terça-feira, 25 de novembro de 2008

Parece atual?



Degradação do Judiciário


Dalmo de Abreu Dallari


Nenhum Estado moderno pode ser considerado democrático e civilizado se não tiver um Poder Judiciário independente e imparcial, que tome por parâmetro máximo a Constituição e que tenha condições efetivas para impedir arbitrariedades e corrupção, assegurando, desse modo, os direitos consagrados nos dispositivos constitucionais.

Sem o respeito aos direitos e aos órgãos e instituições encarregados de protegê-los, o que resta é a lei do mais forte, do mais atrevido, do mais astucioso, do mais oportunista, do mais demagogo, do mais distanciado da ética.

Essas considerações, que apenas reproduzem e sintetizam o que tem sido afirmado e reafirmado por todos os teóricos do Estado democrático de Direito, são necessárias e oportunas em face da notícia de que o presidente da República, com afoiteza e imprudência muito estranhas, encaminhou ao Senado uma indicação para membro do Supremo Tribunal Federal, que pode ser considerada verdadeira declaração de guerra do Poder Executivo federal ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, à Ordem dos Advogados do Brasil e a toda a comunidade jurídica.

Se essa indicação vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional. Por isso é necessário chamar a atenção para alguns fatos graves, a fim de que o povo e a imprensa fiquem vigilantes e exijam das autoridades o cumprimento rigoroso e honesto de suas atribuições constitucionais, com a firmeza e transparência indispensáveis num sistema democrático.

Segundo vem sendo divulgado por vários órgãos da imprensa, estaria sendo montada uma grande operação para anular o Supremo Tribunal Federal, tornando-o completamente submisso ao atual chefe do Executivo, mesmo depois do término de seu mandato. Um sinal dessa investida seria a indicação, agora concretizada, do atual advogado-geral da União, Gilmar Mendes, alto funcionário subordinado ao presidente da República, para a próxima vaga na Suprema Corte. Além da estranha afoiteza do presidente -pois a indicação foi noticiada antes que se formalizasse a abertura da vaga-, o nome indicado está longe de preencher os requisitos necessários para que alguém seja membro da mais alta corte do país.

É oportuno lembrar que o STF dá a última palavra sobre a constitucionalidade das leis e dos atos das autoridades públicas e terá papel fundamental na promoção da responsabilidade do presidente da República pela prática de ilegalidades e corrupção.

É importante assinalar que aquele alto funcionário do Executivo especializou-se em "inventar" soluções jurídicas no interesse do governo. Ele foi assessor muito próximo do ex-presidente Collor, que nunca se notabilizou pelo respeito ao direito. Já no governo Fernando Henrique, o mesmo dr. Gilmar Mendes, que pertence ao Ministério Público da União, aparece assessorando o ministro da Justiça Nelson Jobim, na tentativa de anular a demarcação de áreas indígenas. Alegando inconstitucionalidade, duas vezes negada pelo STF, "inventaram" uma tese jurídica, que serviu de base para um decreto do presidente Fernando Henrique revogando o decreto em que se baseavam as demarcações. Mais recentemente, o advogado-geral da União, derrotado no Judiciário em outro caso, recomendou aos órgãos da administração que não cumprissem decisões judiciais.

Medidas desse tipo, propostas e adotadas por sugestão do advogado-geral da União, muitas vezes eram claramente inconstitucionais e deram fundamento para a concessão de liminares e decisões de juízes e tribunais, contra atos de autoridades federais.
Indignado com essas derrotas judiciais, o dr. Gilmar Mendes fez inúmeros pronunciamentos pela imprensa, agredindo grosseiramente juízes e tribunais, o que culminou com sua afirmação textual de que o sistema judiciário brasileiro é um "manicômio judiciário".

Obviamente isso ofendeu gravemente a todos os juízes brasileiros ciosos de sua dignidade, o que ficou claramente expresso em artigo publicado no "Informe", veículo de divulgação do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (edição 107, dezembro de 2001). Num texto sereno e objetivo, significativamente intitulado "Manicômio Judiciário" e assinado pelo presidente daquele tribunal, observa-se que "não são decisões injustas que causam a irritação, a iracúndia, a irritabilidade do advogado-geral da União, mas as decisões contrárias às medidas do Poder Executivo".
E não faltaram injúrias aos advogados, pois, na opinião do dr. Gilmar Mendes, toda liminar concedida contra ato do governo federal é produto de conluio corrupto entre advogados e juízes, sócios na "indústria de liminares".

A par desse desrespeito pelas instituições jurídicas, existe mais um problema ético. Revelou a revista "Época" (22/4/ 02, pág. 40) que a chefia da Advocacia Geral da União, isso é, o dr. Gilmar Mendes, pagou R$ 32.400 ao Instituto Brasiliense de Direito Público -do qual o mesmo dr. Gilmar Mendes é um dos proprietários- para que seus subordinados lá fizessem cursos. Isso é contrário à ética e à probidade administrativa, estando muito longe de se enquadrar na "reputação ilibada", exigida pelo artigo 101 da Constituição, para que alguém integre o Supremo.

A comunidade jurídica sabe quem é o indicado e não pode assistir calada e submissa à consumação dessa escolha notoriamente inadequada, contribuindo, com sua omissão, para que a arguição pública do candidato pelo Senado, prevista no artigo 52 da Constituição, seja apenas uma simulação ou "ação entre amigos". É assim que se degradam as instituições e se corrompem os fundamentos da ordem constitucional democrática.



(publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição de 08/05/2002, p. 3 - o liame é para o site do jornal, com acesso só para assinantes)

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Nós e eles


Amanheci, como a maioria dos bípedes implumados que habita este inusitado planeta, um tanto comovido, um tanto perplexo com a surpresa mais anunciada deste século, a consagração eleitoral do negro Barack Obama. A expectativa criada pelas pesquisas não teve o condão de mitigar uma certa incredulidade geral que se sentiu pelas mais recônditas partes do globo; pelo que de bom a notícia possa vir a trazer - de um lugar onde o mundo acostumou-se, nos últimos anos e sempre, em geral, a esperar as piores barbaridades engendradas pelo gênio – e pelo leve tempero de realismo fantástico à moda estadunidense.

E não publicaria este texto, como de resto tantos outros, não fosse a delicada surpresa sentimental que tive ao ler o texto do fraterno Bruno Ribeiro sobre o sorriso de Obama. Porque eu achava que só eu, para além de todas as expectativas e importâncias e simbolismos, só eu verdadeiramente me enternecia com a lata do senador democrata. E achava isso porque sei bem sabidinho, lá no fundo, que minha ternura vem do fato dele lembrar, inapelavelmente, meu querido e saudosíssimo Vô Dante. Mas eis que vai lá o meu irmãozinho dizendo que encontrou o bom Brilhantina num butiquim campineiro (não conheço o Brilhantina, notem, mas dadas as circunstâncias e a maneira como o velho Bruno no-lo apresenta, dispensa-se para mim a necessidade de quaisquer outras credenciais) e o negrão lhe confidencia que o novo presidente é a cara do seu irmão Jorge! Vejam vocês...

Então, minha gente, peguei-me a pensar que, na verdade, Barack Obama parece mesmo é com a gente. Com a nossa gente, digo. Não só pelo fato de ter estampada no fenótipo uma brejeirice mestiça que nos é tão familiar, mas sobretudo por contrariar em todos os sentidos o estereótipo daquilo que aprendemos todos nós da “periferia do sistema” (deve fazer uns 30 anos que ninguém usa essa expressão...) a identificar como o não-nós: a ditadura implacável dos padrões e interesses deles, a partir do pós-guerra, doesse a quem doesse, passasse por cima do que tivesse que passar, a deixar cicatrizes e gostos amargos pelo mundo afora, sempre com caras e discursos bem parecidos, de Eike a Bush, de Kennedy a Clinton, com as previsíveis variações sobre um mesmo tema

Obama tem outra cara, outro sorriso. Obama tem outros olhos e outro discurso. E não poderia ser diferente, porque tem outra origem e sobretudo outra história. Pergunto-me se teria a mesma brisa que soprou pelas bandas meridionais do continente, consagrando operários-paus-de-arara, cocaleiros e líderes indígenas, a despeito da contrariedade da meia-dúzia mandante de sempre, bafejado as terras ao norte do Rio Grande? E o que mais intriga meu quieto e observante coração: será lá essa inegável redenção simbólica tão prenhe de insuficiências como cá?

Sei que estás em festa, pá
Fico contente...


Guardadas as devidas, gostaria imensamente, desta vez, de não precisarmos vir a reescrever a letra da canção.