quarta-feira, 7 de dezembro de 2005
Deus e o diabo na terra da infidelidade
O presidente Luis Inácio Lula da Silva tem protagonizado mais uma pantomima entre as tantas de seu duvidoso gosto. Não sei se é só porque eu ando meio azedo, mas dessa vez não é que tem me incomodado um tanto mais ser tratado como um debilóide completo? É certo que eu detesto fazer coro com o boboca do Jabor, mas se o autoritarismo de Fernando Henrique nos aviltava pela arrogância, o de Lula prima mesmo pela subestimação da nossa inteligência e capacidade de indignação.
O enredo mal rabiscado conta mais ou menos a seguinte história: tendo em vista que se aproximam as eleições e eu tenho que contar com o apoio do capital financeiro que é dono do país, mas não posso desprezar a massa de votos que, somados um a um, podem despejar-me, eu e minha digníssima, da aprazível granja onde nos encontramos instalados, tenho que acender uma vela pra Deus e outra pro Diabo. Aí, imagino que pra não dar muito na cara, eu posso mandar uma incessar a patuléia, criticando o arrocho e pedindo investimentos públicos, e outro garantir o amém dos patrões, bancando a "estabilidade". Aí eu vou pra televisão dizer que a discussão é normal e saudável num governo democrático e plural e fica todo mundo contente, achando que, apesar da linha dura palocciana, há uma voz a clamar pelos pobres. Ou, olhando ao contrário (que poderíamos chamar linha "jaboriana"), que apesar das insanidades dos atrasados ainda não-convertidos, há a voz da razão e da competência para garantir que nada mudará. Contando, claro, com a claque de plantão, esse triste papel que parece a nós reservado, pra dizer que o governo é politicamente tenso e por isso não podemos abandonar nosso papel de apoio responsável e reinvindicativo. Tudo certo, se não tivessem esquecido de avisar os russos, como diria o Mané. Ou se a canastrice do protagonista não passasse despercebida pela minha filha de cinco anos. Posando de conhecedor-mor e único dos bastidores do jogo político, julgando-nos a todos uns completos imbecis incapazes de identificar a falta de mínima verossimilhança na farsa que arma, o presidente segue pensando que a gente pensa que ele pensa que nos embroma com sua nauseabunda falta de talento.
O que mais me bestifica, entretanto, é que os comunistas, disparadamente os que reputo politicamente mais capazes de construir uma crítica decente a esse mau teatro, pela retidão de propósitos, pelo cabedal analítico, pelo compromisso histórico com as lutas populares, estão há três anos repetindo, como um disco quebrado, a cantilena de que Lula representa a opção das forças progressistas frente aos reacionários que se empenham na reconquista do poder perdido. Só não me mostraram, ainda (e olhe que eu estou pedindo há um ano, pelo menos), exatamente: 1) onde está o progresso da gestão petista frente ao posto maior da nação (eu disse progresso, e não falta de retrocesso); 2) por que é preferível a má opção a nenhuma opção, ou melhor, à opção de retirar-se da linha de frente por ora e começar uma articulação de forças efetivamente progressistas, ainda que esta preparação seja lenta e só venha a ensejar uma efetiva intervenção que signifique luta pelo poder político daqui a muitos anos; 3) que raio de poder é esse, que exercido indistintamente por uns ou por outros, não tem o condão de minimamente influenciar nas grandes rotas de condução das feições econômicas do país, que em marxismo elementar (às vezes surpreendentemente esquecido) acabam por determinar os traços de toda a sociedade brasileira; 4) por que diabos o presidente que até agora não conseguiu imprimir rumos progressistas à sua gestão seria o líder indicado para continuar como depositário dos nossas anseios de mudança?
O estarrecedor é que se fica batendo na tecla da defesa da opção Lula com a mesma veemência que se clama (como no editorial da semana passada do Portal Vermelho) para que o presidente promova a guinada almejada para o a opção desenvolvimentista, para que assuma de uma vez por todas as rédeas da nação, que honre os compromissos (com os quais se elegeu) de romper com o rigorismo da lógica financista que imperou no período precedente. Como se as opções econômicas até agora assumidas não marcassem indelevelmente o caráter desse governo, novamente em bom marxismo. Porque das duas, uma: ou o presidente não tem poder, não tem cacife político para promover a tal guinada desenvolvimentista, e aí me parece indiferente que ele permaneça lá ou não; ou efetivamente não está comprometido com essa vertente, e aí me parece que deveamos mesmo defenestrá-lo. Não há saída para a aporia. Não há justificativa que se sustente logicamente para que a Lula seja novamente confiada a tarefa de enfrentar o desafio maior da sociedade brasileira, qual seja reintroduzir a política como forma de condução dos negócios públicos, contra o automatismo auto-referente da lógica financista que continua a dar as cartas. As justificativas apresentadas estão entre as histórias da Carochinha e uma espécie de crença religiosa no poder salvífico do grande filho do proletariado. Vamos e venhamos.
Estamos nós como aquele sujeito que, aconselhado pelos amigos a largar a mulher, de todos sabidamente infiel, briga com eles jurando a honra da companheira, exaltando-lhe a origem de ótima família, ponderando que, ademais, não poderia arranjar casamento que conviesse melhor à sua estratégia de bem criar os rebentos. Que tudo não passa de intriga da oposição, capitaneada por sua ex-namorada - essa sim, uma desclassificada que o traía desbragadamemente - , que só quer ver sua separação e ruína, como no samba. Chegando em casa, louça na pia de duas semanas, a grana da feira torrada no butiquim, filho chorando de fome e ela "na sala rolando com um vadio", como diria o poeta. E qual é, então, a tática do cidadão? Suplica delicadamente para que o sujeito saia do seu sofá; vai, resignado, fazer a janta pra barriga vazia da molecada; e com carinho pede pra ela endireitar, pra largar dessa vadiagem, que no fundo ela é a mulher da sua vida, só precisa se livrar das más influências.
É isso que me pedis, camaradas?
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