sexta-feira, 16 de maio de 2014

O jogo


No tempo em que os bichos falavam e a noite era abrigo das almas solítárias e passantes, fora um grande andarilho das madrugadas. Não mais, por certo, violado o santuário, profanado o mistério, banalizado o sagrado. Mas aquela madrugada temporã espocou como epifania de pertencimentos julgados dormidos. E saiu; costurando as estranhezas com uma habilidade não se sabe onde mal preservada. Mas se foi e se deixou levar, quase obstinado, como a submeter as convicçções empoeiradas a uma espécie de experimentum crucis. Já se vê...

E as andanças todas, e as tomanças, os acertos e os desacertos, os houve todos, ao gosto do freguês. Mas haveremos de nos contentar com a cena final da madrugada. Era num butiquim. Dos mais ordinários – e não no bom sentido, para os que me entendem. Por qualquer estranho motivo, passava na tevê do bar o videoteipe de um antigo, antiquíssimo jogo de seu time. Épico. E como se o luzeiro fatídico o puxasse pelo braço do torpor onde boiava, viu-se tragado para uma dimensão outra. E torceu, como há muito não sucedia. E sofreu. Desesperou-se com os gols perdidos, secou os ataques adversários, xingou o juiz, completamente alheio a qualquer dissensão temporal. E não que a ignorasse, anote-se bem. Conhecia o jogo! (aquele jogo...!) Sabia perfeitamente, não só do resultado, mas da sucessão toda dos acontecidos, dos lances, dramas e polêmicas. Não obstante, envolvia-se barbaramente em cada jogada, absorto, transfigurado, dedicado à tarefa primordial de torcedor: torcer.

Pois a Copa do Mundo outra vez nos bate às portas. O clima pouco a pouco se instaura, os sentimentos começam a despertar, ainda que tão absolutamente diversos do que querem pintar os marqueteiros bancários e galvânicos com seus pincéis do desconhecimento das coisas simples, da gente comum; ainda que uns tantos em nome do país estejam diariamente passando atestados de sua disposição de se converter à mesmice mal-humorada do mundo, de abandonar o que ainda tínhamos de singular, de brejeiro, de macunaímico. Na madrugada que atravessamos, restos e ecos de uma noite recém-antiga perduram ante os sinais da iminente claridade destruidora das sutilezas todas urdidas por entre os caminhos esconsos. O furor solar do futebol ultracapitalista, mercantilizado e globalizado, convive uma vez mais com os ecos de uma noite mal dormida, de fantasmas ainda não retornados a seus covais: nacionalismos, tabus, paixões, rancores, sanhas conquistadoras, preconceitos, rivalidades, tribalismos, guerras.

Entre o torcedor solar dos oba-obas, eventos, camarotes, badalações e muito verde-amarelo fashion, de um lado, e o masoquismo noturno e cinzento dos monopolistas dos sentimentos ditos verdadeiros, de outro, paira a figura diáfana do nosso torcedor da madrugada. Sabedor de que a história não vai mudar – e que talvez nem tenha que mudar -, completamente envolvido e absorto por um jogo suspenso no tempo e no espaço, com vida própria e independente, que está sempre a se jogar. Que ao mesmo tempo é único e são todos. Cujo resultado, ainda que conhecido, desimporta significativamente.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Jair de Todos os Sambas




















Partiu ontem para a morada dos Ancestrais uma das minhas mais marcantes referências na arte de cantar: Jair Rodrigues. Mas apesar de um excepcional intérprete do samba, com grande domínio de ri...tmo, cadência e divisão, sem falar em sua extraordinária voz; apesar de ter consolidado sua imagem artística como “sambista” nas duas primeiras décadas de sua carreira; apesar de ter consagrado composições de importantíssimos e incontestáveis sambistas de estirpe como Dedé da Portela, Dida, Gracia do Salgueiro, Wilson Moreira, Nei Lopes, Niltinho Tristeza, Jorge Costa, Ary do Cavaco, Otacílio da Mangueira, Martinho da Vila, Zuzuca, os baianos Edil Pacheco, Tião Motorista e Ederaldo Gentil, Velha da Portela, Venâncio, Bala entre tantos e tantos outros; apesar de figura decisiva no meio musical nos anos 70, sobretudo, a influenciar a carreira de importantes nomes ligados umbilicalmente ao samba como Clara Nunes e Os Originais do Samba, só pra ficar nos mais evidentes; apesar de ter gravado diversos discos dedicados somente ao samba, alguns de grande qualidade, tanto no que respeita a repertório e autores, como no que tange a interpretações, arranjos, instrumentação e produto sonoro final; apesar de pessoalmente ser uma figura querida e respeitada quase unanimemente no meio musical... Apesar de todos esses e outros pesares, Jair há muito é tratado com monumental indiferença no nosso querido e muitas vezes estranho mundinho do samba “stricto sensu”. E com isso não me refiro aos coiós de mola que vivem por aí elaborando seus “index” pra cá, sapecando os seus “nihil obstat” pra lá, à guisa de Santo Ofício. Falo da ausência quase absoluta do repertório do paulista, tirando um ou outro clássico, em praticamente todas as rodas de samba pelas quais tenho passado nesses quase trinta anos.

 Sempre me perguntei pelos porquês. As hipóteses a se levantar são muitas, evidentemente, e talvez nenhuma esgote a questão. A mais simplória diria que Jair não fazia questão de se apresentar (socialmente, simbolicamente, visualmente etc.) como um sambista, nem fazia questão de cumprir os salamaleques, beija-mãos e bate-cabeças comuns no metiê que tão bem conhecemos. Outra poderia se reportar ao fato de que seu repertório desde sempre tenha transitado por uma gama mais vasta de gêneros, com o agravante de que o samba tenha perdido ao longo do tempo até mesmo a preponderância da primeira hora – e a derivada agravante: que isso se tenha dado mais por tendências gerais do mercado do que por uma opção essencialmente artística. Se fôssemos dar asas à síndrome de Ubaldo, poderíamos pensar que Jair nasceu paulista e assim se manteve, não tendo se “acariocado” como, gaúchos, mineiros, maranhenses e baianos ilustres, seus colegas e contemporâneos. Talvez um pouco de cada coisa, somado ao fato evidente de que as fronteiras culturais que muitas vezes impomos na busca fundamental da preservação de identidades e modos de vida, muitas vezes deixem exilados alguns concidadãos que nos teriam muito mais a dar e ensinar do que os que vivem-nos distribuindo abraços e continências.

 Afortunamente, a roda dos Inimigos do Batente também nisso se constituiu como exceção. Sempre cantamos um sem números de sambas “criados”, como se dizia antigamente, pelo grande Jair, desde os que se transformaram em clássicos absolutos como “Gotas de Veneno” (Wilson Moreira e Nei Lopes), ou “O ouro e a madeira” (Ederaldo Gentil) até pérolas quase desconhecidas como “As lavadeiras da favela” (Paulo Sette), passando por saborosos partidos como “Quero meu boi” (Gracia a Pedrinho do Borel) e “Viva a mulher da gente” (Umberto Silva e Curumba) – aliás, era um grande intérprete do partido alto. Por essa admiração, por essa referência, por essa presença constante na minha formação musical e na formação do repertório - e mais do que isso: na proposta de repertório! – dos Inimigos, sonhamos em tê-lo como um dos homenageados da série “O Samba na Roda: em Prosa & Verso”, que os Inimigos realizaram no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo em 2013, comemorativa dos dez anos do grupo. Infelizmente, por uma série de razões que não cabem aqui, não conseguimos tirar o sonho do travesseiro.

A homenagem virá, por certo, neste sábado, no Ó do Borogodó. Póstuma, muito infelizmente. Mas que perdurará enquanto nosso samba soar pelos caminhos todos de Ilu Ayê. Axé!