segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A morte e a morte de Stella do Patrocínio

Ney Mesquita (*11/12/1966 +09/08/2004)


Não foi por falta de aviso. Ney Mesquita, o meu irmão preto, passou os quase dezoito anos em que eu o conhecia me dizendo que ia morrer cedo. Não sei se era intuição, vontade, ou uma espécie de sina a ser cumprida. E não é que no último dia 09, às 21h00, seu coração imenso e judiado desencumbiu-se do ônus desse fatídico auto-vaticínio?

Neyzinho foi um grande artista em todos os sentidos. Não só pela grandeza da expressão visível de sua arte, de seu talento, que podia ser percebida facilmente por quem o ouvisse cantar ou representar. Mas sobretudo pela capacidade constante de antenar-se com as angústias, dores, alegrias, celebrações e contradições de sua geração, de sua cidade, do seu povo negro. Foi, durante toda a sua carreira, e principalmente durante a sua vida, um canal permanente através do qual as nossas necessidades de expressão puderam-se canalizar, seja em formas sensíveis, seja como mais angústias, alegrias e contradições. Uma grande caixa de ressonância do talento, da beleza, da loucura de uma existência essencial e circunstancialmente inscrita num meio tão inóspito.

Cantor, sambista, ator, professor de música, artesão, pesquisador da cultura popular. Um grande baú de sambas-enredo – muitos agora definitivamente esquecidos - dos carnavais paulistanos de sempre. Conhecedor de jongos e pontos, congos e reisados. De voz e sobretudo afinação privilegiadas, formado nos guetos de samba da paulicéia (alô Pérola Negra!) e pós-graduado na universidade da noite, era no palco que fazia transbordar a exuberância de seu talento performático.

Dizia-se parente do libertário José do Patrocínio, o que nunca me foi dado verificar. Sei é que recentemente, encarnava a Stella do Patrocínio, poetiza negra que viveu grande parte de sua vida interna na colônia psiquiátrica Juliano Moreira. Ninguém mais poderia fazer de tal forma reviver a alma universal, errática, contundente e profundamente poética de Stella. Ninguém mais poderá cantar os seus versos (lindamente musicados por Lincoln Antônio) como ele. Ninguém.

Ney Mesquita não se eximiu em nenhum momento de encarar a sua árdua missão de artista e de negro. Como poucos sofreu na pele as injustiças profundas da condenação histórica a que parece eternamente submetido o povo negro em nosso país de tantas desigualdades e preconceitos. E mais uma vez transformou tudo em arte e beleza, muito embora as cicatrizes nunca tenham deixado de determinar os caminhos e descaminhos de sua vida e sua arte inquietas. Um negro verdadeiro, elo da corrente que comunica a trajetória de seus ancestrais à gestação das gerações vindouras. Ninguém me contou. Eu vi as legiões de eguns passeando pelo Teatro São Pedro, quando ele pisou seus pés negros descalços naquele palco de recitais de câmara e árias verdianas.

Por tudo isso, o meu irmão preto Ney Mesquita foi uma pessoa tão fascinante quanto perturbadora. Tão querida quanto querente. Tão indispensável quanto difícil. E vai fazer, meus senhores e minhas senhoras... uma PUTA falta.

Poucas pessoas tiveram na vida tanto carinho para comigo. Foram tantos os incentivos, os cuidados, as puxadas de orelha. Felizmente, nunca deixamos de nos dizer que nos amávamos. E hoje não consigo deixar de ouvir aquela sua voz, quando se enchia de toda pompa e circunstância pra me anunciar uma grande verdade recentemente descoberta: “sabe, Fernando...”. Ou aquela sua gargalhada de saci, pé descalço, fazendo macaquice, judiando do gato da Iara. Vai fazer falta demais nos nossos tantos fundos de quintal, a começar pelo de casa. E não serão mais tão vagabundas as minhas bebedeiras pela cidade.

Mas eu hoje posso cantar – em grande parte graças a ele. E cantarei à sua presença eterna nas nossas rodas e nos nossos corações. Até o dia em que hei de pegá-lo de novo, num redemoinho qualquer, aos pés de um taquaral como os que havia atrás da casa da minha infância, que acabou de morrer um pouco mais. E aí vou roubar sua carapuça, pra ele não poder mais me abandonar.


[Publicado originalmente em 16/08/2004]

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