quarta-feira, 4 de julho de 2007

Portas d'água


“Essa cidade eu não posso esquecer
Essa chegada de amor por alguém...”


(Chegada, canção de José Maria Villar)


Ah, as cidades... Já disse noutro lugar, as cidades nascem, vivem e morrem, têm personalidade, sexo e temperamento bem humanos. Há exceções, é claro, mas as cidades em sua grande maioria são mulheres.

Se chegar a uma cidade ou dela partir são em si mesmos atos de uma dimensão dramática única, nada se compara a chegar ou partir de barco, pela água. Dir-me-eis que os trens têm a sua melancolia própria, do que não ousarei discordar. Mas nestes, tal como nos automóveis e ônibus, perde-se a sensação de ver a cidade, surgindo ou se afastando, como um todo, um conjunto, esse tão revelador do ser próprio e único de cada cidade. O que se poderia em tese ter a partir dos aviões, mas é certo que a sua rapidez, as tensões próprias dos pousos e decolagens, sem falar nas insuportáveis burocracias aeroportuárias, acabam por ferir de morte qualquer ânimo contemplativo.

De barco, não! A aproximação é lenta, a distância que decresce inversamente ao vulto dá bem o termo do conjunto que se vai particularizando, vai se definindo, até que a cidade nos ofereça o seu porto, a sua porta, como moça ao abrir-se à entrega. E quando se parte? Mesmo que não queiramos, ainda que não haja motivos pra se despedir, é o ondular das marés que nos transforma inteirinhos num grande braço em aceno...

Tímido que sou, apavoram-me as abordagens diretas. A conversa não desenrola, gagueja, tropeça. Sempre tive horror à desmedida objetividade. Sou de navegar pela margem, de ir assuntando um assunto assim qualquer, de medir o tamanho da encrenca - marujo que conhece o tempo não é colhido por tempestade! Não sou de forçar barra, gosto de entrar convidado. Foram tantas as cidades...

Parati, jóia de bisavó guardada entre tantos brinquedos modernos, é o traço civil que nos salta aos olhos depois de infinitudes mar afora (mesmo que por horas...); visão mesma de trezentos anos passados a nos aprisionar num mítico desesquecimento do que somos e do que fazemos.

Rio de Janeiro e Niterói, gêmeas univitelinas separadas pela bacia das nossas esperanças, revoltas e necessidades, brutalmente religadas pela arrogância de ousados artifícios. Por trabalho ou por amor, por gosto ou por dinheiro, a quem não singrou a baía de águas e mágoas abissais a nos bafejar ventos salinos, ávidos e inquietos, jamais será facultada a chave dos segredos dessas velhas damas de belezas cansadas.

Belém - ah, Belém... - visagem imponente que se alevanta da Selva como boiúna desperta, fustigados os nossos assossegos; as torres do Mercado de Ferro são as balizas da minha saudade. E as cidadezinhas todas amazônicas, porto-só, moças da vida vivendo da oferta fugaz de seus impudicos meandros: Porto de Moz, Sousel, Gurupá, Óbidos, Alenquer, Vitória do Xingu...

Nenhuma, talvez, como Salvador, da baía do maior azul, a nos espiar com seu pescoço mulato, assim, espichado... Só dali se compreende verdadeiramente o significado: Cidade Alta! Meio milênio d'olhos se nutriram daquela altaneira visão, abacaxis e abios para as feiras, fumo para os escambos – os mais sórdidos! - braços e esperanças para as revoltas, saveiros a conduzir o sangue nutritivo e inflamável bombeado do coração da metrópole aos confins recôncavos de engenhos e lavouras.

Ai das cidades – e das mulheres – aonde não se pode chegar navegando!

4 comentários:

  1. Anônimo4/7/07 21:25

    E no dia 10 eu lhe apresentarei o corpo e a alma da minha Campinas, essa menina.

    Antológico texto, malandro. Desses para guardar e reler...

    Beijo

    ResponderExcluir
  2. Voltarei todos os dias aqui para ler esses presentes...romântico...

    ResponderExcluir
  3. Mestre, eu, que trabalho em Niterói, sei bem de duas coisas; a beleza do barco e a monstruosidade obtusa da ponte, não por acaso oficialmente chamada de costa e silva - personagem obtuso e monstruoso como o gigante de concreto que enfeia a tua e minha Guanabara
    Beijo

    ResponderExcluir
  4. Anônimo9/7/07 15:40

    Malandro, tá difícil falar com vc, dá um sinal dizendo se está de pé a sua vinda amanhã ou não. Eu estarei aguardando, mas preciso da confirmação. Beijo!

    ResponderExcluir