segunda-feira, 31 de maio de 2004

Pequena lista de grandes necessidades


Queridos, eis que não gosto de dizê-lo, mas como ninguém lê mesmo, aproxima-se a efeméride de meu natalício, que Jesus me concedeu compartilhar com seu primo João Batista, meu fiel protetor. Assim, fingindo que alguém além da dulcíssima Iara, a mãe de todas as minhas águas, quisesse me presentear, vai, à moda dos casamentos, uma lista acompanhada das respectivas justificativas, para que saibais não se tratar de luxo ou frivolidade, mas de necessidades prementes do corpo e da alma que a conta bancária não tem dado conta de prover. Infelizmente não foi aceita pela Camicado nem pela Cleusa Presentes:

- par de sapatos cor marfim ou areia, sem esse bico quadrado insuportável, que possam ser usados indistintamente com a calça branca adquirida no Saara, por ocasião do último carnaval, ou com a minha tradicional ocre, única que sobrou vestível após o recente incremento de mais uns cinco centímetros na circunferência abdominal (só para minha mãe: o marrom já arrumei, fuçando na sapateira do papai). Necessário solado de couro, eis que se destina aos salões;

- par de galochas, que procuro há anos, depois que desapareceu uma loja que havia na descida da Rua do Seminário, próxima à aparentemente falecida Praça do Correio (naturalmente, servirá para proteger os sapatos marfim, ou mesmo o meu pretinho surrado, que anda com a sola inconvenientemente absorvente e esse tempinho não está mole);

- o recentemente lançado Pará - Cores e Sentimentos (Belém, Ed. Escrituras, 2004, 96 páginas), livro de fotografias pelos excelentes Geraldo Ramos e Octavio Cardoso (para aplacar as saudades daquela terra que cada dia mais tenho por minha, e da qual me sinto injustamente exilado, nesses tempos de um inverno precoce, severo e extremamente enjoativo);

- o último disco do baiano Roque Ferreira, que já possuo, mas de tão necessário faz-se mister assegurar que não me faltará numa hora difícil (é bíblico: "dos que nada têm, até o pouco que têm lhes será tirado")

- três garrafinhas de conhaque de honesta procedência para tentar sobreviver a esse miserável inverno que parece ter chegado para ficar para sempre (não precisa ser Remmy Martin, Henessy, nem mesmo Fundador: um Macieira 5 Estrelas resolveria muito bem, mas agradeceria um Napoleón; só não vale Domecq, que eu adorava mas estragaram conspurcando a pureza do destilado de vinho, coisa que só o confrade Malavota não percebeu);

- uma bateria nova para o meu telefone celular (para que eu possa ouvir, nas madrugadas insones e geladas de bebedeiras vagabundas, a voz dos que amo e se encontram distantes, o que sempre nos pode salvar a vida num momento mais crítico);

- um par de sandálias, que não precisam ser da cor do meu chapéu de palha, mas têm que vir de Belém e terem sola de pneu e serem trançadas (não aquelas de duas tiras, que foram inventadas especialmente para meu compadre Moacyr Luz) e serem compradas na Praça da República (isso porque voltará a fazer calor um dia – a esperança é a última que morre - ou eu fugirei de vez pro Pará, ou eu vou morrer e não tem a menor graça este barbudo de alma cafuza ser enterrado de mocassim...);

- passagem de ida e volta (fazer o quê?) para o Rio de Janeiro (despicienda qualquer justificativa).

Sinceramente: parece-lhes muito ou descabido?

sexta-feira, 28 de maio de 2004

Deus de Deus

Celso Viáfora


Será que Deus também crê
nas coisas que ele não vê?
Será que constrói igrejas no céu?
E sente, assim como eu,
ao contemplar o prazer
a inexplicável presença de Deus?

Será que tem o Senhor
para abrandar o sofrer
alguém a quem implorar ou temer?
Porque se Deus não tem Deus
como é que pode querer
que eu seja crente sendo Ele um ateu?

Mas e se Deus tem um Deus
no Além, além do meu
então pergunto eu:
será que Deus não sou
pra quem, no aquém de mim
procura alguém no breu?

E o que perguntará a mim com tanto ardor?
O que suplicará aquele que me tem por Deus?

quarta-feira, 19 de maio de 2004

Vermelhou


O Portal Vermelho, sítio virtual mantido pelo Partido Comunista do Brasil, foi o grande vencedor do prêmio IBest 2004 na categoria “política”, pelo voto direto dos internautas. Trata-se de uma grande vitória do Partido em geral e do camarada Bernardo Joffily, idealizador e maior entusiasta deste projeto. O prêmio é não só um reconhecimento pelo trabalho sério e competente, mas representa uma marca histórica para os comunistas.

Primeiro, porque em meu entender e conforme já tive oportunidade de escrever por aqui, a Internet é o veículo que revoluciona o padrão capitalista da comunicação em grande escala. Então, é fundamental que um Partido que se proponha a revolucionar as relações sociais lastreadas na lógica do capitalismo domine esse meio e as linguagens a ele subjacentes.

Segundo, porque não é pequeno o desafio de se fazer um “jornalismo partidário democrático”, conceito que chega a ser quase paradoxal. Pois é notório que a marca distintiva do jornalismo democrático é a objetividade e imparcialidade; e a característica maior do partido, etimologicamente até e a despeito da redundância, é a parcialidade! Neste sentido, é realmente supreendente como o Vermelho vem conseguindo manter uma linha editorial que conduza paralelamente o aspecto informativo e o mais propriamente opinativo, de modo que o leitor tenha condições de identificar e separar os dois vieses muito mais, em meu sentir, que na grande maioria dos jornalões brasileiros, com seus editorialismos enrustidos e mal-disfarçados. Vale dizer, a síntese dialética entre partidarismo e objetividade se traça a partir de honestidade de propósitos e transparência editorial, duas mercadorias bem ausentes de nossas bancas.

Aproveito para deixar aqui o agradecimento aos amigos que, a partir dos meus insistentes apelos nestas páginas e alhures, ajudaram na conquista desta merecida láurea. Independentemente, fica mais uma vez o convite para que conheçam uma maneira inovadora de produzir informação qualificada, mas não partidarizada, ainda que orientada ao leitor progressista. E seja bem-vindo à esquerda bem informada!

terça-feira, 18 de maio de 2004

Muito Bom

Jorge Simas e Paulo César Feital


Você que tem aversão
Ao torrão nacional
Ao fole de Gonzagão
A João Cabral

Ser brasileiro é um dom
É quase espiritual
Você não sabe o que é bom
Ter Jamelão no quintal

Poder ouvir Chico e Tom
Ary, Capiba e Marçal
Chorar tocando "Odeon"
Canhoto no regional

Sacar o som de Oberdan
Com Waldir e Jacob
Com Vadico e Noel
Num "Pedacinho do Céu"

Você que tem aversão
Ao suor do país
Odeia povo e pirão
Clara e Elis

Um Marighela ou Drummond
Dá raiva na turma dos seus
Zumbi tá no Pantheon
Tupã rimando com Deus

É muito bom, muito bom
Fazer um gol da geral
Quase enfartar de emoção
Pedir olé no final

Nogueira manda avisar
Que o "Espelho" partiu
Porque Fernanda chorou
Pela "Central do Brasil"

Eu vou mandar
Corisco pro teu carnaval
Com Lampião pra cobrar
Meu direito autoral

Depois pagar
A festa do teu funeral
Pastinha vai te queimar
No toque do berimbau

Você vai ter que encarnar
Num cantor popular
Bebendo em mesa de bar
Gostando até de "xibiu"

Deixa esse frevo abalar
Batatinha pediu
Deixa o cordel arrastar
Teu coração pro Brasil

segunda-feira, 17 de maio de 2004

Um outro olhar sobre o Tibete, ou o Dalai 171

Júlio Vellozo


A visita de Lula à China tem causado um sem número de apelos para que o presidente do Brasil se pronuncie a favor da independência do Tibete.

Antes de analisar mais detidamente a questão - a grande imprensa por má fé e oportunismo, e uma parte importante das pessoas de bem por boa fé e falta de informação - tendem a identificar na causa defendida pelo Dalai Lama uma reivindicação justa.

No entanto é preciso ir além da superfície e da aparência, e buscar a essência do fenômeno separatista do Tibete. Façamos como Sherlock Holmes nos contos de Alan Poe e respondamos a uma pergunta essencial: a quem serve o crime? Ou para ser exatos, a quem serve dividir o grande país do Oriente, a nação que mais cresce no mundo e que em pouco tempo deve se transformar na segunda potência mundial?


“O mundo estremecerá”

Napoleão Bonaparte dizia: "quando a China despertar o mundo estremecerá". O conquistador não estava falando bobagens. A China é o país com a maior população do mundo. Para se ter uma idéia do tamanho da população do país basta imaginar que um em cada cinco habitantes do planeta é chinês.

O país tem o maior exército permanente da terra, com por volta de 2 milhões e oitocentos mil homens e mulheres. É a terceira potência nuclear do planeta, ficando atrás apenas da Rússia e dos Estados Unidos.

Há poucos meses um dos milhões de membros do Exército Vermelho pode se assegurar de que o nosso planeta é azul: a China se transformou no terceiro país do mundo a mandar uma espaçonave tripulada para o espaço.

A China nos últimos anos cresceu a espantosos 9% ao ano (em média). Graças a isso e a vultosos investimentos sociais conseguiu tirar 200 milhões de pessoas da pobreza (mais do que toda a população brasileira).

Este crescimento todo tem levado os analistas internacionais, de esquerda e de direita, simpáticos ou não à China, a uma conclusão quase unânime: por volta de 2020 o PIB da China ultrapassará o norte-americano, e o país se transformará na maior potência econômica mundial. Os mais otimistas, como os da consultoria Goldman Sachs, prevêem a ultrapassagem para 2041, o que, em matéria de história, é logo ali.

Além disso, os Estados Unidos tem um déficit na balança comercial com a China de impressionantes 120 bilhões de dólares todo ano, o que quer dizer que, no comércio entre os dois países, a China vende muitíssimo mais para os EUA do que o contrário. Assim, os dólares e os empregos estão indo parar do outro lado do mundo.

A China detém a segunda maior reserva cambial do mundo ( bem maior que as dos EUA), são 340 bilhões de verdinhas que estão bem guardadas na terra de Mao Tse.

Não é necessário dizer que essa realidade tem tirado o sono do governo dos Estados Unidos e de outras potências imperialistas. No entanto, dado o peso econômico, geopolítico e militar da China, o país do Dragão não pode ser esmagado do mesmo modo que foi o Iraque. A experiência histórica demonstra que o povo Chinês é muito cioso de sua independência, e não há holocausto que dê conta de exterminar um quinto do planeta.

Assim, a guerra contra China é mais estudada e de longo prazo. Por ser de baixa intensidade, ela se desenvolve centralmente no campo das idéias. Uma das principais armas dos Estados Unidos nesse tipo de batalha, a industria cultural, já está em campo há bastante tempo. Para perceber isso basta ver que a China tem ocupado o lugar da URSS no fornecimento de bandidos e vilões para os filmes da Disney e de outros estúdios importantes. Não é à toa que produções como Mulan e 7 anos no Tibete estiveram entre as mais incentivadas produções do último período.


Dividir para governar

Desde de o tempo em que Dondon jogava no Andaraí o Imperialismo tem se utilizado da tática de dividir o mundo para governar. Recentemente, o processo de explosão das nacionalidades nos Bálcãs, demonstrou esta disposição de incentivar nacionalidades que estão agrupadas em um só país a se rebelarem. O objetivo é enfraquecer os países que representam ameaça aos EUA, e até mesmo forçar intervenções militares, com ou sem a chancela da ONU.Essa tática se repete no caso do Tibete.

A China é um país que se formou há milênios de modo multinacional. Nenhum outro país do mundo se constrói de forma continua há 4 mil anos, baseado em 56 nacionalidades diferentes.

A nacionalidade han, majoritária no país, é apenas uma das que construíram essa história. É claro que em período tão longo, houve processos de lutas e unificações, até que o amalgama que forma a grande massa do mais de bilhão de habitantes da China se formasse.

Se, depois de milênios de convivência essas 56 nacionalidades passaram a viver juntas e a juntas construir o país, isso se deveu a percepção de que, diante das inúmeras ameaças exteriores, somente a unidade dessas nacionalidades poderia construir um país independente.

Ao contrário do que busca fazer parecer o Dalai Lama, a relação entre a nacionalidade han e os tibetanos se construiu historicamente com ênfase na cooperação mútua.

Uma forma de identificar as raízes remotas desta proximidade é ver que a língua falada na China central e no tibete são da mesma família lingüística, não acidentalmente chamada sino-tibetana. No século VII, quando as tribos do planalto tibetano formaram o seu primeiro estado, dois de seus soberanos casaram-se com princesas de origem han, firmando aliança com a dinastia Tang, das planícies centrais da China.

Nos piores períodos de guerras e desagregação, tanto no Tibete quanto na China central, época de lutas intestinas entre dinastias que tomaram conta da região por 400 anos, foi mantida uma relação de grande cooperação entre as duas nacionalidades, ficando famosa a modalidade de comércio que envolvia a troca de chá chinês por cavalos tibetanos.

Quando no século 13 o mongol Kublai Kan reunificou a China e inaugurou a poderosa dinastia Yuan, o Tibete foi incorporado ao Império do Meio como uma de suas províncias. Desde então é parte da China, o maior país multinacional do mundo.


Ao contrário do que dizem: Tibete é da China

Setecentos anos nos separam do século XIII, que marcou a incorporação do Tibete à China. Desta maneira mentem todos os que creditam à revolução comunista de 1949 a incorporação do Tibete à China.

De Kublai Kan para cá, mesmo considerando a atividade desagregadora de traidores nacionais como o Dalai Lama, não houve luta nacional da China em que o povo tibetano não estivesse envolvido na defesa da pátria, em uma demonstração clara de que se consideram chineses. Na história da china, repleta de guerras e batalhas antiimperialistas, o povo tibetano tem lugar de destaque.

Desde a dinastia Yuan os tibetanos participam em condições de igualdade com os outros chineses da vida política do país. Não há direito para pessoas de origem han, que não se estenda aos tibetanos.

Em toda a história da China os olhos cobiçosos de japoneses, russos (na época do czar) e ingleses ambicionaram arrancar pedaços do país. Assim, por várias vezes, o governo central da China viu o seu poder enfraquecido diante da tentativa destes países de - dividindo as nacionalidades que formam a China - dividirem o país. Foi assim que a Rússia ocupou a Mongólia e a dividiu em Mongólia interior e Mongólia Exterior. Foi assim que o Japão incentivou a antiga dinastia Manchu e depois invadiu a Manchúria. Foi assim que a Inglaterra, que com seu imperialismo ávido dominava a Índia, o Butão e o Nepal, invadiu o Tibete em 1888 e 1903.

A invasão do Tibete pelos Ingleses não deu certo, mas as tropas de sua majestade arrancaram concessões e continuaram a incentivar um nacionalismo artificial a serviço de seus interesses. Daí a origem do grupo que reivindica hoje, sem falar em nome do povo, a independência do Tibete.

Em 1949, com a revolução socialista que libertou a China do jugo feudal, houve um redimensionamento nessa batalha. O Partido Comunista tinha o dever de, ao libertar a China do jugo feudal, faze-lo em todo o seu território, aí incluído o Tibete. Os senhores feudais do Tibete, preocupados com a manutenção de seus privilégios e do horrível regime de servidão a que era submetido o povo tibetano, concentraram tropas nas fronteiras para evitar o avanço comunista.

Mesmo assim, o Exército Popular só entrou na capital tibetana em 26 de outubro de 1951, depois da volta do 14º Dalai Lama que havia fugido e com o seu consentimento. O montanhista austríaco e militante nazista Heinrich Harrer, autor de sete anos no Tibete, anti-chinês até a medula reconhece: “ Deve-se dizer que durante essa guerra as tropas chinesas se mostraram disciplinadas e tolerantes e os tibetanos que foram capturados e depois libertados diziam que haviam sido bem tratados”.

O 14º Dalai Lama participou da primeira Assembléia Nacional Popular da
China, que elaborou a Constituição chinesa, sendo inclusive um dos vice-presidentes da Assembléia. E declarou: “os rumores de que o Partido Comunista da China e o governo popular central arruinariam a religião no Tibete foram refutados. O povo tibetano tem gozado de liberdade em suas crenças religiosas”.

No entanto, sob o governo do Dalai Lama, o povo Tibetano vivia sob uma incrível opressão. Dados apresentados por Duarte Pereira no seu A Polemica sobre o Tibete ( que junto com textos de Haroldo Lima e Severino Cabral me auxiliaram a escrever este texto), no tibete dos Dalai Lama o governo e os mosteiros tinham 38,9% e 36,8% das terras respectivamente; aristocratas leigos detinham 24% das terras e os pequenos camponeses ficavam com apenas 0,3%. 90% da população era formada por servos que pagavam algum tipo de tributo (renda, corvéia, renda em produtos) aos monges, estado ou aristocratas. Oito por cento da população era formada por escravos. Servos e escravos (lembrem nesta hora da cara de bonzinho do Dalai!) eram vendidos, trocados, doados, presenteados. Os monges eram carregados nos ombros em liteiras pelos escravos e servos e tinham o direito de mata-los se pagassem pequena indenização.

Assim, quando houve a revolução, é difícil considerar que os servos tibetanos tenham ficado tristes com sua libertação do jugo feudal ou com as terras que antes eram dos monges e aristocratas e que passaram a ser do povo do Tibete.

Como em Kosovo, onde o imperialismo transformou Albaneses em heróis e Sérvios em vilões; tenta-se agora satanizar os chineses e transformar o Dalai Lama e os separatistas tibetanos em verdadeiros santos.

O Tibete é chinês há pelo menos 700 anos. Os que querem dividir a China são os antigos senhores feudais e de escravos, em aliança com os EUA. Muitas pessoas de bem se impressionam com o ar místico e bondoso do Dalai Lama. Mas é preciso perceber que por trás do seu sorriso está a história de uma aristocracia monástica terrível, que quer voltar ao poder para dividir a China e oprimir o povo do Tibete.

sexta-feira, 14 de maio de 2004

A verdadeira herança maldita (original)

Juro que não havia lido. Li agora e estou chorando ao teclar. Leiam, por favor. É do Professor César Benjamim.

Alvíssaras


Nem só de decepções vive a era Lula. Somando-se à área da política externa, onde a atuação do governo da coligação Lula Presidente contrapõe-se nítida e decididamente à frouxeza diplomática de seu antecessor, agora é a cultura que dá mostras de que chegou ao fim a era do “aos amigos tudo”. Depois de muita discussão, embates e polêmicas, prevaleceu o ponto de vista do ministro Gilberto Gil e da qualificada e representativa equipe de assessores que integra o seu estafe sobre a chorumela dos chupins do dinheiro público a antever a iminência do desmame.

Porque embora a ainda vigente Lei Rouanet previsse três diferentes mecanismos de financiamento cultural (que incluiam a constituição de um fundo público e de fundos particulares de investimento), prevaleceu largamente a utilização do mecanismo da renúncia fiscal. Isso significou, na prática da gestão entreguista do Sr. Cardoso e seu assecla amante dos holofotes, Francisco Weffort, o uso de dinheiro público com critérios estritamente privados, a velha e boa cortesia com o chapéu alheio. O Ministério, por esse tempo, transformou-se em uma mera agência certificadora de conformidades, alheia a qualquer responsabilidade pelo interesse social na destinação do dinheiro do povo. Assim, não é de se estranhar que a inserção de conceitos como contrapartida social, interesse nacional etc. não fossem muito bem recebidos pelos benficiários de plantão, que logo se arvoraram em denunciadores de um suposto dirigismo que logo se revelou inexistente (pra quem tiver paciência para abri um arquivo ".pdf", remêto-vos ao artigo que escrevi no ano passado para o Jornal da AMAR).

Nos últimos dias foram anunciadas auspiciosas medidas para a alteração de mecanismos da lei destinados a consagrar o papel gestor do Ministério da Cultura, como legítimo agente encarregado em empenhar-se para que o dinheiro público seja aplicado com os devidos critérios de amplitude, relevância, eficácia, acessibilidade, democratização, nacionalização dos conteúdos, integração etc. E agora, com a divulgação da lista dos agraciados com patrocínio das estatais Petrobrás e BR Distribuidora revela-se que, mesmo antes das esperadas mudanças legislativas, a vontade política aliada à competência por si só já podem fazer muitíssimo para desmontar as lógicas viciadas que grassaram nas barbas das ordenações liberalizantes ditadas de fora.

Um ótimo exemplo a ser mirado por outros setores da administração federal.

quinta-feira, 13 de maio de 2004

Lena Frias


Esta revista está de luto. Acabo de saber da morte da jornalista Lena Frias, na manhã de ontem no Rio de Janeiro. Nestes tempos em que a indigência moral e cultural da grande maioria da imprensa nacional nos desespera e que os valores e sentimentos verdadeiramente brasileiros são dioturnamente rapinados pelos abutres da imbecilização colonialista, é duro e triste demais perder tão cedo uma guerreira de tanto valor.

Nossa trincheira está triste e vazia. Como alerta aos que ficamos com a árdua tarefa de levar em frente o pavilhão, e em homenagem a quem tão brava e brilhantemente cumpriu seu papel, reproduzo um pequeno trecho de sua autoria, citado pela edição de ontem de O Globo On line:

"Meu compromisso é com tudo aquilo que revela e exprime as matrizes da nossa identidade, da nossa verdade e da nossa integridade de brasileiros. Por isso, escrevo com tanta paixão sobre o cantador Azulão da Feira de São Cristóvão, sobre Patativa de Assaré, Ariano Suassuna e Antônio Nóbrega. Sobre Gilberto Freyre e Câmara Cascudo. Sobre superstições e lendas do nosso fabulário. Sobre cordel e grial, batucadas e batuques, músicas e sons. Sobre as raízes pré-ibéricas do boi amazônico, os mistérios caboclos dos caruanas (...) ou qualquer outra expressão ou manifestação desse amplo espectro que me explica e nos explica. Foi a missão que recebi de Deus."

Expulsar ou não: eis a questão


O governo brasileiro errou no episódio da expulsão do “jornalista” do New York Times? Sim e não.

Sim, porque, segundo a sábia lição que me foi ensinada por vovó, talvez valesse mais à pena fazer ouvidos de mercador e ignorar simplesmente aquele aborto do pseudo-jornalismo, do que, reagindo, emprestar-lhe a importância e significação que absolutamente não tem para o povo e o estado brasileiros. Vale dizer, deu-se munição para falarem até a exaustão os oposicionistas detratores, a imprensa subserviente aos interesses estadunidenses e mesmo para o ecoar renitente do fato pelo mundo afora. Questão de mera política de comunicação, de que tanto entende o ora discordante e sempre festejado Duda Mendonça.

E não por uma pletora de razões. Atenho-me às elementares.

A primeira, de ordem eminentemente jurídica, diz respeito ao princípio orientador do direito internacional consubstanciado no ideal de reciprocidade de tratamento. Ora, nesse sentido, despiciendo imaginar o que aconteceria com um profissional brasileiro de comunicação que, de dentro de território estadunidense, resolvesse de maneira caluniosa e alheia aos mais elementares princípios do jornalismo minimamente responsável e democrático, resolvesse enxovalhar a honra da máxima instituição nacional baseada em boatos e disque-disques oriundos das mais suspeitas fontes (aliás, gostaria muito de não acreditar no aventado envolvimento do governador Leonel Brizola no episódio, que macularia indelevelmente uma biografia dedicada à defesa dos interesses soberanos da nação brasileira e arruinaria o respeito e admiração que sempre dediquei a si, malgrado as divergências democráticas). Nem se precisa ir tão longe. Por muitíssimo menos, artistas, intelectuais, cientistas e mesmo autoridades do estado brasileiro (que o diga o Deputado Gabeira, que agora curiosamente soma-se ao coro dos indignados com a “violência” da reação do governo), já foram impedidas de entrar em território ianque por supostas manifestações de sentimento anti-americano.

Outra, porque é evidente o tom conspiratório do artigo. Diferentemente do que afirma Clóvis Rossi na Folha de hoje, as alusões às articulações internacionais para a desestabilização da liderança de Lula no cenário latino-americano não partiram de paranóicos do PT ou o que o valha. Partiram primordialmente do respeitado jornalista Jânio de Freitas, seu colega no mesmo veículo. São tradicionais, aliás as relações pouco transparentes da grande imprensa estadunidense com as atividades de ingerência externa da política da Casa Branca, sobretudo no continente americano, que os primos do norte teimam em enxergar como seu quintal. Ignorá-las seria ingênuo, senão mal-intencionado. Não esqueçamos que a política externa do governo Lula tem incomodado particularmente os interesses conservadores e servilistas, tendo há pouco merecido reprovações nitidamente despeitadas por parte do embaixador maior da subserviência nacional, o senhor Fernando Henrique Cardoso.

Por tudo, então, entendo perfeitamente caracterizada a legitimidade da pretensão do governo brasileiro, que há de ter os aspectos de legalidade, caso formalmente questionados, devidamente examinados pelas instâncias competentes. Não me convence a gritaria indignada da imprensa (só a Folha de hoje dedica oito páginas inteiras ao episódio) e principalmente de alguns setores políticos compostos por muitos que docil ou cooptadamente se calaram quando deveras nenhuma liberdade de informação o país desfrutava.

Cor Preta

Jota Maranhão e Paulo César Feital


Meu filho, foi Deus quem te deu cor preta
Na dúvida, amor, vem me perguntar, não sofre não
É São Benedito o estafeta do Senhor
É negra a madrinha dessa nação

Meu filho, eu vou te levar na areia
A mesma que viu bisavô chegar na escravidão
Mistura-se África em cada veia do Brasil
Mulato é o povo dessa nação

Meu filho se orgulhe do teu cabelo e cor
Não tenha vergonha de tê-lo, é lindo, amor
Foi feito pra protegê-lo do calor
Por tê-lo agradeça a teu pai Xangô

Meu filho, se alguém te humilhar na escola
Levante a cabeça como Mandela na prisão
O sangue do Congo e de Angola, meu amor
Fizeram a história dessa nação

Meu filho, não tenha vergonha do teu pai
Dos lábios que beijam tua mãe quando ele sai
O negro que me fez amor como ele faz
É o mesmo que me engravidou de paz

Meu filho não é branca nem negra a escravidão
O homem é escravo da própria dor
Se torne, meu filho, um Zumbi de compaixão
Grilhão já não faz distinção de cor

Meu filho, escute, tua mãe é negra
Que orgulho que tenho por ter em mim a escuridão
A mesma do ventre que te hospedou, meu negro amor
Do negro nasceu a iluminação

Nem uma lágrima,
Nem uma lágrima...

terça-feira, 11 de maio de 2004

A verdadeira herança maldita

ou Da morte da política



Das primeiras discussões sobre o novo “valor” do salário-mínimo até a recentemente anunciada proposta de desvinculação da atualização dos benefícios previdenciários ficou-me uma triste sensação: a política está morta. Em seu lugar, reina impávido o domínio da competência contábil. A própria oposição, ao apresentar hoje a proposta alternativa, não encaminhará argumentos políticos atinentes ao desenvolvimento ou à coerência dos líderes petistas. Invocará, tão somente, “argumentos técnicos”, como estampam os principais jornais.

Se para saber o valor do salário o que contam são apenas e tão somente os nunca assaz esclarecidos cálculos do Ministério da Fazenda, teria preferido um contador ao torneiro mecânico de São Bernardo para a outrora chamada “suprema magistratura da nação”.

Outrora chamada, porque mais hoje não é “magistratura”, pelo menos não como definida pelo bom e saudoso Antônio Houaiss a figura do “magistrado”: “indivíduo investido de importante autoridade, que se exerce nos limites de uma jurisdição, com poder para julgar e mandar, ou que participa da administração política ou que integra o governo político de um Estado”. Porque me recuso a identificar má-fé a tal ponto no homem que veio de Garanhuns num pau-de-arara para tentar a sobrevivência no sul-maravilha. Incompetência também não é, pois Lula cansou-se de mostrar sua sagacidade política em todos esses anos de atuação marcante e decisiva na cena nacional. Então, só pode ser falta de poder para julgar e mandar.

“Suprema” também deixou de ser faz tempo. Lula manda mais, ou o Palocci e o Meirelles? Mas ele é o dono da caneta que poderia botar estes últimos para correr, ora direis. Mas sabemos que ambos ali estão a mando de outrém, talvez do “Coiso”, como diria o bom Nataniel Jebão.

E a “nação” também não tenho certeza de a quantas anda.

Isso nos conduz à triste conclusão de que a verdadeira herança maldita deixada pela era tucana não se resume à exponenciação da dívida pública, ao aniquilamento do parque industrial nacional, à completa estagnação econômica e à dilapidação do patrimônio estatal. O legado fatídico é a perpetuação de uma lógica financista auto-referente e auto-suficiente que, mais do que desprezar, faz prescindir-se da política como arte dos cidadão de uma pólis disputarem os rumos da coletividade e negociarem a tomada de decisões. A lógica contábil dos superávits (que obviamente é não mais que a máscara ideológica para o verdadeiro substrato consistente na intangenciabilidade da obrigação de honra aos compromissos formais com os credores) governa os destinos do estado brasileiro como um andróide insensível pré-programado para exercer a sua sanha exterminadora, rebelado e incontrolável .

O imobilismo de um governo que incorpora setores altamente representativos da esquerda brasileira, sua quase patética incapacidade de desmontar as armadilhas mais simplórias do modelo financista, mostram-nos o quanto precisamos urgentemente ressuscitar a política como forma de controle do estado pelos cidadãos. A Argentina está descobrindo a duras penas, depois da implosão do sistema, mas é altamente instrutivo perceber como, a despeito de todos os sinais inequívocos, foi preciso que o carro desgovernado caísse no precipício, sem que fosse possível, de dentro do sistema, uma correção de rota.

O grande desafio que se lança, portanto, não só aos setores progressistas, mas a todos os que minimamente pretendem a continuidade do Brasil enquanto nação, é descobrir como reintroduzir-se mecanismos de controle político sobre a lógica insana que tudo submete, em última instância, ao interesse da voracidade do capital financeiro improdutivo. Ou o sistema-leviatã, hoje autômato e escravizado, nos engolirá a todos e, finalmente, a si próprio.

segunda-feira, 10 de maio de 2004

Festa no céu 2004


A malandragem do céu
Resolveu fazer uma festa
E aí convidaram o Poyares
Pra ir tocar sua flauta

Queriam um bacharel
pra ter samba e não só seresta
Chamaram o Paulinho Soares
pra completar essa malta

Não adianta escarcéu
Chorar é o que agora nos resta
E sambar – eis nossos altares
aos que farão tanta falta

Poyares e Paulinho

Poyares

Nem uma mísera nota. A não ser, evidentemente, na onipresente Agenda do Samba & Choro. Não sei o que dói mais...

Carlos Poyares nos deixou na semana passada. O maior chorão que eu conheci. Um de seus números clássicos: nas rodas de seresta, quando sua função “adjetiva” era solar algumas introduções e as primeiras partes “no retorno”, ficava batendo papo animadamente enquanto o cantor se esgüelava; na hora de entrar, levantava da mesa do bate-papo, já com a flauta em punho, sem perguntar tom nem nada. Exemplo de seu ouvido treinadíssimo e da malandragem adquirida em tantos e tantos anos de butiquins e quintais. Era um flautista exímio, um virtuose de impressionar músicos europeus das mais importantes orquestras do mundo. Mas sua música, assim como sua postura, transpareciam esse espírito popular no melhor sentido.

E é justamente por isso que o considero o maior chorão que eu conheci. Ninguém como ele encarnava mais esse espírito vagabundo, malandro e algo amador (no bom sentido) que hoje parece tão distante dos círculos de choro, povoados pelos bem nascidos jovens formados nos conservatórios e faculdades de música. Esse espírito que tanto dominou os ambientes onde o choro particularmente se desenvolveu na passagem do século XIX para o XX.

Nosso maior momento de convivência foi numa certa noitada de muito papo e muita birita (dois terrenos em que ele jogava como craque), onde ele nos brindou com suas histórias divertidíssimas com os maiores nomes da música popular brasileira (não é todo mundo que sabe que ele ia para o Rio, na década de 50, e passava dias e dias na casa de Pixinguinha, bebendo – muito – e tocando – imaginem o quanto...). Perguntado sobre Altamiro, ele não titubeou: “em termos de habilidade e musicalidade, ele é um monstro; mas lhe falta a alma do butiquim , que é a alma do choro. E essa eu tenho de sobra!”

Ficam para os que o conheceram, as boas lembranças, as histórias, seus inúmeros discos, a fita com ele tocando a flautinha de lata. Para mim, particularmente, a enorme honra de ter sido por ele acompanhado em tantas andanças vagabundas pelas noitadass de muita música e cachaça.


Paulinho

E foi-se também o nosso bom Paulinho Soares. De repente, como os bons malandros merecem. Parece mesmo que às vezes alguém lá de cima resolve botar o serviço em dia. E dá-lhe rapa! Em algumas semanas, foram Joel Teixeira, o Poyares e o Paulinho.

Este eu conheci pouco e muito. Pouco porque infelizmente foram menos freqüentes que eu gostaria as oportunidades de sentarmos juntos pra biritar e papear, artes a mim tão caras em que ele se mostrava um mestre. Muito, porque era uma das figuras que mais eu encontrava nos ambientes e ocasiões propícios a boa música e boa conversa. Um craque da carioquice, gozador, galhofeiro, conversador e rápido no gatilho como poucos.

E que bom compositor. Entre seus muitos sambas, gravados e inéditos, uma pérola gravada por Beth Carvalho que resumia muito do espírito malandro e gozador do sambista em geral e dele em particular: “morreu, o nosso amor morreu/ mas, cá pra nós, antes ele do que eu”.

Um beijo, malandro, onde você estiver. Obrigado pelo carinho de sempre. A gente se esbarra.

terça-feira, 4 de maio de 2004

67 anos sem Noel

Poucas palavras. Uma canção, lindamente gravada pelo Caboclinho Querido, Sílvio Caldas:


Violões em Funeral
(Sílvio Caldas / Sebastião Fonseca)


Vila Isabel veste luto
Pelas esquinas escuto
Violões em funeral
Choram bordões, choram primas
Soluçam todas as rimas
numa saudade imortal

Entre as nuvens escondida
como de crepe vestida
a lua fica a chorar
E o pranto que a lua chora
goteja, goteja agora
dos oitis do "Boulevard"

Adeus cigarra vadia
que mesmo em tua agonia
cantavas para morrer!
Tu viverás na saudade
da tua grande cidade
que não te há de esquecer

Adeus poeta do povo
que ressuscitas de novo
quando na morte descambas!
Sinhô de pele mais clara
no qual Sinhô encarnara
a alma sonora dos sambas

Toda a cidade soluça
Comovida se debruça
Sobre o caixão de Noel ...
Matriz, Estácio , SAlgueiro
Todo o Rio de Janeiro
Consola Vila Isabel

segunda-feira, 3 de maio de 2004

Mais Caymmi


E sempre.

Não posso deixar de registrar aqui o liame para a belíssima entrevista concedida pelo mestre à sua neta Stella (que também assina a bela biografia do avô, pela editora 34: Dorival Caymmi - O mar e o tempo), na edição virtual do Jornal do Brasil do último dia 29. O velho Dorival, Obá de Xangô, do alto de suas nove décadas, dá generosas e iluminadas lições de sabedoria e tranqüilidade, enchendo de alegria os corações daqueles que temo-lo como essa presença monumental no cenário brasileiro.

Atentem para a segunda ("O mundo visto de Pequeri")e a terceira ("Receita de vida") partes que estão liadas no pé da página. De quebra, uma belíssima foto do velho cantador da Bahia.