três grandes comícios no Largo da Concórdia, na Lapa e no Ipiranga. Neles foi aceita a contra-proposta patronal e decidida à volta ao trabalho, sob a condição de se retornar à greve caso os patrões descumprissem o acordo. “Com a volta de alguns milhares de operários ao trabalho, a cidade retomou ontem o aspecto que tinha antes de se iniciar o movimento grevista”, noticiou aliviado O Estado de São Paulo. Mas, a calma era apenas aparente. Depois destes dias, São Paulo não seria mais a mesma. A paisagem urbana havia mudado com a entrada em cena de um novo personagem – o proletariado.



As lições da greve (ou um novo ator a procura de um novo roteiro)

Embora os acontecimentos de julho de 1917 tenham representado uma das mais belas páginas da luta do proletariado brasileiro, apresentou também as suas limitações. Pouco a pouco todas as conquistas da greve foram sendo retiradas. As perseguições e prisões dos principais líderes não só continuaram como aumentaram. As promessas da burguesia, pouco a pouco, transformaram-se em pó. Por que isso ocorreu?

Primeiro: porque, apesar de combativos, os operários constituíam-se em minoria da população e se encontravam dispersos em pequenas oficinas, existindo assim, uma fragilidade nas suas organizações de classe. Segundo, esta fragilidade deu lugar a proliferação de idéias anarquistas, típicas dos pequenos artesãos. O anarquismo era a força hegemônica no setor combativo do movimento sindical brasileiro. Eles recusavam-se a organizar os operários de forma mais centralizada, negavam a necessidade do proletariado se organizar enquanto partido, único maneira de travar a luta política contar a burguesia e o seu Estado.

Esta concepção da luta operária os prendia, fundamentalmente, aos marcos da luta estritamente econômico-corporativa. Questões chaves, como ampliação da democracia (eleições livres, voto secreto, direito de voto aos analfabetos, mulheres e estrangeiros residentes no país, legalização dos partidos de esquerda), reforma agrária - ou mesmo a luta contra o imperialismo -, passavam ao largo das reivindicações anarquistas. Num país dependente, composto por uma população majoritariamente camponesa, dirigido por uma oligarquia agrária, que excluía grande parte da população da efetiva participação política, estas seriam bandeiras que poderiam trazer aliados aos operários em luta. Esta seria a única maneira destes se constituírem como força política e social autônoma na sociedade de classes brasileira e disputar, efetivamente, a hegemonia da sociedade com as classes proprietárias. Estas eram condições indispensáveis para consolidação e ampliação das conquistas dos trabalhadores.

Se por um lado, a greve de 1917 representou o ápice do anarquismo no movimento operário brasileiro, por outro, mostrou todas as suas limitações, que em pouco tempo acabariam por reduzir e mesmo eliminar sua influência. A revolução russa de outubro de 1917 mostrou um outro caminho: o da organização do proletariado enquanto partido político independente. Mostrou a necessidade da revolução socialista e da construção de um Estado Proletário. Coisas incompreensíveis para os anarquistas. A conseqüência necessária da greve geral de 1917 – e de outros embates que se seguiram naqueles anos no Brasil e no mundo - foi a fundação do Partido Comunista do Brasil, ocorrido em março de 1922. Este foi o marco da crise geral do anarquismo no país e início de uma nova fase na história da luta dos trabalhadores brasileiros rumo a sua libertação.


Bibliografia


- Bandeira, M., Melo, C e Andrade, A. T., - O ano vermelho, Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira,1967 (existe uma edição atual da editora Expressão Popular)


- Beiguelman, Paula – Os companheiros de São Paulo: Ontem e hoje, São Paulo: Ed. Cortez, 2002


- Khoury, Yara Aun – As greves em São Paulo, São Paulo, Ed. Cortez/Autores Associados, 1981




*Augusto Buonicore, historiador, é mestre em ciência política pela UNICAMP e membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil - PCdoB.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Portas d'água


“Essa cidade eu não posso esquecer
Essa chegada de amor por alguém...”


(Chegada, canção de José Maria Villar)


Ah, as cidades... Já disse noutro lugar, as cidades nascem, vivem e morrem, têm personalidade, sexo e temperamento bem humanos. Há exceções, é claro, mas as cidades em sua grande maioria são mulheres.

Se chegar a uma cidade ou dela partir são em si mesmos atos de uma dimensão dramática única, nada se compara a chegar ou partir de barco, pela água. Dir-me-eis que os trens têm a sua melancolia própria, do que não ousarei discordar. Mas nestes, tal como nos automóveis e ônibus, perde-se a sensação de ver a cidade, surgindo ou se afastando, como um todo, um conjunto, esse tão revelador do ser próprio e único de cada cidade. O que se poderia em tese ter a partir dos aviões, mas é certo que a sua rapidez, as tensões próprias dos pousos e decolagens, sem falar nas insuportáveis burocracias aeroportuárias, acabam por ferir de morte qualquer ânimo contemplativo.

De barco, não! A aproximação é lenta, a distância que decresce inversamente ao vulto dá bem o termo do conjunto que se vai particularizando, vai se definindo, até que a cidade nos ofereça o seu porto, a sua porta, como moça ao abrir-se à entrega. E quando se parte? Mesmo que não queiramos, ainda que não haja motivos pra se despedir, é o ondular das marés que nos transforma inteirinhos num grande braço em aceno...

Tímido que sou, apavoram-me as abordagens diretas. A conversa não desenrola, gagueja, tropeça. Sempre tive horror à desmedida objetividade. Sou de navegar pela margem, de ir assuntando um assunto assim qualquer, de medir o tamanho da encrenca - marujo que conhece o tempo não é colhido por tempestade! Não sou de forçar barra, gosto de entrar convidado. Foram tantas as cidades...

Parati, jóia de bisavó guardada entre tantos brinquedos modernos, é o traço civil que nos salta aos olhos depois de infinitudes mar afora (mesmo que por horas...); visão mesma de trezentos anos passados a nos aprisionar num mítico desesquecimento do que somos e do que fazemos.

Rio de Janeiro e Niterói, gêmeas univitelinas separadas pela bacia das nossas esperanças, revoltas e necessidades, brutalmente religadas pela arrogância de ousados artifícios. Por trabalho ou por amor, por gosto ou por dinheiro, a quem não singrou a baía de águas e mágoas abissais a nos bafejar ventos salinos, ávidos e inquietos, jamais será facultada a chave dos segredos dessas velhas damas de belezas cansadas.

Belém - ah, Belém... - visagem imponente que se alevanta da Selva como boiúna desperta, fustigados os nossos assossegos; as torres do Mercado de Ferro são as balizas da minha saudade. E as cidadezinhas todas amazônicas, porto-só, moças da vida vivendo da oferta fugaz de seus impudicos meandros: Porto de Moz, Sousel, Gurupá, Óbidos, Alenquer, Vitória do Xingu...

Nenhuma, talvez, como Salvador, da baía do maior azul, a nos espiar com seu pescoço mulato, assim, espichado... Só dali se compreende verdadeiramente o significado: Cidade Alta! Meio milênio d'olhos se nutriram daquela altaneira visão, abacaxis e abios para as feiras, fumo para os escambos – os mais sórdidos! - braços e esperanças para as revoltas, saveiros a conduzir o sangue nutritivo e inflamável bombeado do coração da metrópole aos confins recôncavos de engenhos e lavouras.

Ai das cidades – e das mulheres – aonde não se pode chegar navegando!

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Do outro jeito era melhor


Outro dia o grande camarada Bruno Ribeiro nos contava como consegue nos dias que correm resistir à tentação de aderir às mudernidades tecnológicas que nos querem fazer descer goela abaixo, a despeito da pouca ou nenhuma necessidade pessoal que tenhamos delas. Este, aliás, é o único e verdadeiro problema. Todas essas máquinas têm suas inegáveis utilidades, propiciam soluções. Só que apenas quem tem determinado problema precisa de determinada solução. Mas não. Essas novidades são postas ao dispor dessa coisa informe e assustadora hodiernamente chamada “mercado” - porque também outrora “mercado” representou um lugar onde se ia buscar satisfação para necessidades específicas – de modo a induzir desejos de consumo a partir da elaboração ideológica de pseudo-necessidades. O papel da propaganda ideológica é, como em geral alhures, o de nos fazer acreditar que o contigente é o necessário, que o aparente é o real.

Desse modo, não existem modos bons ou maus de se fazer algo, por si próprios. Existem aqueles que nos servem para a solução de uma necessidade específica e tendem, assim, a nos facilitar a vida. E os que, por não atenderem a uma demanda real, só fazem nos trazer problemas novos que sem eles não teríamos e ensejar mais necessidades de segunda e terceira geração. O Bruno não tem celular e não sente falta dele, porque pode ser localizado com facilidade na maior parte do dia (e na menor, deseja mesmo não sê-lo). Eu trabalho num buraco abaixo da superfície de onde não posso sair durante oito horas por dia, nem telefonar para outro celular ou para outro município, sendo que a maior parte dos meus negócios depende desses contatos. Além disso, vou a muitos lugares num mesmo dia e tenho duas filhas pequenas. E assim por diante.

Há no entanto, para mim, inegavelmente coisas que eram melhores do jeito antigo.

O correio eletrônico certamente resgatou minha vocação missivista, quase sepultada pela acachapante preguiça que domina minha existência. Mas eu não tenho mais as mensagens que mandei ano passado, com rarísssimas exceções. Já as cartas de quinze, vinte anos atrás estão lá, amarelinhas no fundo da gaveta, guardando o traço jovial de alguém há muito perdido de vista; às vezes uma lágrima pingada sobre o papel... Às vezes até o cheiro de quem escreveu. Cheiros, lágrimas e traços que sobreviveram ao tempo e mesmo sobreviverão - quem sabe? - aos correspondentes.

Os processos eletrônicos têm, em geral, inúmeras vantagens sobre os mecânicos – a máquina de escrever, por exemplo, perde de humilhante goleada do computador, no quesito eficiência. Os automóveis eletrônicos são mais seguros, mais precisos e, em geral, mais eficientes. No entanto, abro o capô de qualquer carrinho popular e o que tenho à vista é uma caixa preta velada, inexpugnável como um sarcófago de m distante faraó perdido no tempo... futuro! Não tenho a mais remota idéia de como possa funcionar uma injeção eletrônica. Os componentes eletrônicos, aliás, têm como fundamental característica não se darem à compreensão pelo senso comum. É por isso que mecânico de carro não aprende mais a consertar nada: aprende a trocar. Nem o mecânico domina o funcionamento daquela máquina; no lugar disso, aprende apenas o processo de montagem, pra poder trocar - último grau da alienação! Antigamente, se meu chevette engasgava, eu mesmo desmontava o carburador e desentupia. E a máquina de escrever, nem quebrar quebrava...

Na quitanda, na feira, o legume era a granel, podia escolher. A carne era no açougue, se pedia pra cortar o bife grosso ou fino, com ou sem gordura; a rabada pela junta,como gosta meu mano Eduardo, o corte da peça desse jeito ou do outro. Hoje quase não há mais açougue no meu bairro. Mesmo na feira, os legumes são cada vez mais empacotados em bedejinhas plásticas. Não se pode escolher, há que se levar o lote, meio bom, meio ruim. Não adianta conhecer quiabo, não adianta ser freguês de anos. A carne também é embalada, tudo do mesmo jeito, mais prático, mais rápido. Mais igual. Mais sem graça.

Aliás, não tem açougue, nem quitanda, nem loja de sapato, e as padarias têm rareado. Butiquim ainda tem, mas são todos iguaizinhos, com jeito de lanchonete e visual clara e pobremente inspirado nos maquidônaldis da vida. A classe média, como tão bem percebeu meu bom e saudoso amigo Armando, prefere os lugares fechados, cujo protótipo por excelência são os xópins. A rua, que deveria numa sociedade cada vez mais urbana ser o lugar do encontro, do intercâmbio, do diverso, cada vez mais passa a se identificar como um espaço hostil, do desconhecido, do completamente outro, habitado pelos não-nós. E é claro que, como decorrência do abandono da rua pelo povo, ela passa a ser muito mais facilmente dominável pelo elemento anti-social. Para mim trata-se de uma percepção antiga: os lugares públicos não são abandonados pelas pessoas porque são perigosos, antes tornam-se perigosos porque são abandonados.

A alienação não conhece limites. Nada mais está ao alcance do nosso arbítrio, da nossa escolha, nada mais parece depender da nossa sagacidade, da experiência ou da habilidade. Não nos é dado interferir, pois todos os espaços de interação estão ou banidos, ou pré-informados, de modo a conterem-se estritamente nos limites pré-determinados, formais. Tudo vem pronto, embalado. Prêt-a-porter.Nem o pedinte pede mais esmola, não conta sua história, não tem chance de nos convencer pela comoção ou pela empatia. Escreve papeizinhos iguais, com as mesmas lenga-lengas assépticas xerocopiadas, que sai distribuindo nos pontos de ônibus, ou pelos carros, nos cruzamentos, calado, sem olhar pra ninguém. “Minhafamíliaépobretenhoseteirmãoscomfomemelhorpedirqueroubaraceito
qualquerajudavaletransportevalerefeiçãodeuslhepague”.

Somente a culpa e a indiferença seguem movendo as mós que terminarão de nos triturar.