A
frase que está no título deste texto não é de um pastor
evangélico, da presidente da liga das senhoras, nem do CONSEG (pra
quem não é de São Paulo, nem se ocupe em saber o que é...) ou da
associação de moradores do meu bairro. É do gênio da raça, do
grande entendedor do Brasil; do compositor, poeta e escritor Nei
Lopes. Ele mesmo. E se explica: mestre Nei se refere à grande
transformação que fez do Carnaval de rua, que era o reino da
espontaneidade, da gratuidade, do encontro, um privilegiado espaço
de reprodução da lógica mesma do dinheiro, do negócio, do poder.
Nada diferente do que ocorreu com o carnaval das escolas de samba,
com o futebol, com os butiquins etc. Etc. Etc. Mas nada também que
tenha determinado até agora que não houvesse mais os butiquins
libertadores dos encontros improváveis, o futebol sonhador das
peladas a pé descalço, os instantes de magia e transfiguração
pelas avenidas tantas pelo país afora. E ouso sonhar que não
determinará também a morte do Carnaval em que a gente acredita. E
espera a cada ano. Ao qual a gente se entrega.
E
esse Carnaval - como já bem disse meu para sempre fraterno-irmão Luiz Antonio Simas – é da espontaneidade e da subversão. Ou da
subversão pela espontaneidade. Porque o que se subverte, na verdade,
é o dia a dia das preordenações , da previsibilidade, dos
formalismos, onde a vida é mediada por soluções antecipadamente
delineadas, senão em seus conteúdos, ao menos em suas formas. Com
os resultados que a gente vê... A hierarquia, o poder de ditar as
regras, os lugares predefinidos são a sustentação e a expressão
mais visível dessa ordem a ser subvertida. A lógica da eficiência,
o cálculo de meios e finalidades e a técnica, sua filha dileta,
são seu modus operandi por excelência. Por isso essa ordem
não resiste e se quebra pelo gesto sem finalidade, pela brincadeira
que se esgota nela mesma, pelo abandono ao “seja o que Deus
quiser”; pelo descaminho, pela total imprevisão, pelas formas
nunca acabadas que se reinventam a todos os instantes, pelas soluções
inusitadas, pelas estéticas aberrantes, pelas inversões dos papéis.
Por
isso o “bloco do eu-sozinho” é a celula mater desses
dias, encarnação daquele que sai de casa sabendo “apenas que vai
para a rua imolar-se nos blocos e cordões, receber a extrema-unção
com água benta de teor alcoólico e morrer até a Quarta-Feira de
Cinzas”, sem itinerário, sem compromisso, sem programação. E o
bloco de sujo é sua perfeita correspondente coletiva, sendo nada
mais que um ajuntamento de “eu-sozinhos” que se encontram no
acaso, no átimo, na fresta, no diáfano. Esses são filhos
legítimos e diretos do velho entrudo. Tudo o que demanda algum grau
de planejamento, organização, ou mesmo intencionalidades outras, se
desvia desse sentido originalíssimo.
Quem
vai para o carnaval PARA beber, ou PARA paquerar, não é folião.
Não pertencem à esfera sagrada do Carnaval os “blocos” que saem
para defender ideias, bandeiras, ou reivindicar isso e aquilo. Mesmo
os folguedos todos que povoaram os carnavais Brasil afora, ouso dizer
– malgrado o respeito quase devocional que já nutri pelas escolas
de samba e ainda nutro, por exemplo, pelo maracatu rural de
Pernambuco - já são corruptelas desse espírito fundamental.
Populares, indubitavelmente, subversores eles mesmos, claro, pela
encarnação da ludicidade, da teatralidade, da
desconstrução-reinvenção da vida. Mas, via de regra, apenas
identificados a posteriori com o Carnaval, por aproveitarem o
relaxamento da vigilância e da repressão durante esses dias,
expressões que foram e são de negros, índios, pobres,
marginalizados, despossuídos, os excluídos todos da festa oficial.
E
assim também, obviamente, nossos atuais blocos de rua serão também
simulacros apartados dessa entrega “exusíaca” total (“quem tem
Exu não precisa de Dionísio”). Mas são as nossas tentativas
possíveis, humildes, desesperadas, de reconstrução dessas
possibilidades, dessas não-formas de rebrincarmos o nosso Carnaval,
a despeito, contra ou até “aproveitando” a onda do oba-oba
geral. Por isso o carnaval de que Mestre Nei tem medo – e eu
pavor! - vai lá em cima minúscula. Por isso, meus amigos,
aproxima-se o dia mais importante, mais esperado do ano, que para mim
já foi o sábado de abertura do Carnaval, hoje é o domingo que o
antecede. Mudou o dia, mudou o lugar, mudaram os jeitos, mas não o
significado. O tanto que posso morrer, morrerei; nem mais, nem
menos. Essa é a minha jura de folião.
E
porque não posso por decreto impor a tolerância àqueles que
continuam a apostar nos moralismos como fórmulas de salvar os
outros; porque não posso apartar do poder todos os que dele abusam
em seus exclusivos interesses; porque não posso abrir a forceps
os olhos, mãos e braços de uma sempiterna casa-grande
aparentemente determinada a morrer abraçada aos seus anéis; porque
não posso banir do nosso convívio veículos de opinião que são a
encarnação mal-disfarçada dos mais torpes, sórdidos interesses;
porque não posso estrangular o sujeito que estaciona, por desleixo
ou prepotência, o seu carro ocupando duas vagas; porque não posso
resgatar da mão dos usurpadores um joguinho só que seja do meu
time, “assim como era no princípio”... Para eles e por eles
todos – moralistas, poderosos, proprietários, gângsters,
usurpadores, egocêntricos - oferecerei mais uma vez, a partir de
domingo, vestido de sereia ou de Emília, o meu particular
holocausto. Afirmação singela, mas peremptória, da possibilidade
em que eu acredito e que nessas terras foi plantada.
Evoé!