terça-feira, 27 de dezembro de 2005

Outra vez

É curiosa a época de virada de ano. Este efeito psicológico tão compreensível quanto necessário, provocado pela demarcação de etapas na perdição do tempo indistinto, tradicionalmente remete a uma avaliação/projeção comparativa de metas, ou pelo menos, de modos. O exercício é quase natural, mas nem por isso menos aborrecido e cansativo. E o enfado acaba sempre desaguando na inafastável indagação: "afinal, pra quê tudo isso?".

Já percebestes, a essa altura, que não estou para literaturas. Não é fácil pra gente, em geral, porque parece que pesa sempre sobre os nossos pescoços a espada drummondiana: "nem me reveles teus sentimentos..." As águas do espírito agitam-se tão desordenadas, e os remansos se cruzam, se estranham e se crispam sob o céu de incertos auspícios. E assim, por impossíveis de honestamente compartilhar, esses soçobramentos não podem escapar do inferno íntimo nem ter um mínimo sentido, ainda que fraco e desprezível. Talvez um dia, desobrigados dos pudores de letras, nos seja franqueado esse infinito oceano de ventos incertos no qual atiraremos nossas miseráveis e desesperadas súplicas engarrafadas, para que cumpram seu destino e venham pousar sossegadas n’alguma praia desavisada. Sem sentimentos, pois, por ora, que não interessam mesmo a ninguém.

Porque estamos nós bem aboletadinhos nas nossas certezas, singrando a vida pela margem e de repente... zaz! Um canto qualquer de sereia nos puxa pro meio do rio, entre correntezas, galhos e tempestades. E o que é pior, com a sensação de que a vida é mesmo isso, o vento na cara, os solavancos, o barco adernando. Até a hora em que, afogamento iminente, somos forçados ao regresso. E as margens nos sorriem com satisfeita provocação, como mulher de malandro que se compraz com a certeza de seu arrego. O retorno é sempre o mais difícil dos caminhos.

Porque, afinal, há que se viver a vida, senhores. Esse delicioso produto de acasos absurdamente improváveis, desde aquele, Supremo, que propiciou ao primeiro aglomerado protéico a capacidade de engendrar a sua própria replicação.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2005

Natal

Rubem Braga


É noite de Natal, e estou sozinho na casa de um amigo, que foi para a fazenda. Mais tarde talvez saia. Mas vou me deixando ficar sozinho, numa confortável melancolia, na casa quieta e cômoda. Dou alguns telefonemas, abraço à distância alguns amigos. Essas poucas vozes, de homem e de mulher, que respondem alegremente à minha, são quentes, e me fazem bem, "Feliz Natal, muitas felicidades!"; dizemos essas coisas simples com afetuoso calor; dizemos e creio que sentimos; e como sentimos, merecemos. Feliz Natal!

Desembrulho a garrafa que um amigo teve a lembrança de me mandar ontem; vou lá dentro, abro a geladeira, preparo um uísque, e venho me sentar no jardinzinho, perto das folhagens úmidas. Sinto-me bem, oferecendo-me este copo, na casa silenciosa, nessa noite de rua quieta. Este jardinzinho tem o encanto sábio e agreste da dona da casa que o formou. É um pequeno espaço folhudo e florido de cores, que parece respirar; tem a vida misteriosa das moitas perdidas, um gosto de roça, uma alegria meio caipira de verdes, vermelhos e amarelos.

Penso, sem saudade nem mágoa, no ano que passou. Há nele uma sombra dolorosa; evoco-a neste momento, sozinho, com uma espécie de religiosa emoção. Há também, no fundo da paisagem escura e desarrumada desse ano, uma clara mancha de sol. Bebo silenciosamente a essas imagens da morte e da vida; dentro de mim elas são irmãs. Penso em outras pessoas. Sinto uma grande ternura pelas pessoas; sou um homem sozinho, numa noite quieta, junto de folhagens úmidas, bebendo gravemente em honra de muitas pessoas.

De repente um carro começa a buzinar com força, junto ao meu portão. Talvez seja algum amigo que venha me desejar Feliz Natal ou convidar para ir a algum lugar. Hesito ainda um instante; ninguém pode pensar que eu esteja em casa a esta hora. Mas a buzina é insistente. Levanto-me com certo alvoroço, olho a rua e sorrio: é um caminhão de lixo. Está tão carregado, que nem se pode fechar; tão carregado como se trouxesse todo o lixo do ano que passou, todo o lixo da vida que se vai vivendo. Bonito presente de Natal!0 motorista buzina ainda algumas vezes, olhando uma janela do sobrado vizinho. Lembro-me de ter visto naquela janela uma jovem mulata de vermelho, sempre a cantarolar e espiar a rua. É certamente a ela quem procura o motorista retardatário; mas a janela permanece fechada e escura. Ele movimenta com violência seu grande carro negro e sujo; parte com ruído, estremecendo a rua.

Volto à minha paz, e ao meu uísque. Mas a frustração do lixeiro e a minha também quebraram o encanto solitário da noite de Natal. Fecho a casa e saio devagar; vou humildemente filar uma fatia de presunto e de alegria na casa de uma família amiga.

(in A Borboleta Amarela, Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1963 - pág. 124)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2005

Soneto de confusão

Se apenas fico são nesta loucura
E só repousa o espírito sem paz
Se na doença é que encontro a minha cura
E o que me faz sorrir são os próprios ais

À essa angústia que me move e tortura
Entregar-me por completo posso hoje
Pois é o que cada vez mais se procura
O mesmo de que mais sempre se foge

Se eu bebo dia e noite e estranhamente
Acordo bem disposto pra chuchu
A rima de Noël me vem à mente

Se o banzo que hoje sinto é assim tão blue
- e essa mania de inglês me põe doente!
I’m getting sentimental over you

[para Dani "Sorriso Maracanã"]

quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

Casa Nova

Pois é, meus cinco amigos. Caminhando para o segundo aniversário, estamos de casa nova. Mais facilidades de edição, mais estabilidade, melhores recursos. O antigo provedor não estava dando conta do recado há meses. Aproveitamos pra dar uma reciclada no visual, com o objetivo de que a leitura ficasse menos desagradável aos olhos e a navegação mais simples para os milhões de aficcionados da página, depois de meses de complicados testes de acuidade visual média da população ocidental.

Bem, chegamos por ora neste formato, mas nada é definitivo. Opiniões são bem-vindas, mesmo que não sejam acatadas; porque afinal, como diria o bom Fernando Toledo, democracia em geral atrapalha.

Vamos aos poucos passando todos os antigos arquivos pra cá, como em qualquer mudança. De qualquer forma, na coluna ao lado fica um liame permanente para o antigo Só dói - obviamente para os nostálgicos -, enquanto de lá não formos despejados.

Resumo da ópera: Só dói quando eu Rio 2006 - muito mais facilidade pra continuar ninguém lendo!

quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

Não deixo a vida, mas entro pra História

Fim de ano chegando e eis que eu ganho um presente dos mais belos, dos mais imerecidos e, sem dúvida, dos menos esperados. Não é que nessa altura da vida virei personagem de livro??? Não só eu, mas o Marcão, o Augusto, a Dani, o Flavinho, o Zé Colméia, o Vidal e tantos amigos que ao longo da minha modestamente respeitável carreira butiquinística foram dividindo as mesas, as porções, histórias e emoções que a gente vai vivendo nesse templo de vida e brasilidade que a gente tanto gosta de estar: o boteco!

Pois o meu irmão-cumpadre Edu Goldenberg, o sacerdote pagão do meu impagável casamento, resolveu com o talento e maestria que Deus lhe deu, reunir as histórias muitas de vida e de bar, várias das quais eu pude compartilhar, num maravilhoso, emocionado e engraçadíssimo livro: Meu lar é o botequim: histórias, palpites e feitiço sem fim, saído há dias do forno da Casa Jorge Editora, com prefácio de mestre Aldir Blanc, capa do genial Lan, apresentação do grande Fusto Wolff e orelha escrita, modestamente, por este que vos fala.

O lançamento no Rio de Janeiro deu-se na última segunda-feira, 12 de dezembro. Uma festa pra valer! Senti-me no Sítio do Pica-pau Amarelo, quando a Emília abria os livros e os personagens todos começavam a pular lá de dentro, pra desespero e espanto da Tia Nastácia!

Conto EFETIVAMENTE com a presença de vocês todos! O lançamento em SÃO PAULO será lá no Ó do Borogodó, na Rua Horácio Lane, 21 (Pinheiros, travessinha da Cardeal Arcoverde, atrás do Cemitério São Paulo), neste próximo SÁBADO, 17/12, a partir de 13h30. Não tem desculpa portanto: cerveja gelada, feijoada de primeira e o samba comendo pra valer, a partir de 15h30, com a última roda do ano dos Inimigos do Batente.

E de quebra vocês podem comprar o que eu tenho certeza que será um belíssimo presente de Natal pros amigos!

Até sábado!

quarta-feira, 7 de dezembro de 2005

Deus e o diabo na terra da infidelidade


O presidente Luis Inácio Lula da Silva tem protagonizado mais uma pantomima entre as tantas de seu duvidoso gosto. Não sei se é só porque eu ando meio azedo, mas dessa vez não é que tem me incomodado um tanto mais ser tratado como um debilóide completo? É certo que eu detesto fazer coro com o boboca do Jabor, mas se o autoritarismo de Fernando Henrique nos aviltava pela arrogância, o de Lula prima mesmo pela subestimação da nossa inteligência e capacidade de indignação.

O enredo mal rabiscado conta mais ou menos a seguinte história: tendo em vista que se aproximam as eleições e eu tenho que contar com o apoio do capital financeiro que é dono do país, mas não posso desprezar a massa de votos que, somados um a um, podem despejar-me, eu e minha digníssima, da aprazível granja onde nos encontramos instalados, tenho que acender uma vela pra Deus e outra pro Diabo. Aí, imagino que pra não dar muito na cara, eu posso mandar uma incessar a patuléia, criticando o arrocho e pedindo investimentos públicos, e outro garantir o amém dos patrões, bancando a "estabilidade". Aí eu vou pra televisão dizer que a discussão é normal e saudável num governo democrático e plural e fica todo mundo contente, achando que, apesar da linha dura palocciana, há uma voz a clamar pelos pobres. Ou, olhando ao contrário (que poderíamos chamar linha "jaboriana"), que apesar das insanidades dos atrasados ainda não-convertidos, há a voz da razão e da competência para garantir que nada mudará. Contando, claro, com a claque de plantão, esse triste papel que parece a nós reservado, pra dizer que o governo é politicamente tenso e por isso não podemos abandonar nosso papel de apoio responsável e reinvindicativo. Tudo certo, se não tivessem esquecido de avisar os russos, como diria o Mané. Ou se a canastrice do protagonista não passasse despercebida pela minha filha de cinco anos. Posando de conhecedor-mor e único dos bastidores do jogo político, julgando-nos a todos uns completos imbecis incapazes de identificar a falta de mínima verossimilhança na farsa que arma, o presidente segue pensando que a gente pensa que ele pensa que nos embroma com sua nauseabunda falta de talento.

O que mais me bestifica, entretanto, é que os comunistas, disparadamente os que reputo politicamente mais capazes de construir uma crítica decente a esse mau teatro, pela retidão de propósitos, pelo cabedal analítico, pelo compromisso histórico com as lutas populares, estão há três anos repetindo, como um disco quebrado, a cantilena de que Lula representa a opção das forças progressistas frente aos reacionários que se empenham na reconquista do poder perdido. Só não me mostraram, ainda (e olhe que eu estou pedindo há um ano, pelo menos), exatamente: 1) onde está o progresso da gestão petista frente ao posto maior da nação (eu disse progresso, e não falta de retrocesso); 2) por que é preferível a má opção a nenhuma opção, ou melhor, à opção de retirar-se da linha de frente por ora e começar uma articulação de forças efetivamente progressistas, ainda que esta preparação seja lenta e só venha a ensejar uma efetiva intervenção que signifique luta pelo poder político daqui a muitos anos; 3) que raio de poder é esse, que exercido indistintamente por uns ou por outros, não tem o condão de minimamente influenciar nas grandes rotas de condução das feições econômicas do país, que em marxismo elementar (às vezes surpreendentemente esquecido) acabam por determinar os traços de toda a sociedade brasileira; 4) por que diabos o presidente que até agora não conseguiu imprimir rumos progressistas à sua gestão seria o líder indicado para continuar como depositário dos nossas anseios de mudança?

O estarrecedor é que se fica batendo na tecla da defesa da opção Lula com a mesma veemência que se clama (como no editorial da semana passada do Portal Vermelho) para que o presidente promova a guinada almejada para o a opção desenvolvimentista, para que assuma de uma vez por todas as rédeas da nação, que honre os compromissos (com os quais se elegeu) de romper com o rigorismo da lógica financista que imperou no período precedente. Como se as opções econômicas até agora assumidas não marcassem indelevelmente o caráter desse governo, novamente em bom marxismo. Porque das duas, uma: ou o presidente não tem poder, não tem cacife político para promover a tal guinada desenvolvimentista, e aí me parece indiferente que ele permaneça lá ou não; ou efetivamente não está comprometido com essa vertente, e aí me parece que deveamos mesmo defenestrá-lo. Não há saída para a aporia. Não há justificativa que se sustente logicamente para que a Lula seja novamente confiada a tarefa de enfrentar o desafio maior da sociedade brasileira, qual seja reintroduzir a política como forma de condução dos negócios públicos, contra o automatismo auto-referente da lógica financista que continua a dar as cartas. As justificativas apresentadas estão entre as histórias da Carochinha e uma espécie de crença religiosa no poder salvífico do grande filho do proletariado. Vamos e venhamos.

Estamos nós como aquele sujeito que, aconselhado pelos amigos a largar a mulher, de todos sabidamente infiel, briga com eles jurando a honra da companheira, exaltando-lhe a origem de ótima família, ponderando que, ademais, não poderia arranjar casamento que conviesse melhor à sua estratégia de bem criar os rebentos. Que tudo não passa de intriga da oposição, capitaneada por sua ex-namorada - essa sim, uma desclassificada que o traía desbragadamemente - , que só quer ver sua separação e ruína, como no samba. Chegando em casa, louça na pia de duas semanas, a grana da feira torrada no butiquim, filho chorando de fome e ela "na sala rolando com um vadio", como diria o poeta. E qual é, então, a tática do cidadão? Suplica delicadamente para que o sujeito saia do seu sofá; vai, resignado, fazer a janta pra barriga vazia da molecada; e com carinho pede pra ela endireitar, pra largar dessa vadiagem, que no fundo ela é a mulher da sua vida, só precisa se livrar das más influências.

É isso que me pedis, camaradas?