terça-feira, 11 de novembro de 2014

Cultura da boca pra fora

Aos amigos, Juca Ferreira; aos inimigos, Celso Jatene*


Quando eu defendo a tese de que há que se desenvolver uma consciência e uma responsabilidade cultural, assim como se desenvolveram a consciência e a responsabilidade ambientais, os tarefeiros da política acham que é abstração intelectual.

Quando eu digo que qualquer medida governamental - desde a concessão de uma licença, um alvará, até a formulação de políticas públicas, passando pela elaboração legislativa que disciplina a vida social – tenha que obrigatoriamente passar por uma avaliação de impacto cultural, os intelectuais flanantes por suas geleiras e altas montanhas não conseguem perceber a relevância e o alcance concreto dessa exigência.

Quando eu digo que é uma baita incoerência defender nas tribunas, seminários e congressos partidários os recursos para o ponto de cultura da ciranda-do-toco-fincado-da-tia-maricotinha-da-quarta-praia-depois-da-barra-do-riacho-fundo e não dar um mísero pio quando tramita o projeto de lei que obriga a fechar o butiquim – aqui no Centro de São Paulo, bem antes da quarta praia... - na hora que eles bem entendem, neguinho fica com cara de ué, sem (querer) entender o que tem a ver o cós com a cueca.

Não serei o primeiro a sacramentar que o futebol é muito possivelmente a mais importante ritualização coletiva do funcionamento, dos dilemas, da auto-representação, dos antagonismos etc. na sociedade de massas pós Revolução Industrial – fosse lá em seus primórdios de afirmações nacionalistas e sobrevivências grupais, seja cá no mundo eletrônico globalizado. Também não preciso me dar ao trabalho de descrever os desdobramentos simbólicos, psicológicos, sociais, antropológicos, políticos etc. dessa poderosa ritualização. Para quem, portanto, não entendeu que o futebol é muito mais do que o pode ser visto dentro das quatro linhas, indicaria o caminho da biblioteca. Se necessário, precedido do Caminho Suave.

Pois não é precisamente o antagonismo das torcidas o elemento de ritualização fundamental das tensões e conflitos insculpidos no mais profundo íntimo das sociedades modernas, de desigualdades reais aplainadas pela máscara da igualdade jurídica? Não é o enfrentamento das energias contrárias metáfora e simulacro das grandes dualidades que presidem inúmeras interpretações do universo, só não mais antigas que as representações circulares e esféricas que encarnam o equilíbrio desejável dessas contrariedades, não por acaso dominantes no grande teatro do futebol, da bola ao estádio? Não estarão também aí celebradas as incursões pelo território “inimigo”, elemento de mediação de forças naturais e sociais que remete a domínios compartilhados até mesmo com o mundo animal?

Mas para além de toda generalidade do jogo em si e dos elementos que o circunscrevem, na nossa aldeia em particular, as construções simbólicas e culturais que se desenvolveram a partir e para além do jogo, mais precisamente em torno do ato de “ir ao futebol” e do consectário “assistir o jogo do seu time”, são de uma riqueza e de uma complexidade que transcendem imensamente o que ali meramente se vê - que, não fosse o que acima se disse do futebol em geral, poder-se-ia até dizer simplório, em face de toda a delicadeza, brutalidade, força, sofreguidão, expressividade da construção dos “entornos” todos. Para quem, então, forjou boa parte de seus entendimentos sobre esse mundo nos interstícios de tempo e de espaço que separavam o transcorrer modorrento e linear da vida quotidiana da epifania atemporal de tantos pertencimentos que se dá no seio de um estádio de futebol, como pode ser entendido o risível conselho secretarial “assista o jogo pela tv”???

Para quem não pode compreendê-lo, por falta de vivência, não há aqui, infelizmente, biblioteca que dê jeito. Mas não sendo dado ao senhor secretário valer-se dessa escusa, homem de arquibancadas que foi, como compreender a falácia de seu discurso, senão como parte de um muitíssimo bem orquestrado movimento que, gestado nas catacumbas gélidas e escuras onde há muito e à sorrelfa conspiram a imprensa rastejante, os dirigentes corruptos e os demais manipuladores e beneficiários dos mais inconfessáveis interesses que circunscrevem a mercantilização desse patrimônio popular, agora adrede se lança ao ataque, indisfarçadamente, pelos mais variados flancos? Ou será coincidência que num interregno de três dias se ouçam em coro cuja afinação humilharia os meninos de Viena vozes tão distantes quanto manjadas como as de um Flávio Prado, de um Leandro Alexandre Pretzel Quessada, de um Paulo Nobre, somadas à do próprio Jatente?

É por isso que eu gostaria de ouvir o que têm a dizer meus companheiros de trincheira política, sobretudo em face da sensibilidade a essas questões que tem sido há tempos demonstrada por proeminentes figuras do nosso campo, como o Ministro dos Esportes, Aldo Rebelo e o recém eleito deputado Orlando Silva. Porque o Senhor Jatene é o responsável pelas políticas públicas para o esporte na Capital de São Paulo. Porque, afinal, nós fazemos ou não fazemos parte desta gestão? É só pra ocupar cargo? Ou não tem a ver o cós com a calça? Ou essa mentalidade não dará o tom , na hora em que for pra discutir pra valer, no âmbito do esporte, as questões da preservação identitária da Cidade, da afirmação das diversidades, da tolerância, da expressividade, da resistência cultural?

Está na hora, de uma vez por todas, do prefeito Fernando Haddad enfrentar as divisões que há no seu governo, a fim de que a inclinação política da gestão possa ficar mais clara e mais conforme tudo aquilo que o ouvimos afirmar, ao vivo e a cores, com as veias do pescoço saltadas, nos atos finais da campanha pela reeleição da Presidente Dilma. Até para a gente saber até onde é para acreditar. Senão vira o samba do crioulo doido: o que é da seara da Secretaria da Cultura, “ok, tudo bem, vamos discutir cultura em alto nível”. O resto, vá lidar com a tropa de choque da “base de sustentação”. Só que cultura, minha gente, não é só teatro, música e virada. Cultura é comer, morar, passear com a família, tomar cerveja, ir à igreja, enfeitar a casa, fazer a feira, reunir os amigos, assistir o futebol e quantos mais etcéteras puderem ser colecionados.

Se não formos nós a trazer para a pauta essas questões, companheiros, quem será?


* a propósito de declaração do Secretário de Esportes do Município de São Paulo, Celso Jatente, acerca da torcida única nos estádios.
(Texto publicado originalmente em Turiassu1840)