segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Samba-Roque


Inaugurando a série Nem tudo está perdido


A propósito do novo disco da cantora Roberta Sá, Quando o canto é reza, em parceria com o estupendo Trio Madeira Brasil, escreve Roberto Nascimento, no Estado de São Paulo deste sábado, 21 de agosto: "O disco [...] dá aos sambas de roda de Roque Ferreira um verniz aprumado. A releitura é feita com harmonias flutuantes e percussão sutil, se valendo do virtuosismo dos ases Zé Paulo Becker, Ronaldo do Bandolim e Marcello Gonçalves para modernizar o som de Roque.” O próprio jornalista consigna o pouco gosto do compositor no resultado, citando entrevista sua ao mesmo diário, em 02 de agosto passado (o liame fico devendo, porque faz parte da área restrita para assinantes do jornal):

"O disco está bem feito. Eu achei legal. Ela canta bonito, é muito afinada. A Roberta e o Trio Madeira Brasil fizeram a leitura deles sobre o meu trabalho. Mas, se fosse eu a gravar, seria diferente. O disco é light, e o samba-de-roda não é light. É um samba que tem grande quantidade de percussão, o que no disco da Roberta não tem. Isso não tira o mérito. Eu fico muito grato pela homenagem. O trio é maravilhoso.
...
O disco perdeu em baianidade, ficou mais MPB. Eu sou comprometido com a realidade musical do Recôncavo. As melodias são bonitas, as harmonias são simples. Eles sofisticaram as harmonias. É bonito, mas, se eu mostrar pro pessoal do Recôncavo, eles não vão acreditar".

Não ouvi o disco ainda. Os músicos do Trio Madeira são responsáveis por um trabalho que se inclui indubitavelmente entre o que de melhor se produz na música instrumental popular brasileira nos últimos anos. Não canso de dizer, que Ronaldo é o meu bandolinista brasileiro preferido, pós-Jacob. Já Roberta Sá se instala naquela vasta gama de cantoras surgindas na década que finda: afinadas, técnicas, bonitas, bem-produzidas, queridinhas-dos-jornalistas etc.. Mas que não consigo perceber o que têm a dizer.

O que importa discutir aqui não é a qualidade do disco, que pode dividir opiniões, como de resto qualquer outro assunto. Já disse que não ouvi, e mesmo se o tivesse, minha opinião a respeito valeria pouco. O que vale registrar, como grande elogio que se pode tecer à sinceridade do grande compositor brasileiro Roque Ferrreira - cuja obra o coloca no nono círculo dos grandes cantadores das coisas brasileiras das últimas 4 décadas – , é justamente o mérito de quebrar a univocidade de preceitos tão em voga atualmente, segundo os quais “não se omite opinião sobre trabalho de colegas”, todas as releituras são igualmente "válidas", a modernização (normalmente equivalente a "sofisticação") faz bem à música popular etc. Depoimento sincero, honesto, educado, que repisa uma verdade simples, mas tão difícil de enunciar nos tempos que vão: a tal “sofisticação” (ou modernização) não tem valor em si mesma. Há coisas sofisticadas e ruins, assim como outras pouco sofisticadas e excelentes. O mesmo para as modernas.

É claro que os próprios conceitos de “sofisticação” e "modernização" são problemáticos. O que é, exatamente, ser sofisticado? Quem é mais sofisticado, Pixinguinha ou Guinga? Candeia ou Moacyr Luz? Paulinho da Viola é mais ou menos moderno que Dorival Caymmi? João Gilberto ou Jacob do Bandolim? Mas sabemos claramente sobre o que se refere o bom baiano. A “suavização” de alguns elementos mais marcantes de manifestações musicais da tradição brasileira não é novidade, vem de muito longe, e encerra um processo importantíssimo da consolidação de algumas formas da música popular destinada aos meios de consumo (“disco” e “rádio”, emblematicamente). E produziu ótimos e péssimos resultados: a bossa-nova e o baião de Luiz Gonzaga são exemplos tão diferentes (em todos os sentidos) quanto inegáveis daqueles primeiros. Em outros casos, pode escamotear uma série de problemas que também não são novos, mormente uma tentativa de enquadramento da estética nacional em padrões mais “universalmente” aceitos (leia-se: padrões ditados pela dominação econômico-cultural, que não é propriamente oriental, nem africana, nem indígena, nem politeísta etc. etc., se é que me entendem).

Então, retomando, a tal “modernização” (ou "sofisticação") não se pode reputar boa ou ruim em si mesma. O que é extreme de dúvidas é que, como em qualquer processo de “adapatação” artificial (leia-se, por processos não-espontâneos de interação e transformação históricas, antes por intervenções conscientes e voltadas a objetivos determinados, ainda que puramente estéticos), se perde em determinados quesitos, para se ganhar em outros. Em termos de música brasileira, o resultado final, sua importância para a história das formas musicais, para consolidação da expressividade tipicamente nacional etc., dependerá de um sem número de fatores, entre os quais destaca-se, de um lado, um respeito pelo que representa a tradição e, de outro, uma percepção do que possa ser mais assimilável pela posteridade que se gesta, a partir das condições históricas presentes. Em outras palavras, a velha concepção africana dos elos da corrente.  “Eu sou comprometido com a realidade musical do Recôncavo.” Falou, mestre! Nem todo mundo é. Tem gente comprometida com um monte de coisas - e aqui falo dos comprometimentos autênticos, não daqueles comprometidos unicamente com suas contas bancárias ou com a servilidade aos ditames do sistema. E é bom que assim seja.

Parabéns ao nosso bom Roque, pelo exercício dessa virtude simples e rara de dizer, com sinceridade, o que não precisaria ser dito. Quanto aos frutos que a “releitura” renderá para a posteridade estética da música brasileira – da GRANDE música brasileira, diga-se -, com a palavra o futuro. Embora tenha eu, cá, por certo, os meus palpites.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Obrigatório


Tempos atrás minha amiga-comadre-irmã-parceira Railídia Carvalho, jornalista e cantora paraense, comunista e palmeirense como eu, escreveu um belíssimo texto que foi publicado no ultra-lido Buteco do Edu, do meu também irmão-cumpadre Eduardo Goldenberg, advogado, flamenguista e brizolista.

Depois de algum tempo sem passar por outro belíssimo blogue, o Partido Alto, deparei hoje o comentário a esse mesmo texto, tecido pelo imenso compositor paulistano Douglas Germano, um dos maiores talentos que encontrei na minha estrada pela música brasileira.

Obrigatório.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Paramédico


Adorava se vestir de branco. Mulato alinhado, meia-idade, sempre que a ocasião pedia um aprumo no visual, metia logo a fatiota completa, impecável, reluzente de sabão omo, do pisante à camisa de gola engomada. E a sexta-feira, então, essa era sagrada, que há de se respeitar certas coisas, que que há? Por essas coincidências da vida, morava numa travessinha daquela avenida conhecida por concentrar hospitais, clínicas, laboratórios de análises, toda a parafernalha médica. Já viram?

Entrava no táxi, o chofer:

- Troca de plantão, doutor?

No começo, tratava logo de ir esclarecendo, justificando o gosto, sexta-feira e coisa e tal. Com o tempo, foi cansando de muita explicação.

- Nessa época de inverno aumenta muito o movimento, né doutor?

Meneava a cabeça, sorria, conformado. Se estivesse de muito bom humor, ou quando botava pra dentro aquela caracu com ovo logo no café da manhã, arriscava até o seu sarrinho.

- Minha mulher tem uma dor no joelho que não sara, doutor.

- Bolsa de gelo, três vezes por dia.

- Tou que não me agüento da gastrite...

- Omeprazol 10 pela manhã.

Dia desses, de poucos amigos, atrasado nos seus quarenta minutos tradicionais, sem caracu pra amaciar, o chofer:

- Pra onde, doutor?

- Metrô.

- E essa gripe do porco, hein doutor?

- Pra você ver...

- Eu acho que a culpa de tudo é dessa pouca-vergonha, doutor.

-  ...

-  Hoje em dia o mundo tá cheio de abominação, valha-me Deus! Homem com homem, mulher com mulher, entra cachorro, cabra, agora até porco!

-  Olha, eu não... 

-Diga, doutor, o que que eu faço agora, que não tenho nada a ver com a porcaria toda? Máscara, vacina, como é que eu defendo as minhas crianças, doutor? 

- Não sou médico...

-  Médico, enfermeiro, tudo a mesma porcaria também. Até estagiário eu canso de pegar. Não é possível que ninguém vá me ajudar? 

- É que hoje é sexta...

- Sei, sei, a semana já era, né? Fim de semaninha só na vida boa... Meio-dia de sexta e já tá com a vida ganha! Que mamata, hein?

 - Olha aqui, meu chapa...


- Mercenário, como todos. É nessas que vai embora o dinheiro do povo.


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Confusão total no Distrito, três flagrantes pra lavrar, todo mundo se acotovelando na ante-sala da “otoridade”, chofer, passageiro, polícia, testemunha, o cara que bateu atrás. Vem o escrivão:

- Que é que há por aqui?


-  Tava na avenida, o cara do táxi meteu o pé no breque...

-  Meti o pé, não, esse ignorante é que quis meter a mão na minha cara....

-  Eu vi tudo, o doutor aí enfiou a taboca na orelha do motora...

-  Enfiou, não, tentou...

- Onde já se viu um médico...


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Cinco horas depois. A calma de volta ao plantão.

- Ôoooo, Denilson... Vai buscar o tal médico que enfiou o pé no peito da testemunha.





segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A morte e a morte de Stella do Patrocínio

Ney Mesquita (*11/12/1966 +09/08/2004)


Não foi por falta de aviso. Ney Mesquita, o meu irmão preto, passou os quase dezoito anos em que eu o conhecia me dizendo que ia morrer cedo. Não sei se era intuição, vontade, ou uma espécie de sina a ser cumprida. E não é que no último dia 09, às 21h00, seu coração imenso e judiado desencumbiu-se do ônus desse fatídico auto-vaticínio?

Neyzinho foi um grande artista em todos os sentidos. Não só pela grandeza da expressão visível de sua arte, de seu talento, que podia ser percebida facilmente por quem o ouvisse cantar ou representar. Mas sobretudo pela capacidade constante de antenar-se com as angústias, dores, alegrias, celebrações e contradições de sua geração, de sua cidade, do seu povo negro. Foi, durante toda a sua carreira, e principalmente durante a sua vida, um canal permanente através do qual as nossas necessidades de expressão puderam-se canalizar, seja em formas sensíveis, seja como mais angústias, alegrias e contradições. Uma grande caixa de ressonância do talento, da beleza, da loucura de uma existência essencial e circunstancialmente inscrita num meio tão inóspito.

Cantor, sambista, ator, professor de música, artesão, pesquisador da cultura popular. Um grande baú de sambas-enredo – muitos agora definitivamente esquecidos - dos carnavais paulistanos de sempre. Conhecedor de jongos e pontos, congos e reisados. De voz e sobretudo afinação privilegiadas, formado nos guetos de samba da paulicéia (alô Pérola Negra!) e pós-graduado na universidade da noite, era no palco que fazia transbordar a exuberância de seu talento performático.

Dizia-se parente do libertário José do Patrocínio, o que nunca me foi dado verificar. Sei é que recentemente, encarnava a Stella do Patrocínio, poetiza negra que viveu grande parte de sua vida interna na colônia psiquiátrica Juliano Moreira. Ninguém mais poderia fazer de tal forma reviver a alma universal, errática, contundente e profundamente poética de Stella. Ninguém mais poderá cantar os seus versos (lindamente musicados por Lincoln Antônio) como ele. Ninguém.

Ney Mesquita não se eximiu em nenhum momento de encarar a sua árdua missão de artista e de negro. Como poucos sofreu na pele as injustiças profundas da condenação histórica a que parece eternamente submetido o povo negro em nosso país de tantas desigualdades e preconceitos. E mais uma vez transformou tudo em arte e beleza, muito embora as cicatrizes nunca tenham deixado de determinar os caminhos e descaminhos de sua vida e sua arte inquietas. Um negro verdadeiro, elo da corrente que comunica a trajetória de seus ancestrais à gestação das gerações vindouras. Ninguém me contou. Eu vi as legiões de eguns passeando pelo Teatro São Pedro, quando ele pisou seus pés negros descalços naquele palco de recitais de câmara e árias verdianas.

Por tudo isso, o meu irmão preto Ney Mesquita foi uma pessoa tão fascinante quanto perturbadora. Tão querida quanto querente. Tão indispensável quanto difícil. E vai fazer, meus senhores e minhas senhoras... uma PUTA falta.

Poucas pessoas tiveram na vida tanto carinho para comigo. Foram tantos os incentivos, os cuidados, as puxadas de orelha. Felizmente, nunca deixamos de nos dizer que nos amávamos. E hoje não consigo deixar de ouvir aquela sua voz, quando se enchia de toda pompa e circunstância pra me anunciar uma grande verdade recentemente descoberta: “sabe, Fernando...”. Ou aquela sua gargalhada de saci, pé descalço, fazendo macaquice, judiando do gato da Iara. Vai fazer falta demais nos nossos tantos fundos de quintal, a começar pelo de casa. E não serão mais tão vagabundas as minhas bebedeiras pela cidade.

Mas eu hoje posso cantar – em grande parte graças a ele. E cantarei à sua presença eterna nas nossas rodas e nos nossos corações. Até o dia em que hei de pegá-lo de novo, num redemoinho qualquer, aos pés de um taquaral como os que havia atrás da casa da minha infância, que acabou de morrer um pouco mais. E aí vou roubar sua carapuça, pra ele não poder mais me abandonar.


[Publicado originalmente em 16/08/2004]