segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Poética do Imaginário

João de Jesus Paes Loureiro


Vem ocorrendo na Amazônia a prevalência progressiva das relações fundadas na exploração do trabalho, no agravamento das desigualdades entre os homens, no desapossamento cultural. Emerge, no conjunto dessas mudanças, uma cultura de exclusão, que se nutre de uma racionalidade linear e prática, em lugar da cultura fundada no poético [...]. O caboclo é bruscamente ‘desalojado de seu presente cultural’, embora ainda fundado nas relações de um mundo que é seu, que, de repente, passa a parecer-lhe fictício, enquanto se lhe impõe uma espécie de outro mundo real e que ainda não é o seu. Mundo no qual todas as qualidades que constituem sua mundividência – fruição, tranqüilidade, devaneio, disponibilidade de tempo, o carpe diem de um viver cada momento – são considerados ingenuidade, incompetência, atraso e primitivismo. Passa a habitar um espaço fraturado, num tempo deslocado. E esse desalojamento de seu presente pela compulsão de um outro agora, considerado moderno, torna-se um desalojamento de si mesmo e da cultura.

O que se questiona, entretanto, não é a manutenção tradicionalista de uma ‘cultura do passado’, mas a necessidade da cultura amazônica, como expressão de um presente histórico, manter-se como processo, usufruindo as novas dimensões que o pluriculturalismo entreabre, procedendo suas trocas simbólicas com outras culturas, sem mutilações ou substituições, permanecendo respeitada e íntegra no ethos ético-estético que a constitui.

[...]


Tenho uma alma ribeirinha que percebe a essência do real que há no visível, por intermédio do imaginário. [...]

Todos os que nascemos à beira do rio Tocantis, em Abaetetuba – uma das cidades encantadas na geografia mágica do Pará Amazônico – temos certeza que a boiúna faz seu leito preferido no perau, sob a antiga ponte-grande da rua da frente e costuma sair pelo rio , ora como navio iluminado, ora para estirar-se, lânguida, ao longo da praia da ilha em frente, a ilha da Pacoca.

Sabemos, também, na minha terra de canaviais e sonho, que todo alguém que, no cair da tarde, se aproximar e cortar a ponta da cauda dessa cobra-grande mítica, desencantará a cidade submersa na aparência visível da cidade atual.

A cidade desencantada, mostrando-se então cidade real e visível, será o lugar ameno da felicidade transparente, da doçura de uma solidariedade espontânea, na harmonia nas relações dos homens entre si e usufruindo uma relação de bela harmonia com a natureza. Enfim, um lugar tranqüilo para a morada do homem.

Aprendi na cartilha cotidiana da cultura ribeirinha que alfabetizou meu ser caboclo, que toda realidade tem sempre submersa sua encantaria. Um luga ronde estão em potência todas as promessas de felicidade e devaneio.

Verdadeiramente, cada nova realidade é o desencantamento de uma irrealidade real imaginária nela antes encantada. É como se essa potência imaginal, que há nos seres, é que fizesse o real realmente existir.


(trechos do ensaio "Amazônia: 500 anos de poética do imaginário”, in João de Jesus PAES LOUREIRO - Obras Reunidas, vol. 3., São Paulo: Escrituras Editora, 2000, pp. 331-334)

Nenhum comentário:

Postar um comentário