segunda-feira, 2 de julho de 2007
Do outro jeito era melhor
Outro dia o grande camarada Bruno Ribeiro nos contava como consegue nos dias que correm resistir à tentação de aderir às mudernidades tecnológicas que nos querem fazer descer goela abaixo, a despeito da pouca ou nenhuma necessidade pessoal que tenhamos delas. Este, aliás, é o único e verdadeiro problema. Todas essas máquinas têm suas inegáveis utilidades, propiciam soluções. Só que apenas quem tem determinado problema precisa de determinada solução. Mas não. Essas novidades são postas ao dispor dessa coisa informe e assustadora hodiernamente chamada “mercado” - porque também outrora “mercado” representou um lugar onde se ia buscar satisfação para necessidades específicas – de modo a induzir desejos de consumo a partir da elaboração ideológica de pseudo-necessidades. O papel da propaganda ideológica é, como em geral alhures, o de nos fazer acreditar que o contigente é o necessário, que o aparente é o real.
Desse modo, não existem modos bons ou maus de se fazer algo, por si próprios. Existem aqueles que nos servem para a solução de uma necessidade específica e tendem, assim, a nos facilitar a vida. E os que, por não atenderem a uma demanda real, só fazem nos trazer problemas novos que sem eles não teríamos e ensejar mais necessidades de segunda e terceira geração. O Bruno não tem celular e não sente falta dele, porque pode ser localizado com facilidade na maior parte do dia (e na menor, deseja mesmo não sê-lo). Eu trabalho num buraco abaixo da superfície de onde não posso sair durante oito horas por dia, nem telefonar para outro celular ou para outro município, sendo que a maior parte dos meus negócios depende desses contatos. Além disso, vou a muitos lugares num mesmo dia e tenho duas filhas pequenas. E assim por diante.
Há no entanto, para mim, inegavelmente coisas que eram melhores do jeito antigo.
O correio eletrônico certamente resgatou minha vocação missivista, quase sepultada pela acachapante preguiça que domina minha existência. Mas eu não tenho mais as mensagens que mandei ano passado, com rarísssimas exceções. Já as cartas de quinze, vinte anos atrás estão lá, amarelinhas no fundo da gaveta, guardando o traço jovial de alguém há muito perdido de vista; às vezes uma lágrima pingada sobre o papel... Às vezes até o cheiro de quem escreveu. Cheiros, lágrimas e traços que sobreviveram ao tempo e mesmo sobreviverão - quem sabe? - aos correspondentes.
Os processos eletrônicos têm, em geral, inúmeras vantagens sobre os mecânicos – a máquina de escrever, por exemplo, perde de humilhante goleada do computador, no quesito eficiência. Os automóveis eletrônicos são mais seguros, mais precisos e, em geral, mais eficientes. No entanto, abro o capô de qualquer carrinho popular e o que tenho à vista é uma caixa preta velada, inexpugnável como um sarcófago de m distante faraó perdido no tempo... futuro! Não tenho a mais remota idéia de como possa funcionar uma injeção eletrônica. Os componentes eletrônicos, aliás, têm como fundamental característica não se darem à compreensão pelo senso comum. É por isso que mecânico de carro não aprende mais a consertar nada: aprende a trocar. Nem o mecânico domina o funcionamento daquela máquina; no lugar disso, aprende apenas o processo de montagem, pra poder trocar - último grau da alienação! Antigamente, se meu chevette engasgava, eu mesmo desmontava o carburador e desentupia. E a máquina de escrever, nem quebrar quebrava...
Na quitanda, na feira, o legume era a granel, podia escolher. A carne era no açougue, se pedia pra cortar o bife grosso ou fino, com ou sem gordura; a rabada pela junta,como gosta meu mano Eduardo, o corte da peça desse jeito ou do outro. Hoje quase não há mais açougue no meu bairro. Mesmo na feira, os legumes são cada vez mais empacotados em bedejinhas plásticas. Não se pode escolher, há que se levar o lote, meio bom, meio ruim. Não adianta conhecer quiabo, não adianta ser freguês de anos. A carne também é embalada, tudo do mesmo jeito, mais prático, mais rápido. Mais igual. Mais sem graça.
Aliás, não tem açougue, nem quitanda, nem loja de sapato, e as padarias têm rareado. Butiquim ainda tem, mas são todos iguaizinhos, com jeito de lanchonete e visual clara e pobremente inspirado nos maquidônaldis da vida. A classe média, como tão bem percebeu meu bom e saudoso amigo Armando, prefere os lugares fechados, cujo protótipo por excelência são os xópins. A rua, que deveria numa sociedade cada vez mais urbana ser o lugar do encontro, do intercâmbio, do diverso, cada vez mais passa a se identificar como um espaço hostil, do desconhecido, do completamente outro, habitado pelos não-nós. E é claro que, como decorrência do abandono da rua pelo povo, ela passa a ser muito mais facilmente dominável pelo elemento anti-social. Para mim trata-se de uma percepção antiga: os lugares públicos não são abandonados pelas pessoas porque são perigosos, antes tornam-se perigosos porque são abandonados.
A alienação não conhece limites. Nada mais está ao alcance do nosso arbítrio, da nossa escolha, nada mais parece depender da nossa sagacidade, da experiência ou da habilidade. Não nos é dado interferir, pois todos os espaços de interação estão ou banidos, ou pré-informados, de modo a conterem-se estritamente nos limites pré-determinados, formais. Tudo vem pronto, embalado. Prêt-a-porter.Nem o pedinte pede mais esmola, não conta sua história, não tem chance de nos convencer pela comoção ou pela empatia. Escreve papeizinhos iguais, com as mesmas lenga-lengas assépticas xerocopiadas, que sai distribuindo nos pontos de ônibus, ou pelos carros, nos cruzamentos, calado, sem olhar pra ninguém. “Minhafamíliaépobretenhoseteirmãoscomfomemelhorpedirqueroubaraceito
qualquerajudavaletransportevalerefeiçãodeuslhepague”.
Somente a culpa e a indiferença seguem movendo as mós que terminarão de nos triturar.
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As cartas! Eu sinto falta das cartas! E só não deixei de escrevê-las e recebê-las porque existe em Campinas um cidadão exemplar que atende pelo nome de José Reinaldo Pontes, meu livreiro de fé. Ele é o nosso Digão Folha Seca. Aliás, vou levá-lo à livraria do sujeito. Pois bem, o Pontes, homem viajado, intelectual autêntico, apaixonado por livros e botequins, é o único que, para marcar uma biritagem comigo o faz por cartas, com uma semana de antecedência. Eu, para retribuir, respondo-lhe a carta, gentilmente, quando quero encontrá-lo por algum motivo maior. Nunca falamos sobre isso, mas vejo na coisa um quê de resistência romântica diante das relações que vão se perdendo. Beijo!
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ResponderExcluirO celular, para mim, é o maior dos problemas desse mundo "muderno" que querem nos empurrar. Justamente na questão de não querer ser achado. Pessoas humilham publicamente alguém cujo celular caiu na caixa postal.
ResponderExcluirÉ fato que há algumas melhorias, mas, como você disse, elas encobrem todo o processo, meio que escondendo a propagação do conhecimento ali empregado.
Enquanto isso, acabam-se todas essas coisas boas. O quintal, por exemplo, daqui a pouco não mais existirá. Um amigo alugou uma casa e foi proibido de levatar um tanquinho de terra de 2X2 para que sua filha brincasse.
Abraço, Fernandão!
P.S.: o texto sobre o Armando está no ar.
Grande Szegeri, matou a pau. É exatamente em cima disso que temos trabalhar. O romantismo está acabando meu caro, pelo menos para alguns. Escrevi há pouco tempo no blog justamente algo parecido em "Mundos iguais, tempos distintos". Não se vai mais ao galinheiro ou se faz roupa em alfaiate, e quem ainda possui estes cotumes é mal visto por esta imunda sociedade. Que se danem, sigamos com nossos lindos e sentimentais costumes que nos deixam maravilhosas sequelas de amor.
ResponderExcluirE não basta ter celular, qualquer celular. É preciso ter o último modelo. Hoje ninguém espera o amigo lendo, pensando na vida ou puxando conversa com o vizinho de mesa. Ninguém fica sozinho, todos se refugiam no celular para não precisar pensar. Triste demais.
ResponderExcluirQue texto, que texto, que texto, Pompa! Gosto de lê-lo, já disse isso milhares de vezes, mas é após lê-lo que sinto o peso vergastante da minha ignorância - eu, um incapaz de pensar tão grande e com tanta clareza de idéias.
ResponderExcluirÀ merda, a canalha que se rende a essas porras todas (note como sou fino no palavreado...).
E salve seu Chevette, viva meu Brizolamóvel, nossos radinhos de pilha, nossos times de botão, nosso exército todo ele de soldados apaixonados como nós, avessos a esses modismos que renderam, até o momento, pensa comigo: uma cambada de mulheres que preferem mulheres a machos, uma porrada de viados frescos, um sem número de meninos e meninas que não sabem bem sua "preferência sexual" - pergunte aos professores!, pergunte! -, mulheres frígidas, homens brochas, times sem alma, bairros sem identidade, adolescentes dependentes de drogas químicas, machos preocupados com a quantidade de dobras no abdomen alheio, covardes autômatos que não sabem nada, nada, rigorosamente nada sobre viver a vida.
Não passarão! Nós é que passaremos por cima deles.
Ah!
ResponderExcluirE a mania escrota que o celular instituiu?
Ninguém mais diz "alô"! A escrotidão é assim:
(toca o celular)
- Alô?
- Tá aonde?
Porra! "Tá aonde?" é o caralho, né, não?
E a mania de mensagens pelo celular?
"Tô chegando". "Tô quase chegando". "Cheguei". "Cadê você?".
Um nojo, mano.
Um monstruoso nojo, isso tudo.
Mais um blog de amigo do Bruno Ribeiro que entrou pra minha leitura diária! Abraços!!!
ResponderExcluirComecei a andar com essa merda para dar paz à minha mãe, que ficava preocupada com meus sumiços.
ResponderExcluirTenho o Daniel como referência no quesito "Foda-se o celular". Ele tem um há 4 anos. Nunca o tirou da caixa!
Beijo!
Cara...que texto bacana, só fico puto de você não me chamar pra toamr uma de quinta feira na Paulista com o Favela e cia...rs
ResponderExcluirTenho vontade de entrar com processo de retorno do meu dinheiro ao que se refere todos os celulares que já tive que comprar sem querer, pois quebram e como tudo é tecnologia...consertar???Tá louco...compra outro...e vai ficando o desperdício lá em casa...
Grande Caputo! Seja bem chegado!
ResponderExcluir"Nós, animaizinhos melhorados, que usamos bem o engenho e a lógica pra subjugar a natureza, construir ferramentas e técnicas que em geral só nos ajudam a tornar o mundo um lugar cada vez mais insuportável de se viver."
ResponderExcluirFernando Szegeri