quinta-feira, 31 de agosto de 2006

Descartando Descartes

"Creio na virtude do confuso. O papel do etnólogo é trasnformar as idéias claras e distintas em idéias confusas, obscuras."

(Roger Bastide)

terça-feira, 22 de agosto de 2006

Bahia de Todas as Esperanças

Cem por cento dos leitores pedem a volta destas mal traçadas. Não sabem é que continuo impregnado de Bahia até os ossos, e então mister não se precipitar, meu rei. Até o final do ano, três velocidades: devagar, quase parando e parado.

Quase dez anos passados, o Brasil nestes tempos tão atacado, tão solapados seus fundamentos pelos predadores de sempre, ora travestidos de mudernos e competentes governantes entreguistas do patrimônio público e da soberania nacional, devidamente comissionados, ora de baluartes do multiculturalismo tudo-é-válido-ningúem-é-de-ninguém, ora de pentecostais donos e senhores pretensos de toda a verdade e todos os caminhos (que Exu nos venha vingar!). Temia eu tivesse a terra de Todos os Santos sucumbido à frouxeza dos nossos alicerces balangantes. Mas qual o quê!

Adalgisa, que encontrei nas imediações sagradas do Opô Afonjá, de emanações de resistências jamais vincendas, mandou dizer que a Bahia tá viva ainda lá. Rio Vermelho, dez da noite, a negra mercando ainda parece um lamento que se agarra de unhas, dentes e contas ao que ainda vive e pulsa pelos becos e ladeiras. Ladeiras do Pelourinho que já não tem aquele verniz de ocasião que a Malvadeza mandou caiar - a do Carmo anda em pandarecos lamentável falta de projeto e proposta para o mais representativo acervo arquitetônico civil colonial: ficou só na perfumaria, infelizmente. Mas acima de tudo, os negros e negras esculturais seguem desfilando sua altivez e sua soberania impressionantes, senhores das ruas e dos mistérios, donos dos sons, dos passos e dos remédios nesta Cidade da Bahia.

Que continua a mais democrática, a mais miscigenada de todas as capitais brasileiras. Não só na promiscuidade tão maravilhosa de genes, credos e etnias, volúpias sempre incontidas, mas na não separação das moradias, bairros todos abrigando a variedade das classes e das culturas. Igrejas vizinhas de terreiros, prédios modernos junto às casinhas de alvenaria sem reboco, pretas de acarajés e abarás em frente ao restaurante japonês de linhas futuristas. Essa, a Bahia. A pichação de rua ostenta o arco-e-flecha de Oxóssi apontados para a igreja-franquia em frente, ladeados pelos dizeres: "não à intolerância, respeito à diversidade".

É tema para nós sempre recorrente o processo de apropriação da cultura popular pela lógica capitalista, que busca transformar tudo o que é liberdade e resistência em perpetuação dos processos de acumulação e de opressão. Dei-me conta nesta estada na cidade de Todos os Santos e Todas as Raças, que lá se operou, talvez como em nenhum outro lugar uma apropriação invertida. Impossibilitada de suprimir o âmago da própria opressão, a magnífica cultura do povo baiano transformou em seu, em único, muitas manifestações que seriam exclusivas dos dominantes. Pois é esse povo que faz da magnífica Igreja da Conceição da Praia templo de Iemanjá, do santuário Senhor Bonfim casa de seu Oxalá negro, encenando ali, mais do que um ritual de fé, uma demonstração de quem manda efetivamente nas ruas e encruzilhadas da Cidade Santa da Bahia, ignorando apelos e proibições eclesiásticas. E é nas suas ruas que esse povo canta, dança, come e reza.

Meu credo, sabeis, é que no fazer singular, nas especificidades dos modos de ser e estar no mundo é que se descortina o reino da liberdade, da autodeterminação, que presentemente se traveste em resistência, mas um dia há de ser afirmação. O grande Jorge Amado anteviu ainda nos anos 30 que a liberdade que vem da revolução dos meios produtivos, da quebra das estruturas capitalistas, convive já com essa liberdade anterior e essencial que se coloca aquém e além das estruturas econômicas de mediação social. Em seu Jubiabá, o grande romancista exalta reiteradamente a liberdade dos vagabundos, dos valentes, mendigos e desordeiros, juntamente com a sabedoria conselheira e curativa do centenário pai-de-santo, a prefigurar os domínios da atividade humana que podem ser mediados por outras categorias não-alienadas, ainda que o exercício dessa liberdade acabe finalmente por exigir a transformação das estruturas de poder, o que se dá pela luta operária. A Bahia nos ensina, pois, de qualquer forma, que nenhuma liberdade jamais existirá, se não formos sujeitos construtores do nosso próprio destino.

Vai o baiano, assim, resistindo, afirmando-se senhor de seus caminhos: nas tardes vagabundas de segunda-feira, na Ribeira; na arte afiada de Hansen Bahia, abaianadora de tudo o que se pode imaginar; nas quase-barrocas fotografias reveladoras-ocultadoras do babalaô Verger. No policial do Batalhão de Proteção ao Turista aboletado em prontidão defronte a uma viela suspeitíssima, a informar solicitamente aos interessados em saber o que encerrava aquele beco instigante e tortuoso: "aglomerado de bares ilegais, pontos de venda de drogas e objetos roubados, senhor; altamente recomendável não entrar".

Cultura de todos os dias

Hoje é dia 22 de agosto, dia de reunir os amigos, contar histórias velhas, botar novidades em dia, como fazemos nós, velhos diretores do outrora querido Centro Acadêmico 22 de Agosto, religiosamente há mais de quinze anos. Dia também que alguém resolveu designar como o dia nacional do folclore. Abro há pouco, por acaso, a página inicial do portal UOL e logo de cara deparo a pérola: "Hoje é dia: celebre tudo o que caracteriza a cultura brasileira". Não poderia haver, com certeza, retrato mais fiel e mais preocupante dos sombrios tempos atravessados por essa nação chamada Brasil.

Fez-se razoavelmente disseminada a distinção o que se convencionou chamar "folclore" e o que se denomina "cultura popular". Não que seja de rigor, mas é útil para o que aqui queremos apresentar. Grosso modo, "folclore" é museu, ou seja, uma tentativa de se preservar um acervo a que se atribui importância histórica e de que, de outra forma, estaria fadado à degeneração. De importância inegável, é certo que se destina à preservação das coisas que já não está encampadas no dia-a-dia, por isso mesmo ameaçadas de extinção caso não se promova uma intervenção direcionada. Essa disposição consciente de preservação tem, portanto, pressupostos subjetivos e objetivos que determinam francamente a dimensão do "corte" que se vai operar na realidade representada, de modo que a referência seja sempre parcial, indireta e, de certo ponto de vista, dirigida.

"Cultura", de outra parte, é algo vivo, que exprime um jeito particular de ser e estar no mundo e de agir sobre ele. No falar, no cantar, nas histórias, na preparação dos alimentos, nos modos de morar, vestir e trabalhar, na sabedoria conselheira ou curativa, em todos os aspectos do fazer humano em que se pode revelar um determinado modo que se pode mais ou menos delinear como peculiar a um determinado grupamento humano. Esses modos de ser e fazer ao mesmo tempo determinam, por um lado, as categorias através das quais os indivíduos interagem com o mundo ao seu redor e, por outro, representam o produto coletivizado dessas interações. O campo da cultura, assim, é onde se opera magistralmente a interação dialética entre indivíduo e coletividade, de um lado, e entre passado, precisamente enquanto conjunto das realizações humanas conquistadas coletivamente, e presente, entendido como arena privilegiada aberta às novas contribuições, constantemente reinterpretada e recriada. A complexidade e a historicidade arraigadas são, pois, marcas profundas e fundamentais. Não há lugar, aqui (a não ser para as interpretações científicas, mas aí estaremos num outro plano do fazer cultural, ou "metacultural"), para as univocidades, para os cortes representativos, para as imobilizações de qualquer ordem, para as ações orientadas a finalidades a priori determinadas, sob pena de negação dessa dinâmica e dessa dialética essencial.

Percebemos, assim, a impropriedade essencial da recomendação de um dos maiores grupos da comunicação privada no país: "celebre tudo o que caracteriza a cultura brasileira". Leia-se, em outras palavras: hoje é dia de lembrar do jeito brasileiro de fazer as coisas, se der um tempinho entre uma passada no xópim, uma lanche no maquidônaldi e um filme da bloquimbuster. No momento em que eu tenho que parar o fluxo do meu dia-a-dia para pensar nas coisas que representam o Brasil, é porque essas coisas já morreram para mim há muito tempo, porque esse "brasil" só faz sentido como uma reminiscência distante que se urge preservar pelo valor histórico, quiçá sentimental. Se comer uma feijoada, ouvir um samba, ir ao futebol ou entrar num butiquim para tomar uma cerveja transformarem-se num ato de grande solenidade em homenagem ao modo brasileiro de comer, beber, cantar, então é porque eles já estarão mortos, farão parte de um passado que só tem sentido para mim como remissão historicista.

Não quero dizer com isto, absolutamente, que não sejam necessárias ações para se preservar o espaço privilegiado da manifestação da cultura popular. Muito pelo contrário, pois estamos num cenário de guerra onde as forças da padronização, do pensamento único, do estabelecimento de padrões de sociabilidade externamente em relação aos indivíduos singularmente considerados, quotidianamente envidam esforços e ações para varrer todos os vestígios de possibilidade de exercício de um fazer singular, criativo, que não aceita a pré-determinação dos modos de vida tão caros à planificação capitalista e que se constituem, é fácil perceber, no domínio por excelência da liberdade. Nessa batalha, os domínios da cultura constituídos de estruturas simbólicas delicadas são presas fáceis para a sanha predadora da univocidade anti-cultural a serviço da lógica da acumulação do capital. As intervenções para equilibrar a batalha, então, são por demais necessárias. Apenas, há que se ter sempre presente a preocupação de não imobilizar a dinâmica complexa dos processos culturais sob pretexto de preservá-los, o que equivaleria a embalsamar o fazer cultural vivo nos folclóricos museus de cera.