segunda-feira, 30 de março de 2015

Malhação do Judas Carioca

João Antônio*


A tradição, bem portuguesa, foi adotada no Brasil colonial e é coisa bem nossa. Teve momentos mais gloriosos em que a polícia permitia usar nomes de políticos, delegados ou ministros. E, apesar do progresso, nos subúrbios cariocas, a malhação do Judas continua viva, firme, principalmente para a molecada e a rapaziada do Largo da Cancela, da Barreira do Vasco e do Jacarezinho. E já que nomes importantes não podem ser malhados, a moçada fere, desce o pau e mete fogo nos amores, futricos, fofocas e mazelas dos vizinhos e das vizinhas.

Nem chuva renitente, nem camburão de Polícia, nem abaixo-assinado impedem a malhação do Judas no Sábado da Aleluia nos lugares em que o costume é tradição viva na Zona Norte. A rapaziada trata de remexer, com espírito e humor, muita vez expresso em palavrões e licenciosidade, a vida e o amargo da vida suburbana. Por uma coincidência fotogênica, o Rio esquecido, pobre, ignorante salta para os corpos dos Judas.

Assim, mazelas de maridos traídos, prostituição levada ou flagrada dentro dos lares, desmandos do jogo do bicho, falsas virgens virtuosas e homossexuais confessos ou incubados vêm a público nos cartazes, enquanto a molecada miúda, numerosa, peitos nus debaixo de sol ou de chuva e paus na mão, aguarda o momento da malhação e do atear fogo.



SILÊNCIO NO LARGO DA CANCELA

A molecadinha e a rapaziada de São Cristóvão, no Largo da Cancela assistem constrangidas, decepcionadas, ali por volta das nove e meia de Sábado da Aleluia, à chegada encabuladora do camburão que limpa, rapa, retira seus judas já tradicionais do largo e obriga a moçada a catar outros tantos.

Mesmo tangida pela polícia que age em nome da ordem e do respeito, a garotada está disposta a continuar a tradição e arrasta seus judas e testamentos (inscrições) para a Rua da Liberdade, ruela próxima ao Largo da Cancela. São seis-sete judas e acabam executados a pau, palavrada e fogo na marca das dez da manhã, que ninguém espera o meio-dia para o pau comer.

Mãos gordas, zelosas e temerosas impedem na ruela chamada da Liberdade que os filhos menores – pelo menos os menorzinhos de seis anos – participem do movimento que ocupa todos e envolve donos de botequim, homens que escrevem jogo do bicho, meninos, mocinhas, rapazes e velhos curiosos, bisbilhoteiros, sorridentes ou cooperantes.

O pequeno mundo da rua da Liberdade, seu ambiente de futricadas, fofocas, pinimbas e amores vai sendo passado a limpo, sem falsas peias e maiores delongas pela crônica dos testamentos penduradas em cartazes nos judas. A vida enxerida de Gracinha, perigosa de Carioca e matreira do escrevente de bicho Arerê vão sendo expostas em português do morro, palavras licenciosas e objetivas. Os tipos mais populares são ridicularizados, os mais calados também. Poucos vão escapar ao testamento. Desmandos do bicheiro, da esposa infiel, do gabola, do mulherengo, do falso tímido e do homossexual dissimulado pelo bom comportamento são pintados cruamente.

A Zona Norte acontece em preto-e-branco. Rapazes e mocinhas, íntimos da vida suburbana, deliciam-se com os ditos infamantes. Mães, pais e esposas atingidas estão fulos e garotos, ás vintenas, mesmo sem entender, fazem um clima de polvorosa na rua comprida e sem largura, ruela, que é a da Liberdade, em São Cristóvão.

Judas pendurados e enforcados botam as mágoas do povo pra fora e ouvem os xingos do motorista de caminhão que não pode atravessar a rua com tanto movimento.

Gentes mais antigas comentam que, de ano pra ano, o judas está mais fraco, a polícia dá em cima, procurando evitar que eles ofendam as autoridades. Antigamente era melhor, segundo uma velha senhora que segura o seu neto para que ele não caia na gandaia na Rua da Liberdade:

‒ A rapaziada mexia com todo mundo e com gente grossa. Uma vez, me lembro, fizeram um judas para o Venâncio Veloso, das Casas da Banha e outra para o delegado Padilha. Hoje ninguém mais mexe com eles, só fica bulindo é com o pessoal daqui mesmo, principalmente com a vida das mocinhas e das mulheres.

E, enquanto o Largo da Cancela não ferve, vigiado pelas idas e vindas do camburão, a Rua da Liberdade explode com palavrões e rumor. E pára o movimento doméstico de manhã de sábado. Mães vêm para as janelas, a rapaziada de bermuda sai à rua e até o ponto do bicho tem de parar.

Alguns testamentos são praticamente escritos com palavrões claros e francos. Outros, mais leves, como o do Arerê que se vê obrigado, em pessoa, a assistir a malhação do seu próprio Judas:

TESTAMENTO DO ARERÊ

1 ‒ O meu pique (corrida) para o Oto.
2 ‒ A minha calça para o João.
3 ‒Minha blusa para o Luís Orlando.
4 ‒ Minha cabeça para o Miguel.
5 ‒ Minha casa no morro para o Carioca.
6 ‒ Meu sapato para o Luisinho.

Já o Testamento de Glorinha, pregado a uma parede, tem uns quinze itens e dedica partes íntimas do corpo a este e aquele e se refere a certas qualidades de forma aspada, como “donzela” e “virgindade”, 'porta-seios” e por aí assim. O Testamento de Carioca revela dois homossexuais incubados e sem coragem para a confissão.



MASSACRE NA BARREIRA DO VASCO

Pendurado a um poste defronte a uma companhia de armazéns gerais, um judas-mulher. Fantasia de mulher, bolsinha de couro, e o resto do componente de colares, embelecos, penduricalhos. Expõe palavrões infamantes e xingos, onde as palavras “pegadeira” e “piranha” são as mais levez. E tome humor carioca.

Mulheres faveladas se aproximam, enfiam-se no meio da molecada magra e maltrapilha, fuxicam a vida íntima das vizinhas, conhecidas, desconhecidas e rivais. Sem quê, nem pra quê, os palavrões voam. Um ressentimento:

‒ Eu queria pegar quem escreveu isso.

Mas são dez e meia e a malhação começa. Depois das pauladas, a cabos de vassoura, rápido começa o atear fogo. O movimento da Rua Ricardo Machado é interrompido, debaixo de pau. A bolsa de couro da judas-mulher voa longe e, alguém disfarçadamente, a carrega, a manda, a enruste, no meio da confusão. À porta do botequim, charlando e rindo, homens bebericam cachaça e cerveja.



Fogo, pau e água

Muita coisa leva o povo da Zona Norte a viver já no passado. Até o judas de Sábado da Aleluia, que já foi melhor, mais intenso, a rapaziada terrível mexendo com todo mundo, criando confusão, prisões, brigas e até mortes. Estava disposta a tudo nas inscrições. Na palavra dos antigos:

‒ Só não chamavam de santo porque o cara não era mesmo.

De resto, a vida pública, principalmente a polícia, os atacadistas e a política eram achincalhadas. O esculacho colocou vários governadores e delegados, enquanto judas, sentados em latrinas sórdidas ou de penico na mão.

Mas é a garotada do Jacarezinho, unida e conluiada, a que mantém mais aceso o judas, mesmo em tempos de bom comportamento. Eles aprecem muito enfeitados e grotescos, além de muitos nas ruas General Belfort, Dr. Manoel Cotrim e, especialmente, num quegê, o da Rua Teixeira Leite.

Sete letreiros viperinos, vexatórios, franxos e chulos enfeitam as paredes de uma colchoaria. Mais de trinta moleques enfiam-se assanhados na multidão de curiosos, atiçadores ou basbaques. Os homens, na maioria pouco atingidos, riem do ataque ferino e achatante contra as mulheres nos testamentos ‒ faladeiras, futriqueiras, “cunhadas”, “madrinhas”, “titias”, “comadres”, infiéis, virgens falsas, viciadas em jogo do bicho e, principalmente, as “candinhas”. É o mundo pobre e de baixo nível dos subúrbios cariocas gritando em preto-e-branco.

Ninguém escapa. Sentado numa latrina em plena calçada, o judas da Rua Teixeira Leite, tem às suas costas os sete letreiros que descarnam, sem restrições e economias, os traços mais vivos das intimidades da região. Praticamente tudo é mexido e remexido:

Alô, dona Candinha, que bicho deu? Os Imortais do Bairro; Carlinhos do Mar; Wilson dos Vidros; Os Convencidos; a Colchoaria do Diabo; As Perfeições Furadas; Restaurante Chic: a pedida é alta e a comida é pouca”.

Sentado na latrina, o judas tem uma inscrição no peito, diz mandado por quem e a que veio: “Homenagem aos comerciantes de Jacaré”.

A cena é ridícula, grotesca, mas tensa. A tal dona Candinha das inscrições do judas vem passando, vestido comprido e fora de moda, vermelho, mexendo-se barriguda, atarracada, baixota de óculos e cabelos tingidos de acaju. Não tem como fugir, vê-se obrigada a ler o cartaz. Fula nas pernas cambaias e em sapatos de saltos comidos, atrás dos óculos, ele procura, atentamente, o autor da infâmia. Um gaiato, querendo acalmá-la, recomenda:

‒ Calma, dona candinha. Aqui em Jacaré tem muitas Candinhas. Pode ser que não seja a senhora. Não leve a rapaziada a mal.

De mãos na cintura, a portuguesa dona do botequim, abespinha-se com a molecada que dança em frente ao judas. Os rapazes gozam a situação. Letras grandes, está no testamento do judas:

Alô, pessoal! Façam suas apostas. Qual dos dois bares vai falir primeiro: Dona Maria ou seu Antônio?”

Logo depois, o testamento, alfinetando a vida da vizinhança:

1 ‒ Meu cabelo para o Jorge Gordo. Um de meus olhos para o Ricardo que é cego e só falta a bengala.
2 ‒ A camisa para o Galileu, que só tem uma.
3 – A gravata para o malandro de Jacaré, o Isaltino Kibon.
4 – A calça para o Zé Mota, o novo vagabundo do bairro.

Dona Maria, portuguesa do botequim, zangada, braços cruzados no peito, vê o judas sendo queimado e se vinga. Fala para as vizinhas lavadeiras:

– Deixa estar. Com essas fagulhas, quem tem roupa no varal está estrepada.



* in Malhação do Judas Carioca, 2ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976, pp. 113-118

segunda-feira, 2 de março de 2015

A escola e o samba


De tempos para cá, todos os anos nessa época pós-carnavalesca, de certo soçobrados pelas vicissitudes que reiteradamente projetam interrogações sobre o futuro das escolas de samba, tenho observado alguns espíritos inquietarem-se, por tabela, com indagações acerca do futuro do samba, em si mesmo, não somente como gênero musical, mas como depositário do cabedal sabidamente inestimável de valores, símbolos, visões de mundo, sabedorias, elos, costumes, posturas e sociabilidades. Não pretendo aqui reinventar a roda, nem ensinar os curas a rezarem a missa, até porque à tarefa já se dedicaram canetas bem mais abalizadas – como mestre Nei Lopes em seu indispensável “Sambeabá – o samba que não se aprende na escola” (Rio de Janeiro: Folha Seca/ Casa da Palavra, 2003); mas o fato é que se o samba (tal como mais comumente o conhecemos no meio urbano, a partir dos anos 1930) e as escolas foram gerados e gestados como gêmeos univitelinos a partir e em função de uma necessidade e uma proposta específicas, os caminhos que percorreram foram, desde muito cedo, independentes.

Em meados dos anos 20, alguns núcleos criadores onde florescia o samba, foram capazes de identificar, por um lado, a disseminação e aceitação quase espontâneas das expressões musicais albergadas sob o espectro do “samba” pelas massas da sociedade carioca, sobretudo durante o Carnaval; por outro, a possibilidade privilegiada de valer-se do relaxamento das fronteiras culturais e do aparato repressivo a ela correlato durante os dias de folia – fenômeno que repete a trajetória de um sem número de criações populares originalmente não associadas ao Carnaval (como maracatus, afoxês, cavalos-marinhos, caboclinhos, bois, entre outros) , mas que sendo expressões de estratos sociais marginalizados, normalmente derivadas de matrizes culturais indígenas ou africanas, aproveitavam-se da “baixa da guarda” para transpor os limites geográficos e sociais de seus núcleos originários (1) (fossem a zona rural, os morros, os terreiros, quilombos etc.) - para ganhar as ruas, nem que fosse por dois ou três dias. Surge assim a necessidade/proposta de adaptar uma expressão musical (mais estrito seria uma gama de expressões de traços comuns) corrente entre as camadas populares do Rio de Janeiro do princípio do século XX – o samba - à forma processional que caracterizava as principais expressões do Carnaval carioca desde o quarto final do século anterior, notadamente os ranchos e as grandes sociedades.

A estratégia cultural genialmente vislumbrada pelos “inventores” do samba “moderno” - quais sejam os sambistas geográfica e culturalmente ligado ao núcleo do Largo do Estácio, na cidade do Rio de Janeiro, e seus arredores – foi, pois, mimetizar a forma de organização das agremiações carnavalescas então mais eminentes (ranchos e sociedades) e sua correlata maneira de ganhar as ruas durante o Carnaval: o desfile, o cortejo. Um problema, entretanto, haveria de ser resolvido: diferentemente dos folguedos de origem européia, que traziam a forma processional em sua herança “genética”, o samba constituiu-se como um divertimento umbilicalmente ligado à forma de “roda”. Muito mais do que um detalhe antropológico, tratava-se de um problema musical: as células rítmicas características das formas do samba até então mais disseminadas não se prestavam à evolução em forma de desfile, seja a que modernamente está mais próxima do que conhecemos como partido alto (caracteristicamente destinada ao canto e à dança no âmbito da roda), seja a versão “amaxixada”, ensejadora de volteios e floreados próprios dos casais em pistas de dança limitadas, escuras e apertadas. A mudança do padrão rítmico do samba a partir do núcleo estaciano, sobre a qual muita tinta já se verteu, é o produto dessa necessidade de adaptação, fruto, como destacado, do anseio de se valer do Carnaval para levar o samba além das fronteiras dos morros, terreiros e dos quintais das casas da Zona Portuária. Não é de se estranhar, assim, que essa mudança seja concomitante e diretamente ligada à invenção e incorporação de dois instrumentos fundamentais para a nova conformação: o surdo – responsável pelo pulso mais “marcial”, próprio para uniformizar a cadência do desfile – e o tamborim, na tarefa de manutenção da maleabilidade da divisão rítmica nos contratempos.

O sucesso da “solução” estaciana para a adaptação do samba à necessidade do desfile em forma de cortejo é despiciendo frisar. Seus principais subprodutos foram, de um lado, a consolidação da forma moderna do samba, que a partir de então ganhou, não só as ruas, mas os grandes meios de reprodução então em voga – o rádio e o disco – e, a partir daí, pôde arvorar-se em voz privilegiada da expressão musical nacional, dentro e fora de nossas fronteiras. De outro, as “escolas de samba”, por sua vez, em pouco tempo levariam a cabo os processos de adaptação (como por exemplo, a paulatina, mas relativamente rápida, substituição dos sambas de refrão, de temas livres e com as segundas partes improvisadas, pelo samba único, “de enredo”, composto adrede sobre um tema proposto) e absorção dos elementos estéticos dos ranchos e sociedades para ascenderem, em menos de uma década, ao posto de expressão mais destacada do Carnaval carioca.

Dialeticamente, porém, postulo aqui uma dimensão de fracasso do projeto, não tão comumente salientada. Curiosamente, a Deixa Falar, escola de samba fundada pelo núcleo de sambistas do Estácio, desfilou apenas um carnaval nessa condição; em seguida transformou-se em rancho, desfilando mais um ou dois anos, até desaparecer. Os motivos dessa efemeridade não são claros. Teriam os visionários criadores capitaneados por Ismael Silva, Nilton Bastos, Mano Rubem, Mano Edgar, Alcebíades Barcelos e Armando Marçal decepcionado-se com o resultado obtido? Se sim, qual a natureza dessa decepção? Ou seus espíritos avançados puderam antever os resultados estéticos e culturais que a transposição “artificial” do samba para além de suas fronteiras teria sobre o próprio gênero e sobre seu significado no âmbito dos núcleos populacionais a partir dos quais se criara? Perguntas sem respostas. A despeito da fórmula ter-se em pouquíssimo tempo espalhado pelos redutos criadores de samba na cidade do Rio de Janeiro, creio que o propalado “sucesso” da utilização da célula rítmica do samba para um desfile em cortejo merece alguma objeção. Musicalmente, o grande compositor Angenor de Oliveira, o Cartola, um dos responsáveis pela adoção pelos carnavalescos do Morro da Mangueira e adjacências do padrão estaciano de organização e desfile, ainda em finais dos anos 20, já na década de 1950 se afastava dos desfiles das escolas de samba considerando não ser o padrão musical apresentado por essas agremiações e condizentes com as características primordiais do gênero; vale dizer: a forma musical que foi levada a cabo pelas escolas décadas afora, malgrado tenha possibilitado que desfilassem em forma de cortejo, segundo o projeto inicial, não conseguiu manter os padrões estéticos que fizeram do samba... Samba! Durezas conceituais à parte - e sem absolutamente desconsiderar, tanto a imensidão do tesouro musical forjado no seio das escolas de samba (durante as décadas de 50 e 60, inclusive e, talvez, principalmente), como a grandeza da expressão artística coletiva consubstanciada na realização de seus desfiles até os dias que vão - a antevisão do mestre Cartola erigir-se-ia em fato insofismável quatro décadas mais tarde, quando paulatinamente a batida do samba iria se afeiçoar à da marcha (cadência, por excelência, dos cortejos) até a aceleração do pulso destruir completamente a possibilidade da síncopa que distingue ritmicamente o gênero acima de qualquer outra característica. Culturalmente, a transformação do significado das escolas de samba no âmbito dos estratos populacionais que as geraram, é matéria que, além de extensamente tratada por gente de melhor gabarito, refoge aos objetivos do que aqui se quer demonstrar.

E o que se quer demonstrar, na verdade, é que, malgrado tenha sido forjado especificamente para atender às expectativas de alguns sambistas de entabularem um cortejo ao som da expressão musical que mais fielmente representava seu universo - não só esteticamente, mas como expressão de seus valores, visões de mundo, códigos de conduta, sabedorias, singularidades, pertencimentos, ancestralidades etc. - o samba urbano de padrão estaciano trilhou caminhos de afirmação desses traços culturais independentemente do sucesso-fracasso relativos do projeto representado pelas escolas de samba. Enquanto a viabilidade desse, especificamente em relação ao Carnaval e aos desfiles, se mostrou instável e passível de objeções desde muito cedo e ao longo dessas oito décadas, a cepa musical dele brotada enraizou-se, cresceu, ramificou pelos quatro cantos da Nação e encarregou-se de carrear consigo todo o cabedal cultural que constava em sua semente. Jamais deixou de se nutrir e florescer no seio do povo afro-descendente que o gerou, no seio das comunidades populares, juntamente e/ou a despeito da organização das escolas, ora a elas se misturando, ora resistindo; ora as tangenciando, ora delas se afastando. Concomitantemente, como assinalado, cruzou as fronteiras dos estratos populares, ganhou o rádio e o disco, ignorando distinções sócio-econômicas, disputando nacionalmente a hegemonia estética ombro-a-ombro com a música massificada pelo peso da indústria cultural transnacional, a despeito da brutal desigualdade de recursos. “Roupa folgada de vestir” em meio à imensa diversidade regional brasileira, arrebatou gostos, cativou corações, ganhou sotaques e cores locais, por todos os rincões do Brasil, incorporando influências que o enriqueceram e revitalizaram. Serviu de elemento catalizador para a recriação da roda (que o gerara) como espaço de reprodução da vida social, do encontro, da troca, da festa, da celebração, do trabalho. Essa, por sua vez, revisitada, reinventada, qual ventre fecundado, pôde servir de abrigo para sua herança assim viva até hoje.

Nutro grande veneração pela força cultural que gerou, concomitantemente, o samba moderno e a escola de samba, cabedal de meus ancestrais. Respeito profundamente a história gloriosa das escolas de samba, enquanto expressão sócio-cultural ligada precipuamente ao Carnaval. Reconheço a grandeza da expressão artística que até hoje encerram seus desfiles, de natureza eminentemente coletiva e em grande parte ainda de feição popular (senão na concepção/conformação, ainda, pelo menos, na realização), tendo partilhado durante muito tempo do fascínio pela grandiosidade do espetáculo produzido. Entretanto, malgrado a ligação seminal, como gêmeos separados no berço, as sendas percorridas pelas escolas, de um lado, e o samba propriamente dito, de outro, estão dissociadas praticamente desde sua origem. Ambos ganharam o mundo. Ambos, nesse caminho, transformam o país, transformaram-se com ele, ganharam, perderam, incorporaram e foram incorporados, seduziram e foram seduzidos, apanharam, subverteram. Ambos geraram sociabilidades singulares. Ousaram, mas a proporção da conta apresentada pela História foi desigual. A escola, sobremaneira mais onerada pelo fardo do projeto que a gerou, caminhou sempre e até hoje sob o peso do magno imperativo do desfile: avançar, avançar, avançar. As sociabilidades que se construíram ao seu redor, por decorrência, carregam igualmente o peso da objetividade, da eficiência, do engajamento, da hierarquia. Seu gêmeo, depositário de um jugo menos opressivo, a despeito dos descaminhos todos, menos obstrito a avançar, logrou manter à sua disposição o recurso do gingado, do volteio, do recuo, do simulacro, da cadência de engano – pelo que as sociabilidades a si correlatas são mais maleáveis, mais fluidas, reinventam-se mais facilmente. Disso se vale para resguardar o cabedal que lhe foi confiado. Respeita sua irmã, com ela conviveu, mais ou menos proximamente; mas dela nunca dependeu nem nunca dependerá. Para nada. Assim “o samba vai seguindo”, “balança, porém não cai”, com a licença do mestre Luiz Grande. Os espíritos soçobrados podem se aquietar.


1 Essa transposição de fronteiras, seja no âmbito estritamente geográfico, seja no sentido sócio-cultural, é tão natural no anseio como contraditória no resultado. A possibilidade de exibir formas expressivas de originalidade e beleza indiscutíveis sempre sinalizou para seus estratos produtores, socialmente marginalizados, horizontes possíveis, senão de integração, ao menos de reconhecimento e respeitabilidade. A contradição emergirá do deslocamento de cenário – e, consequentemente, de todo o aparato referencial simbólico, de códigos de conduta, valorações, parâmetros estéticos etc. - que exporá aquelas formas forjadas em contextos bastante específicos a regramentos, expectativas e julgamentos pautados por valores extrínsecos. E o resultado poderá variar num arco que vai da não aceitação pura e simples à absorção total e subsunção à lógica geral da ordem do poder e da economia.