quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Samba na Vila Madalena

Chico Aguiar


Aos faraós da Vila, Pedrão Vieira
e Edu Rocha, parceria que fez história.



Quando a gente se vê às voltas com certas lembranças, é meio inevitável fazer o papel do chato passadista. Meio inevitável sentir saudades. Penso na Vila Madalena, ou na “Vila”, simplesmente. “A Vila”, imaginem, como se fosse a única... Mas quero tratá-la assim, nessa recordação, como quem fala de uma velha amiga.

Era uma vez um bar, na esquina de Girassol com Purpurina, dois nomes que evocam luz, alegria e brilho. Era o Bar Sete, para os íntimos, Sete de Setembro, de batismo. Quartel-general de um brioso time de futebol do mesmo nome, com direito a lousa na parede anunciando as datas das partidas. Costume antigo. Um dos sócios fundadores da agremiação e, ao que diziam, dirigente bem mais dedicado que quantos andam agora por aí, era o Zé Leiteiro, um português bem apessoado; um daqueles que fundaram, na verdade, a própria Vila. Na ocasião já pelos setenta, mas ainda bem disposto para quem tinha ganhado a vida tocando uma vaquinha de leite por aquelas ladeiras acima. O bar tinha estoque de jogos de dominó à disposição dos velhos; sempre tinha uns três ou quatro jogando. Acho que havia uma mesinha de sinuca, não me lembro bem – sei que o espaço era pequeno. Corria o já longínquo ano de 1983, mas mesmo para a época, o lugar parecia um túnel do tempo. O bairro era ainda tão sossegado que aos sábados, quando havia mais gente, chegava-se a colocar mesas no meio da Girassol!

Mas sossego demais também cansa, e quis o destino que a essa altura, os inquietos sambistas da Paulicéia elegessem o lugar como ponto de encontro. Como rolou? Teve alguma coisa a ver com futebol: o Buru, neto do Zé Leiteiro, jogava também e eu acho que foi nesse meio que acabou se enturmando com o pessoal do samba. Qualquer dia pergunto a ele. E aconteceu também que um lugar considerado uma espécie de “Clube do Samba”, o Botekão, tinha fechado havia pouco tempo, deixando sem teto algumas dezenas de boleiros e sambistas, estes últimos quase todos bambas do glorioso Grêmio Recreativo Mocidade Escola de Samba Camisa Verde e Branco. Isso acontece muito: os bares são entidades viventes, que nascem, crescem, cumprem sua sina e morrem um dia. Então esse pessoal foi abrigar sua batucada naquela esquina. Dos jogadores que freqüentavam a área me lembro do Dorval e do Mengálvio, integrantes da mais brilhante linha de ataque jamais vista no futebol brasileiro (e olha que eu sou são paulino): Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Ah, sim – e tinha o Muricy, um mocinho cabeludo e ainda ilustre desconhecido, que falava pelos cotovelos, atrapalhando quem queria ouvir o samba. Foi lá que vi também, já quase cego e pouco antes de morrer, o Roberto Ribeiro, do Império Serrano, cantor idolatrado pela raça sambista; o Boca Nervosa, “canário”, isto é, que puxava o samba nos desfiles do Camisa; o Reinaldo, depois promovido a “Príncipe do Pagode”, vejam só!

Com 30 e poucos, meio de saco cheio da vida dura e mal paga que me proporcionavam uns 9 anos de formado em medicina, eu havia descoberto o samba há pouco tempo. E descobrira também que havia poucas coisas na vida melhores que cantar um samba de Paulinho da Viola ou de D. Ivone Lara na companhia de um bom cavaquinho, de um violão 7 cordas, de um pandeiro. Mesmo para mim, que sempre gostara de cantar, era tudo uma maravilhosa novidade e, constatava-se logo, ótimo para esquecer aborrecimentos de toda ordem. Freqüentar os ambientes de samba, aquela “nigéria”, como dizia o também negro Dedé, era e é realmente muito agradável. Em pouco tempo as pessoas faziam você se sentir em casa; o único segredo era o novato saber chegar devagarinho, sem empurrar. As pessoas eram alegres de um jeito que eu não conhecia; isso sem falar das mulheres, às pencas, todas de bem com a vida. Estava na moda uma maquiagem com purpurina que as deixava ultra-charmosas. Só quem já rodou por essas paragens é que entende um verso de canção que diz assim: Um sorriso negro, um abraço negro, traaaaz felicidade...

Pois é. Entre os novos amigos, um dos mais chegados era um mulato gago, prata da casa, lá da Vila mesmo, onde morava nos fundos de um terreno, numa casinha muito humilde como já não há mais por lá: o Joca. Ele por sua vez amicíssimo do Nadão , um bambambam, compositor do Vai-Vai, e coisa e tal. Com eles vivi uma historinha curta, uma história de samba que vale a pena deixar registrada.

O ano terminava; o Buru, agora gerenciando o negócio, tanto que muita gente se lembra desse lugar como o Bar do Buru, resolveu aproveitar aquele movimento todo, organizando um bloco para o Carnaval: o “Bando Sete”, evidentemente. Seria para isso mister o competente samba, em tese, a ser escolhido por concurso. Só que um tal Digê, por sua vez compositor do Camisa, largou mais rápido que todo mundo: fez um negócio genial, curtinho, malicioso, que em dois tempos estava na boca do povo. Acontece que o Nadão tinha lá seus brios, e resolveu entrar na parada assim mesmo, junto com o Joca. Talvez por causa da rivalidade tradicional entre o Camisa e o Vai-Vai, talvez... E o curioso da história é que resolveram me convidar para a parceria; mais precisamente para escrever a letra. “Doutor” deve saber fazer essas coisas bem, imagino que tenha sido esse o raciocínio. Afinal, por mais apaixonado que fosse por samba, eu não deixava de ser um recém chegado.

Como bom doutor, fiz a lição de casa. Em uma ou duas semanas entreguei ao Joca uma folha de caderno com a primeira letra da minha vida, e última, até o momento. Passei a aguardar então, na verdade sem muita expectativa, o resultado final da parceria: a música que ele e Nadão acrescentariam à minha obra de estreante. Sábado seguiu sábado, Carnaval chegando, e nada, a não ser o tratamento efusivo de “parceiro”, com direito a tapinhas nas costas e convite para cerveja gelada no balcão. Eu estava no lucro, não tinha o que reclamar, deixava correr sem perguntar muito. Um dia, depois de me festejar um pouco mais que de costume, o Joca me mostrou afinal uma filipeta com uma letra já impressa, e cantou ao pé do ouvido, ali mesmo, a melodia, marcando o ritmo com a mão, coisa de sambista de verdade, eu já me sentindo o próprio... Só estranhei um pouco ao não reconhecer naquela primeira audição nenhum dos versos de minha lavra, nada! Peguei o papelzinho pra ler, virei, revirei, não tinha uma vírgula do meu texto; e não custei a perceber que esse de agora era, na verdade, infinitamente melhor. Mas pra minha surpresa, o Joca não comentou nada, e continuou a me tratar do mesmo jeito - parceiro daqui, parceiro dali, com a maior naturalidade... Um negócio realmente estranho, mas fiquei quieto; resolvi dar um tempo pra ver se entendia mais adiante. Hipótese mais provável: acharam minha letra um lixo, mas não dá pra desfeitear assim, sem mais nem menos, um “doutor”; a solução mais diplomática teria sido aquela. Brasileirices, pensei, antropólogo amador.

O impresso foi distribuído, os dois divulgaram pra valer. Embaixo do título vinha em negrito o nome dos compositores: Nadão, Joca e Chicão – assim mesmo, rimando. Eu achando aquela glória imerecida muito engraçada. De quebra, com meus 1 e setenta e poucos nunca tinha passado de Chico, e agora era promovido a Chicão, nome artístico escolhido por meus parceiros, sem consulta prévia. O Digê, que era e ainda é meu amigo, não chegou a me chamar às falas, mas ficou meio assim. Afinal, o samba dele já tinha sido praticamente escolhido informalmente – aquela coisa de “preferência popular”. E o pessoal vinha com essa, em cima da hora! Tem muita ciumeira nessas disputas, vocês sabem.

A “escolha” do samba acabou não ocorrendo, isto é, não houve júri, nem votação. Num sábado à tarde, na véspera do Carnaval, ao ritmo de bem uns 40 componentes da bateria da Pérola Negra, os dois sambas foram cantados (outra solução diplomática, pensei), no meio da Girassol. Imaginem – nem precisava chamar DSV, nada disso. Com minha filosófica colaboração, nosso trio manteve a farsa, e compartilhei dos aplausos devidos aos compositores, perfilado em lugar de honra, na frente da bateria. Pena que a maioria dos meus conhecidos não estava lá para assistir à cena! Nunca esquecerei meus 10 minutos de fama, como Chicão!

No dia do desfile, só deu o samba do Digê; era bom demais, embora o “nosso” fosse também uma obra-prima. Mas isso não afetou minha importância, que só aumentou quando, em anos seguintes, meu “parceiro” Nadão ganhou concursos oficiais – acho que o Vai-Vai chegou até a ser campeão com um samba dele. Meu parceiro!

Meses depois, já meio esquecido da história, enviada para o arquivo mental de situações mais ou menos misteriosas, vou à casa de uma colega, a Leda, que era bem amiga da mulher do Nadão , a falecida Edilamar. Fazia tempo que a gente não se via, e tínhamos alguns daqueles “assuntos atrasados”. Então a Leda me conta: “sabe que no mês passado eu fui à casa da Edilamar, e o Nadão estava lá com o Joca, desesperado? Passaram a tarde inteira procurando um tal papel que você tinha escrito, uma coisa assim...”

Então tinha sido isso! Nem passou pela cabeça deles que “doutor” faz cópia do que escreve. Ainda bem... Sábios desígnios da Providência - o samba só ganhou com isso!

Para provar que essa história não é mentira, eis a prova definitiva e irrefutável: um arquivo com a foto da filipeta que guardo até hoje para mostrar aos meus netos. Ficará à disposição dos leitores mais céticos.





O bar Sete? Tinha virado galeria de arte, agora nem sei mais. Só restou a esquina, de Girassol... com Purpurina.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Gaiola


Rio da tristeza que me leva
Embarcado em saudade de
                                               seguir
navegando em falso
Redes que vão e vêm -
                                  remanso da vida
Atrasando um porto
Enganando um curso
Evitando um mar
                          de desaguadas certezas

(fevereiro de 2002)
 





quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Jamais entenderão


Disse-me sempre meu pai e eu gosto de repetir: para quem não entende certas coisas, não adianta nem tentar explicar. A sentença serve para o tratamento que se tem dado pela grande e crassa imprensa brasileira ao episódio da ordem do dia: a renúncia de Fidel Castro à recandidatura para a chefia do conselho de ministros cubano.

Os jornalões morrerão tentando vender a idéia de que o regime cubano é uma imposição ditatorial. Descontada a má-fé de sempre, a culpa da miopia histórica é de um paradigma de compreensão a que se aferraram suas mentes coisificadas pela lógica do capital, que é a da disputa de interesses antagônicos no âmbito da arena “neutra” do mercado. Não poderão, assim, jamais perceber que um povo possa historicamente superar a condição de mera massa de indivíduos em disputa, para atingir a condição de coletividade. Coletividade, sim, enquanto um conjunto (não um amontoado) de particulares que possa orquestradamente agir em torno de um objetivo comum, guiado por uma lógica outra que não a da apropriação e acumulação privadas; não por interesses individualizados, mas na construção de um status comum que possibilite a todos fruir dignamente do pouco que haja à disposição para se sobreviver. Não sem conflitos, por óbvio, que a contradição é a essência e o motor desse caminho. Não sem dissidências, porque o espírito predatório se há infiltrado na existência histórica da humanidade desde muito.

A construção do socialismo cubano, para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir, é tarefa histórica a que se propôs e por que se empenhou toda uma nação. Ainda que se tenha valido da grandeza de homens como Che Guevara, Camilo Cienfuegos, Fidel Castro, entre outros, ainda que talvez não pudesse prescindir desses braços e dessas mentes, não se pode entender como projeto pessoal ou de um pequeno grupo. Os ideais libertários de 56 se enraizaram na alma cubana incorporando valores, caminhos e necessidades historicamente experienciados. Caminhos que erraram e acertaram, como todos os itinerários humanos. Experiências que resolveram contradições seríssimas e engendraram outras a serem superadas, como as restrições a certas liberdades, a necessária democratização de algumas estruturas políticas, a contemplação de certos anseios simbólicos sutis que ultrapassam as necessidades mais comuns, o ressurgimento das diferenças de classe após o início do “período especial” etc. Mas a nada disso se dão os olhos do mundo ocidental, ciosos dos ciscos alheios, mas cegos para as traves em si enterradas.

Aguardem, caríssimos as cartas para os jornalões nos próximos dias. A classe média “informada” e burra, empedernida por uma ideologia escamoteadora das verdadeiras contradições do país e justificadora da manutenção de um estado de coisas que torna insustentável até a existência duns “tantos com algum” ante a multidão da “maioria sem nenhum”, como diz o samba, não tardará a bradar seus preconceitos raivosos. Classe média que não consegue entender, à imagem de seus preceptores, a possibilidade de uma ação coletiva pontual, que dirá histórica! Basta pensar por que o trânsito de todas as cidades grandes do país (palco provilegiado onde essa mesma elite encena diariamente a pantomima grotesca do “cada um se digladiando por seu espaço”) não consegue sair do nó górdio em que se mete todos os dias. Porque não é possível entrar na cabeça dum desses dirigentes de automóvel (que amanhã escreverá cartas aos jornais) que todos poderão andar numa velocidade média melhor do que o entupimento generalizado a que nos acostumamos na hora em que cada um deixar de tentar ser mais rápido que o seu vizinho (mais rápido, leia-se, mais esperto, mais oportunista, infringindo uma regrinha aqui outra ali - quem não faz? - de menor importância...). Basta pensar, tristemente, em por que a seleção brasileira de futebol, contando com um impressionante conjunto de gênios individuais, reunindo um número de jogadores suficiente para montar meia dúzia de times em condição de disputar um título mundial, ao invés de papar absolutamente todos os campeonatos que disputa, não consegue mostrar nada além de um futebolzinho ineficiente.

É isso. O trânsito das grandes metrópoles é o retrato e a seleção brasileira de futebol é a caricatura mais doída da nossa impossibilidade coletiva. Como pretendemos entender Cuba?

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Poética do Imaginário

João de Jesus Paes Loureiro


Vem ocorrendo na Amazônia a prevalência progressiva das relações fundadas na exploração do trabalho, no agravamento das desigualdades entre os homens, no desapossamento cultural. Emerge, no conjunto dessas mudanças, uma cultura de exclusão, que se nutre de uma racionalidade linear e prática, em lugar da cultura fundada no poético [...]. O caboclo é bruscamente ‘desalojado de seu presente cultural’, embora ainda fundado nas relações de um mundo que é seu, que, de repente, passa a parecer-lhe fictício, enquanto se lhe impõe uma espécie de outro mundo real e que ainda não é o seu. Mundo no qual todas as qualidades que constituem sua mundividência – fruição, tranqüilidade, devaneio, disponibilidade de tempo, o carpe diem de um viver cada momento – são considerados ingenuidade, incompetência, atraso e primitivismo. Passa a habitar um espaço fraturado, num tempo deslocado. E esse desalojamento de seu presente pela compulsão de um outro agora, considerado moderno, torna-se um desalojamento de si mesmo e da cultura.

O que se questiona, entretanto, não é a manutenção tradicionalista de uma ‘cultura do passado’, mas a necessidade da cultura amazônica, como expressão de um presente histórico, manter-se como processo, usufruindo as novas dimensões que o pluriculturalismo entreabre, procedendo suas trocas simbólicas com outras culturas, sem mutilações ou substituições, permanecendo respeitada e íntegra no ethos ético-estético que a constitui.

[...]


Tenho uma alma ribeirinha que percebe a essência do real que há no visível, por intermédio do imaginário. [...]

Todos os que nascemos à beira do rio Tocantis, em Abaetetuba – uma das cidades encantadas na geografia mágica do Pará Amazônico – temos certeza que a boiúna faz seu leito preferido no perau, sob a antiga ponte-grande da rua da frente e costuma sair pelo rio , ora como navio iluminado, ora para estirar-se, lânguida, ao longo da praia da ilha em frente, a ilha da Pacoca.

Sabemos, também, na minha terra de canaviais e sonho, que todo alguém que, no cair da tarde, se aproximar e cortar a ponta da cauda dessa cobra-grande mítica, desencantará a cidade submersa na aparência visível da cidade atual.

A cidade desencantada, mostrando-se então cidade real e visível, será o lugar ameno da felicidade transparente, da doçura de uma solidariedade espontânea, na harmonia nas relações dos homens entre si e usufruindo uma relação de bela harmonia com a natureza. Enfim, um lugar tranqüilo para a morada do homem.

Aprendi na cartilha cotidiana da cultura ribeirinha que alfabetizou meu ser caboclo, que toda realidade tem sempre submersa sua encantaria. Um luga ronde estão em potência todas as promessas de felicidade e devaneio.

Verdadeiramente, cada nova realidade é o desencantamento de uma irrealidade real imaginária nela antes encantada. É como se essa potência imaginal, que há nos seres, é que fizesse o real realmente existir.


(trechos do ensaio "Amazônia: 500 anos de poética do imaginário”, in João de Jesus PAES LOUREIRO - Obras Reunidas, vol. 3., São Paulo: Escrituras Editora, 2000, pp. 331-334)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Simpatia é quase amor


Em meio à vastidão incomensurável da cultura brasileira, a um oceano de ritmos, danças, lendas e provérbios, a uma hiléia de receitas, parlendas, brinquedos e rezas, sempre me chamou a atenção algo que, se não é exclusivo da nossa gente, certamente por aqui encontrou terra fertilíssima para se espalhar como uma das mais expressivas e ricas traduções do nosso espírito: as simpatias. Desaguadouro de crenças, superstições (pois como diria Jorge Amado, o brasileiro não é propriamente religioso, é supersticioso), magias, literatura oral, liturgias e conhecimentos curandeirísticos provenientes das diversíssimas culturas que neste torrão se encontraram, misturaram e completaram, as simpatias são um imenso baú do tesouro popular, de onde se pode tirar, sempre que se precisar, uma soluçãozinha porreta prêt-a-porter para toda a infinidade de males e agruras que possam atormentar a alma e o corpo do cidadão brasileiro. Não há quem não conheça pelo menos uma (de beber água no copo ao contrário, pra passar o soluço, a colocar o Santo Antônio de cabeça pra baixo pra arrumar casamento, passando por enfiar a foto do time adversário no congelador, na véspera da final do campeonato).

A origem do termo parece obscura, mas acredito que remeta a um antigo emprego da palavra “simpatia”, de uso corrente entre os saberes científico-esotéricos de tempos remotos, passado depois para a fisiatria e a medicina, significando uma espécie de correspondência ou afinidade que se julgava existir entre as qualidades de certas substâncias, elementos ou corpos
(‘sýn ’, no grego, dá idéia de “junto”, como em “sincronia”, “sinergia”, “sinfonia” etc; ‘páthos ', do que se experimenta, que se sente, como em cardiopatia, apatia, ou por intermédio do latim ‘patio ’, “paixão”, “padecimento”). As simpatias podem ter nascido, portanto, segundo esta teoria que acabo de criar, da idéia disseminada em várias culturas de que elementos, substâncias ou corpos aparentados por certas afinidades, ou que partilhem uma comum natureza, possam exercer influência uns sobre os outros ou, até, serem manipulados uns pelos outros.

Teorias à parte, porém, como tudo o que é baseado na tradição oral, esse cabedal de conhecimento popular corre risco de se perder em meio à barafunda impessoal da sociedade global dominada pela indústria de comunicação de massas e pela tecnologia. Por isso, apesar de confiar e gostar mais da transmissão na base do boca-a-boca, de mãe para filha, foi com grande entusiasmo que adquiri por módicos R$ 2,99, em recente viagem pelo interior do Estado de São Paulo, o segundo número da revista Rezas, benzeduras e simpatias (Cajamar:Editora Três, 2003), oportuníssima publicação que visa contribuir para a preservação e divulgação de um sem número de simpatias conhecidas pelos quatro cantos do país.

Com apresentação didática, farta ilustração e introduções explicativas/aconselhadoras indispensáveis sobre a gravidade dos problemas enfrentados e suas conseqüências sobre a vida prática, bem como a correspondente utilidade do remédio prescrito, a revista tornou-se para mim um vade mecum praticamente obrigatório. Sabedor, pois, de algumas necessidades recentes e remotas de amigos - e algumas minhas também, por que não? - reuni uma pequenina antologia de fórmulas garantidamente infalíveis, que apresento para proveito geral.


Para a criança não urinar mais na cama

Tem criança que continua urinando na cama até depois de crescida. Os pais não devem maltratá-la por esse motivo, mas sim ajudá-la a não mais fazer isso.

Para resolver o problema da criança que suja toda noite um lençol – às vezes não há tantos lençóis e nem tempo para lavá-los – existe uma simpatia extraordinária, muito usada no interior do nosso país.

Assim que a criança acordar, após uma noite em que tenha molhado a cama, deverá sair imediatamente à rua, em jejum, trazendo uma moringa com um pouco d’água sobre a cabeça. Ao encontrar a primeira pessoa, deverá dizer a ela:

- Valei-me meu São João! Dai uma esmola para um mijão!

***

Para afinar o nariz

Muita gente não gosta do próprio nariz. Isso acontece, sobretudo, quando o nariz é grosso, pois as mulheres, principalmente, preferem ter um nariz afilado, para compor-lhes melhor o rosto feminino.

Para afinar o nariz, existe uma simpatia bem interessante. Primeiro é preciso ter um lampião de querosene, daqueles bem anigos, de mecha. Acende-se o lampião e na manga de vidro passa-se os dedos indicador e polegar até que esquentem bem (sem deixá-los queimar, claro). Em seguida, passa-se no nariz os dois dedos, comprimido-o levemente, em movimentos para cima e para baixo. A cada movimento deve-se repetir:

Afina
Afina
Afina

Depois de fazer isso algumas vezes, passa-se no nariz um algodão com óleo de oliva e queima-se o algodão.

***

Para tirar a barriga

Para os barrigudos que não conseguem fazer regime alimentar e emagrecer existe a chance de pelo menos tirar a barriga. Também para aqueles que, mesmo não sendo gordos, possuem barriga, a chance é a mesma. Se fizerem a simpatia que aqui indicamos, conseguirão sem falta atingir a elegância desejada.

Para fazer esta simpatia, é preciso apenas e tão simplesmente uma parede. A parede de seu próprio quarto.

A simpatia se faz em três sextas-feiras seguidas. Em cada uma dessas sextas-feiras, levante-se da cama, sem acordar ninguém da casa, vá até a parede do quarto, encoste a barriga na parede e diga três vezes:

- Parede, me dê a sua barriga que eu te dou a minha.

Depois de fazer isso em três sextas-feiras seguidas, adeus barriga!

***

Para descobrir os segredos do cônjuge

Os maridos e as esposas querem saber sempre os segredos um do outro. Principalmente quando esses segredos se relacionam ao amor. Para saber o que está escondido no coração do cônjuge, deve-se agir assim:

Pega-se um chinelo do próprio uso e coloca-se por baixo do travesseiro, dizendo:

Chinelo, eu prometo
não te arrastar no chão
nem mais uma vez
se contares os segredos
da minha paixão

Numa notie de sexta-feira, por volta da meia-noite, deve-se encostar o ouvido no travesseiro por baixo do qual está o chinelo, e dizer em pensamento:

Chinelo, o dia é certo
Chinelo, é sexta-feira
Chinelo, a hora é certa
a hora é meia-noite
Chinelo, conte todos
os segredos que eu quero

Em seguida, firma-se o pensamento para ouvir todos os segredos.

E.T. - Depois de usar o chinelo para esse fim, não mais se deve usá-lo no pé.


***

Para eliminar os calos

Calos incomodam muito. Mais ainda quando o sapato é novo e não está amaciado. Chegou-se até a inventar a expressão: “você está pisando no meu calo”, quando nos dirigimos a alguém que nos aborrece e chateia.

Muita gente tenta extirpar os calos utilizando-se de lâminas de barbear, facas ou tesouras. Não se deve fazer isso, pois é muito perigoso e pode acarretar uma séria infecção. Melhor é ir ao pedicuro, ou então, como fazem os cearenses de Juazeiro, utilizar-se de uma inofensiva e prática simpatia:

Pegue um pedaço de toucinho, numa noite de sexta-feira, e passe sobre o calo que o está incomodando. Após isso, jogue o toucinho num formigueiro. Repita isso durante três sextas-feiras, ao final das quais o calo terá caído naturalmente.

***

Para acabar com os gases intestinais

Os gases intestinais são razões de humilhações e maus momentos para as pessoas que dele sofrem. Por esse motivo muitas deixam até de freqüentar festas e reuniões, temerosas de que os gases as ataquem nessas horas.

Muitas são as providências de ordem medicinal que podem minorar esse mal, pois os gases intestinais são apenas sintomas de doenças do aparelho digestivo. Mas para ter tranqüilidade, quem sofre com esses problema pode fazer a simpatia do Chá de Telha.

O Chá de Telha, como diz o próprio nome, é feito com cacos de telhas comuns, destas que cobrem as casas. Parte-se uma telha e pega-se seis pedaços. Coloca-se tudo numa panela e ferve-se por 15 minutos. Está pronto o Chá de Telha, uma simpatia comprovada contra os inoportunos gases intestinais.

[Nota desta página: a elucidativa publicação não esclarece, neste ponto, se é necessário tomar o Chá de Telha, muito menos se deve-se fazê-lo numa sexta-feira.]

***

Para afastar os chatos com raspas de veado

Nossa felicidade doméstica tem muito a ver com as pessoas que freqüentam nossa casa. Entre os vários freqüentadores que costumamos receber estão os “chatos”. São aqueles que só contam vantagem o tempo todo: quando oferecemos jantar, por exemplo, começam a contar de outros mais ricos, dos quais gostaram mais, e coisas semelhantes. Esses chatos estragam a nossa alegria e não dão a mínima importância ao fato de estarem nos incomodando.

Para afastá-los devemos ir a uma casa de artigos de Umbanda e adquirir “Raspas de Veado”. Tendo em mão as raspas de veado, devemos aguardar a primeira visita do chato ou dos chatos (muitas vezes eles agem em casal). Daí sopramos pelas costas deles o pó das raspas de veado. Não há erro: nunca mais eles voltarão à sua casa.


***

Para curar disenteria

A disenteria debilita bastante o organismo, ficando até perigosa quando atinge uma criança. A medicina popular recomenda que a pessoa coma chuchu cozido, porque esse legume tem o dom de “segurar”. Nas cidades grandes há gente que toma Coca-Cola como remédio para esse tipo de mal, cujas origens podem ser múltiplas.

No interior do Nordeste, sem prejuízo da medicina convencional ou popular aplicada, as pessoas valem-se de simpatias, algumas delas até mesmo engraçadas, como essa que transcrevemos abaixo:

Faz-se um colar de sementes de cabaça e coloca-se no pescoço da pessoa doente, fazendo-a recitar:

- Aru aru aroeira. Cabacinha, cabação, cabaceira. Quem me dera este colar me curar da caganeira. Um, dois, três. Viva o preto e o português. Da caganeira não sou mais freguês.


Aos poucos e segundo a demanda dos leitores, vou compartilhando mais soluções asseguradamente à prova de falhas.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

O perigo mora além


A época do Carnaval é – e sempre foi – propícia para reacender na meia dúzia de sempre os ânimos detratores das coisas do Brasil. Parece que essa gente pega carona na licenciosidade diáfana do período e, despida de maiores pudores, põe-se a destilar às claras seu ódio noutrora disfarçado pelo que é mais próprio do nosso povo. Antes, o mais comum era o “é por isso que esse país não vai pra frente”, de um lado, “ópio do povo” de outro. Hoje, está mais para “por que é que para ser brasileiro eu preciso gostar de Carnaval, torcer pela Seleção Brasileira?”, e por aí vai. O fato, é que isso não é de hoje e sempre teve um papel muito específico na construção simbólica do discurso e da prática da elite que se nutre do sangue do povo, como já escrevi outro dia: a rejeição dos padrões da cultura que aqui se formou, da forma de ser, falar, comer, dançar, rezar que se forjou a partir do encontro das tradições e saberes que vieram a dar nestas bandas sempre foi necessária para estabelecer uma divisão nítida entre o “nós” e o “eles”; para garantir privilégios, para manter a estrutura hierárquica e engessada do nosso ser social, para aplacar consciências até.

É claro que essas falas quando assim desavergonhadas de maiores pudores nos acentuam a urgência por que clamam as ruas deste país. Os mais inflamados, como meus manos Edu Goldenberg, Arthur Favela Tirone e Bruno Ribeiro, estão sempre a postos para descarregar suas poderosas baterias em defesa dos nossos brios, com as quais faço sempre coro. Mas eu que sou mais da turma de mestre Luiz Antônio Simas e não sou de acender nem cotoco de vela roubado pra defunto que não se dê ao respeito, acho mesmo que Luís da Câmara Cascudo, Villa-Lobos, Mário de Andrade, Darcy Ribeiro e alguns outros tantos brasileiros fundamentais já deram conta dessa gente. Nossa missão hoje, guardadas as devidíssimas, não é mais dura nem menos inglória, mas talvez mais sutil. Hoje há gente muito, mas muito mais perigosa a ser combatida.

São muito mais perigosos os que alardeiam seu amor pelo Carnaval, mas não fazem mais do que se apropriar do espaço da festa para promover seus interesses, vaidades e idiossincrasias rastaqüeras; as empresas que montam camarotes milionários cheios de “celebridades”, regados a bebida e comida que o povo não sonha experimentar, mas são incapazes de desembolsar cinco mil reais para financiar uma festa de rua, gratuita, para população brincar e ouvir a melhor música brasileira. São terrivelmente mais nocivos aqueles que defendem a presença da “música brasileira” nas rádios e televisões, mas não fazem senão entupir a população com suas porcarias enlatadas da pior qualidade, mantendo o esquema viciado de produção e divulgação da mesmice auto-replicante. Os que enaltecem as qualidades da “comida de boteco”, mas nada mais fazem que reproduzir bisonhos simulacros onde a cultura genuína das ruas e esquinas só entra após a devida e impiedosa pasteurização, livrando-a, juntamente com gorduras e carboidratos, do que tem de criativa e libertadora, informal e democrática. Os que se esgoelam “torcendo” pelo “Brasil-sil-sil-sil-sil”, mas ajudam a alimentar o esquema imoral do monopólio da informação e do entretenimento de massa, a enaltecer o “profissionalismo” que subjuga os interesses de uma nação sofrida e carente de alegria ao interesse desmedido de meia dúzia de modernos maganos e seus tumbeiros virtuais. Os que fazem do “nacionalismo” uma moda como todas as outras, a reproduzir os mesmíssimos padrões de alienação, submissão e opressão, perda de individualidade e liberdade.

Está na hora de metermos em seus devidos lugares aqueles que usurpam o nome do Brasil, a cultura de seu povo. Porque só é efetivamente nacional o que reafirma não só a singularidade do modo brasileiro de falar, dançar, cantar, comer, trabalhar, rezar, mas o direito desta singularidade se preservar, como condição da nossa existência livre enquanto povo e como indivíduos. Só serão populares de fato as práticas que permitam uma forma de existência despida das predeterminações formalizadas, onde só há espaço para a aceitação passiva, para a interação pré-ordenada; que manifestem o poder dos indivíduos de criar e recriar constantemente suas formas de existência, seus espaços de mediação e interação, sua maneira de ser e estar no mundo, junto com seus semelhantes. Só será popular o que reafirma a especificidade de uma cultura segundo a teia de ligações históricas que a torna tributária de determinadas tradições. Não serão nem nacionais nem populares, no sentido libertário e emancipador que queremos ressaltar, as práticas que reiterem as lógicas utilitaristas regidas pelos princípios da eficiência e da acumulação. Não à eficiência! Sim ao encantamento, à sutileza, à possibilidade! Não à acumulação! Sim ao compartilhamento do conhecimento e da experiência que libertam e emancipam o ser humano.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Carnaval

Augusto Frederico Schmidt


Foi só o que me ficou deste Carnaval:
A amargura enorme da morte do chefe do cordão "Mulher é triste o meu fim"
Ele era a alma carnavalesca da Estação do Encantado,
Empenhara-se completamente
Para que o seu cordão fosse o mais bonito na segunda-feira.

No trabalho, antes dos dias da folia chegarem, cerrava os olhos e via
A multidão pasma da Avenida aplaudindo com entusiasmo o seu cordão...
Ninguém terá amado jamais como ele amou as cores do "Mulher é triste o meu fim".
Era capaz de matar até em defesa do seu adorado cordão.

A chuva descia impiedosamente. O cordão vinha para a passeata na Avenida,
E foi quando o trem entrava na Estação Pedro II que ele, pingente, caiu sob as rodas
e
[morreu diante dos companheiros atônitos.

Mas eram grandes as despesas já feitas
E o cordão teve de ir sem ele...

Só ele não foi.
Ficou rígido estendido num mármore de necrotério.


Era a alma carnavalesca do Encantado: orai por ele!