sexta-feira, 30 de março de 2007

Garoto de pobre

Geraldo Filme


Garoto de pobre só pode estudar
Em escola de samba
Ou andar pelas ruas
Jogado ao léu
Implorando a bondade dos homens
Aguardando a justiça do céu
Seu lápis é sua baqueta
Que bate o seu tamborim
Ninguém olha esse coitado,
Senhor, qual será o seu fim?

Na escola de samba da vida
É onde ele vai estudar
Ensaia o ano inteiro
Tem provas no carnaval
Ele desce dos morros
Ele vem das vilas
E chega à Cidade
Alegra os turistas
Recebe os aplausos da sociedade
Se criar novos passos
Criar nova ginga
Ou compor um samba:
Está aprovado,
Recebe o garoto o diploma de bamba!

Na escola de samba
Aprende a rir
Aprende a sofrer
Aprende a chorar
Mas não sabe ler, doutor,
Seu destino qual será?

Na escola de samba
Aprende a rir
Aprende a sofrer
Aprende a chorar
Mas não sabe ler, doutor,
Seu destino qual será?

quinta-feira, 29 de março de 2007

Amores de balcão


Aviso, de antemão, que este texto é para iniciados. E o alerta é, como me foi ensinado, em prol dos incautos. Porque o mistério iniciático não é, como pensa o vulgo, nem recompensa, nem privilégio. É proteção para aqueles que não tem condições de segurar o tranco. Feito o aviso, sigo.

Porque como explicar para um neófito o que representa o butiquim na vida de um cachaceiro de fé? Podemos recorrer às analogias, é claro. Deus Nosso Senhor, por exemplo, quando nos quis demonstrar o quão grande era por nós o seu amor eterno e infinito, deu-nos a conhecê-lo através da maior experiência concreta de amor que o ser mortal pode experimentar. Assim, ensinou-nos a chamá-lo de ... Pai!. E eu só fui entender isso, é claro, quando a primeira criaturinha virou pra mim os olhos pidões de jabuticaba e e balbuciou... “Pá!”

Sejamos, pois, condescendentes com os novatos do pedaço - eis que me veio outro dia a informação (pouco crível, por óbvio) que este espaço seria freqüentado por menores de trinta anos. Vou tentar ser didático. Sabe aquele sentimento que te domina toda vez que você senta pra conversar, ainda que sem a menor chance, com a garota (no feminino por questões práticas, visto que por estas plagas aparece uma mulher a cada ano e meio...) disparadamente mais bonita do colégio? A de que você está no lugar certo, na hora certa e um abraço pro mundo? Sabe também quando aquele teu colega te convida pra assistir o ensaio da banda de garagem que ele montou semana passada, certo do caminho do estrelato? Que o lugar é errado, não importa a hora? Então... Só que, com o tempo, a gente vai experimentando demais a diferença entre o (muito pouco) que é bom pra valer, o que é apenas passável (boa parte) e o oceano imenso de tudo o que realmente merece a lata de lixo da nossa História particular. E vai ficando exigente, mal acostumado e – pior! - com a sensação de que o tempo perdido é cada vez mais precioso.

Passado o intróito necessário, parece oportuno esclarecer que me disponho hoje a falar sobre o assunto que mais gosto e, de verdade mesmo, o único de que minimamente entendo. Butiquim, de novo, por que não? E só pra explicar que butiquim é fase, igual paixão. Você bebe diariamente naquela mesma pocilga, sente que ali é o melhor lugar em que você poderia estar no planeta, livre das aporrinhações do seu chefe, do mau-humor dos motoristas, dos achaques dos políticos e das broncas da dona-da-pensão. O garçom é gente boa, a cerveja é geladaça, o tira-gosto honesto. O português deixa usar o telefone e até, em situações calamitosas, troca cheque. A rapaziada que muito de vez em quando aparece pra tocar um violão só manda brasa. Pô, sair dali pra quê? Só quem só faz usufruir, que freqüenta buteco pra se exibir é que sai de casa em busca de aventura. O pé-redondo profissional, esse é, por excelência, um conservador. Não troca o certo pelo duvidoso nem por uma boa pataca do vil metal. É de uma fidelidade a que mulher nenhuma no mundo ousaria aspirar.

Minha cabeça paulistana já foi do Alemão da Antárctica, do Pena Dourada, do Krystal das Perdizes, do Cardosinho da Monte Alegre, do velho Brahma (pré “reforma”), Bom Motivo, Pé pra Fora, Bar do Bilu, Xodó da Paulita (mais conhecido como Balde) do Bar do Cidão, Ó do Borogodó, tantos outros... Meu coração carioca já foi da espelunca da Praça São Salvador, da Adeguinha Portugália, do finado Carlitos da Cinelândia, de um sem-nome na Rua Barão de Flamengo, do Estephanio's (há os amores platônicos como Paladino, Bar Luiz, Salete, e houve, é claro, paixões de carnaval, como o que contei outro dia num final de Bola Preta, o bar do Zé da Rua do Carmo, uma espelunca inconfessável na Lapa de outros tempos, mas esses fogem ao tema do dia). Ultimamente estava morando na Almirante Gavião, mas confesso que outro banzo tijucano é dono dos meus quereres – inspiração desta crônica - numa rua com nome de revolucionário anti-imperial. O nome da moça, claro, eu não conto.

Porque, meus filhos, assim como nos romances, na vida não há bem que sempre dure. Passado um tempo, aquele jeito dela mexer no cabelo que te deixava maluco, começa a suavemente te irritar. Como aquele jeito do garçom atirar a cerveja e os copos em cima da mesa. Olha, ela nunca tinha te respondido assim. E o jeito com que o português emprestou o telefone da última vez, pra falar a verdade, te deixou meio puto. Gostas dela, é verdade, mas a mãe, rapaz, a mãe não vai mesmo com a tua cara. E o Manuel não mandou embora o Severino da cozinha, só porque ele chegou de fogo no dia seguinte do campeonato do Mengão? Você não acha que a pequena anda, assim, um tanto diferente? A dobradinha, terça passada, não tava a mesma coisa... Ela é bonita, não tenha dúvida, mas você reparou na morena que mudou pro 203? Tomei uma gelada com salaminho ontem ali no Ceará...

Pronto. Teu coração bateu asas, c'est la vie! Uma nova fase se anuncia. Com a diferença de que a gente, sem mulher, afoga as mágoas no buteco. Mas sem bar, não há mulher no mundo que nos console!

terça-feira, 27 de março de 2007

Estupro


Expira esta semana o prazo final para os munícipes da nossa triste Cidade adequarem-se ao mais recente desatino da razão imperial pseudo-pública a que já nos referimos neste espaço. Inapelavelmente, garantem os construtores de mais um delírio normocrático, até o fim-de-semana São Paulo estará livre de outdoors, placas de publicidade, letreiros, cartazes, luminosos, toldos e qualquer coisa que aluda a marcas particulares, com exceção futura, por óbvio, daquelas que o poder “público” resolver alugar arbitrariamente em proveito próprio.

E assim, de alguns dias para cá, a Velha Senhora tem começado melancolicamente a se despir, exibindo as vergonhas menos tristes pelas judiarias do tempo e da vida do que pela violência com que estão sendo postas a nu. Não o desvestimento natural do banho, nem a nudez voluptuosa do sexo, antes o despojamento forçado, brutal do estupro, indignidade suprema e imperdoável. Privada das dissimulações de suas rotas farpelas, eis que vê emergir o insuportável impudor dos seus esconsos violados até os limites últimos da integridade plausível de sua alma.

Desvela-se, assim, pouco a pouco, não um corpo, mas um monstrengo deformado nas pequenas e grandes dimensões de sua persona subjugada. Uma anciã cuja psique não sobreviveu ao incontrolado dos próprios desatinos, aos seus desejos paranóicos de não-ser, de consumir-se desenfreada e incessantemente, pelo simples “prazer” de ver girar a roda viva da grana que ergue e destrói todas as coisas, belas ou não. Que perdeu completamente a capacidade de manter-se íntegra a despeito de sua tão propalada auto-suficiência.

E a nós, de quem foram arrancadas impiedosamente todas e quaisquer possibilidades de diferenciação, de reconhecimento, de orientação, a quem foram peremptoriamente negadas as verdades simples de ruas e casas e lembranças, só nos restava a pantomima burlesca de marcas e placas e anúncios e letreiros. Pois se o nosso mundo de verdade foi destruído, um mundo honesto de vizinhos, farmácias, açougues e butecos, como podem agora nos querer arrancar dos simulacros aos quais, mais ou menos coletivamente, tivemos que nos agarrar para sobreviver na indistinção do caos induzido? É verdade que cada cidade tem o Redentor que merece, mas como é, meu Deus, que vamos nos guiar pelas noites náufragas sem o relógio do Itaú a luzir como um farol de esperança e Consolação?

Sobreviverá a Cidade, afinal, a si mesma? Suportará o horror das chagas que por tantos anos se auto impingiu? Será minimamente possível esperar que nossa verdade, enfim, nos liberte? Ou os infernos acolherão, por fim, os restos infectos dizimados por purulências de gangrenas irreversíveis?

segunda-feira, 26 de março de 2007

Outono do meu tempo

E enfim é outono. Quinto dia da nova estação, duas crises alérgicas, como previsto. Porque, curiosamente, mesmo encovado diariamente sob estas catacumbas de concreto, luz artificial, ar artificial – quinhão pessoal das galés a que universalmente fomos sentenciados desde a queda de Adão -, minha fisiologia íntima teima em responder aos apelos da natureza.

Por mais que eu tenha que correr desesperado à porta quando alguém grita “olha a chuva!!” - e que, mais!, se ali chegando, tanto ainda meu coração se apequene, restantes no chão não mais que meia dúzia de pocinhas, espelhos da minha mágoa, tonitruando a voz de um diabólico marcante de uma quadrilha kafkiana: “já passou!!!” - é aí, e de nenhum modo mais, que eu sou verdadeiramente carioca, suburbano, que sou sertanejo e que sou caboclo. Que sou brasileiro! É no meu coração de passarinho, que silencia com a chuva e se põe a semear sob o pálio azul, que se assenta meu pacto inquebrantável com esta Terra, que um dia, oxalá!, me há de matar.

Se o equinócio de outono marca para muitos povos ancestrais o início de um novo ciclo, um novo “ano”, segundo nossos padrões, a Estação, para os paulistanos que ainda têm olhos para ver, é um tempo rigorosamente inadiável. Nesta terra em preto-e-branco (os mais novos, favor consultarem os pais, livros, os arquivos, oráculos ou o diabo-que-os-carregue), em que à sede dos olhos costumam bastar as escalas de cinza, o outono é um período ímpar de luzes e cores. Só em abril e em maio se pode ver o céu verdadeiramente azul; só as suas manhãs possuem aquela luminosidade lânguida que remete a passeios distendidos de pés úmidos de relvas e folhas caídas: croch...

E de repente, não mais que de repente, acorda-se numa manhã e a Mão alteada, severa e respeitável, grita um “basta!” à claridade desnecessária, agressiva do verão. As torrentes avassaladoras de março parecem estancadas a um comando superior. E em honra à esperada temperança, os anjos saíram a lustrar os prédios e as árvores, os carros e os jardins, que generosamente respondem com um brilho renovado, fresco, ainda que sóbrio. E é assim que, súbito, nos vemos despojados das nossas premências de fazer e providenciar e resolver. Toda vaidade, toda prepotência parecem momentaneamente respeitosas de uma outra ordem, mais serena, mais composta, menos opressiva. E o telefone pode tocar, impune, enquanto adivinhamos as tentativas impressionistas dos raios de sol no pé de pitanga em frente.

Ora, como sempre, direis que envelheço, que a primavera é das crianças e o verão é dos jovens. Mas se o inverno, sabidamente, é de ninguém, e porque não estou em Copacabana nem na Aldeia Campista; porque não posso apanhar um ônibus para o Ver-o-Peso, me debruçar sobre a Baía, nem subir as dunas adivinhando a cor do mar, mais do que nunca faz-se mister, senhores, que se adiem as urgências, que se desmarquem os compromissos, que se alivie a agenda. É preciso parar para reencontrar a decaída intimidade com o instante; para desatrofiar os olhos e – ai! - o coração.

quinta-feira, 22 de março de 2007

Desafio

Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro


Éramos eu e um cavalo
No seu galope macio
Pulando cerca de arame
Pisando morro de pedra
Andando em leito de rio

Éramos eu e um cavalo
E era um cavalo bravio
Casco de lâmina forte
Anca de chão de montanha
Crina de vela e pavio

Ele bufando fagulha
Eu contraído de frio
Montando em pêlo barroso
Éramos eu e um cavalo
Indo de encontro ao vazio

Éramos nós e os cavalos
Feitos do mesmo feitio
Vindo de todos os lados
E sobre eles sangrentos
Seus cavaleiros sombrios

Éramos nós e os cavalos
A nos causar calafrios
Todos os outros já mortos
Por essa causa contrária
A que se chamou poderio

E eu com uma bala no peito
Meu alazão nos baixios
Caímos de cordilheira
Deixando a causa nas lendas
Pra quem quiser desafio

terça-feira, 20 de março de 2007

Pára, que eu quero descer! (II)


Contei semana passada meu encontro com o bêbado do ônibus, em plena Avenida Paulista.

Centenas de cartas e mensagens chegaram à redação do Só dói nestes últimos dias. Impressionante como são ubíquas estas entidades do imaginário coletivo brasileiro. Falta, aliás, quem, despreocupado com o aparente paradoxo, seriamente se proponha a estudar o corpus mítico composto pelo vasto anedotário brasileiro - isso, é claro, enquanto a tropa de choque colonizada do politicamente correto, a mesma que quer acabar com o modo próprio de existir do brasileiro, não conseguir abolir a piada. Porque, salvo engano, nenhum outro povo cultiva, como nós, o gosto pelo inusitado, pelo desconsertante, pelo chiste e pela galhofa. Os personagens que habitam esse universo – o bêbado do ônibus, o português, o louco, a bichinha – com suas venturas e desventuras falam muito de nós e sobretudo da auto-imagem que pintamos. Dos diversos relatos recebidos, nenhum melhor do que o que segue. A entidade, agora, não é mais o bêbado, é a bichinha do ônibus. Acompanhem.

Estava meu amigo num final de bloco de carnaval, ali entre os velhos armazéns da Zona Portuária feitos de barracões; a turba reunida dava cabo do chope oferecido por conta do Abreu. A morena era um pedaço e não parava mesmo de olhar. Ria, até. Superou a insegurança adolescente e chegou junto num momento em que ela deu um tempo da turminha que até então não descolara. Sorridente, a beldade foi-se desculpando:

- Você pode até me telefonar – estendendo o papelzinho adrede preparado. Mas não posso sair com você hoje daqui. Meu amigo ali, ó – e apontou o mulato muito esguio que já lhes acenava, mãozinha desmunhecada à altura do rosto, cotovelo apoiado sobre a outra; a faixa vermelha repuxando a carapinha pro alto fazia sua testa asustadoramente comprida, escorrendo suor – tá apaixonado por você!

“Era o que me faltava”. Tentou ainda superar a incomodidade, mas ainda era um pouco mais do que sua recém-não-meninice podia dar conta. Tentou se convencer de que o telefone descolado era mais que nada, a noite não fora perdida de todo, e foi-se esperar o ônibus na Leopoldina. Madrugada alta, condução demorada, um tanto afogado entre chopes e pensamentos, só deu conta da figura que o seguia quando a distância já impedia uma manobra evasiva eficaz. Ficou ali, entre incrédulo e conformado, aturando o papo furado que, não demorou, já se transmutava em derramadas declarações de amor. Malgrado o incômodo, a semi-frustração e a cediça incapacidade juvenil para lidar com o inusitado, não queria também destroçar o coração da donzela, ora essa! O único ímpeto que não conteve foi quando viu a figura subir no coletivo, atrás de si:

- Ah, não! Tu tá te sacanagem! Tu num mora na Ilha do Governador nem por um caralho!

Pra quê... O carrro já um tanto cheio, sentou-se propositadamente num assento já meio-ocupado, sacomé?, pra evitar maiores intimidades. A bicha se postou umas quatro fileiras atrás e mandou, às lágrimas:

- Olha você me desprezou à noite inteira! Não tem importância, viu? Mesmo assim, vou cantar uma música par você nunca mais se esquecer de mim...

Pressentiu o pior, quis duvidar do realismo pouco crível da situação, mas foi beliscado de volta ao seu pesadelo, a voz afetada, entre palminhas:

Nada do que foi [clap] será
De novo [clap] do jeito que já foi
[clap] um dia
Tudo passa [clap], tudo sempre
[clap] passará...

E como praga de bichinha pega mil vezes mais que de cigano (só perde pra de mãe), não é que até hoje, homem feitíssimo, ao ouvir qualquer gaiato entabular o infalível hit heraclitiano de revéillon, depara nítidas na lembrança as fuças impávidas do sujeito, com o criouléo em delírio a apavorá-lo:

- Malvado, destruidor de coração!

- Fez mal, agora casa!

- Não embrulha, não, come enquanto tá quentinha!

Um troço.

segunda-feira, 19 de março de 2007

São José


Hoje é dia de São José.

Para os sertanejos, início do ciclo festivo que se estende por várias celebrações populares tradicionais como a Festa do Divino e Corpus Christi, até as festividades dos santos juninos, ocasião em que se colherá o milho que hoje deve ser plantado. Crê-se que se neste dia tivermos chuva, o inverno será chuvoso e a colheita abundante.

Para muitos europeus, como italianos e portugueses é o dia dos pais, por ter sido o venerável ancião pai de criação do Menino Jesus.

Para alguns terreiros do Brasil, o santo padroeiro dos carpinteiros é sincretizado com Oxalufã, o Oxalá “velho”, na tradição brasileira do candomblé. Parece-me que também é sincretizado, menos freqüentemente, com Airá (corrija-me o Velho Simas), “qualidade” pela qual no Brasil é invocado Xangô mais velho.

Para mim é também o último dia do verão, o que me causa uma fina e dolorida melancolia, aliada ao temor hipocondríaco das afecções alérgicas e virais que campeiam pelo outono (toc-toc-toc!).

Para mim-criança, era o dia de ir à casa dos avós austríacos José e Josefina, celebrar o onomástico (dia do santo do seu nome), que é também meu e do meu pai, comemoração tradicional e importante na Europa, em alguns lugares sobrepujando até a do aniversário. Havia, de regra, beliscos de comidinhas e troca de presentes entre os josés. E o mais legal é que os meus tios que se chamam Hilda e Frederico também entravam na dança dos zés, sob o pretexto invocado por vovó de que não houvera, ainda, fredericos ou hildas que se tivessem dignado a morrer após uma existência reconhecidamente piedosa e observante.

Essa é a mais perene lembrança do dia de São José e uma das melhores da minha vida. Peço e confio, de todo o coração, que vovô e vovó venham comer comigo hoje e continuem a verter sempre sobre nós o seu zelo carinhoso, sua sabedoria, sua proteção. E que São José nos abençoe!

Axé!

sexta-feira, 16 de março de 2007

Homens de Canivete

Fernando Sabino


Os homens, incidentemente, se dividem também em duas categorias: os que são e os que não são de canivete.

Eu, por mim, confesso que sou homem de canivete. Meu pai também era: tinha na gaveta da escrivaninha um canivete sempre à mão, um canivetinho alemão com inscriçõesd e propaganda da Bayer. Não se tratava de arma de agressão, mas, ao contrário, destinava-se, como todo canivete, aos fins mais pacíficos que se pode imaginar: fazer ponta num lápis, descascar ma laranja, limpar as unhas.

É, aliás, o que sucede com todos os homens arrolados nesta categoria a que honrosamente me incluo – os homens de canivete: são pessoas de boa paz e que só lançariam mão dele como arma defensiva quando se fizesse absolutamente necessário.

Alegria de criança que não abandona o homem feito: a de ter um canivete. Era de se ver a excitação de com que meu filho de dez anos me pediu que não deixasse de lhe comprar um na Alemanha. È perigoso – advertem os mais velhos, cautelosos – cautela que não resiste à minha convicção de que o menino saberá lidar com ele como é mister, pois tudo faz crer que virá a ser, como o pai, um homem de canivete.

Os mineiros geralmente são. Quem descobriu isso, penso, foi o Otto, que não deixa de sâ-lo, ainda que de chaveiro e, certamente, por atavismo – pois me lembro da primeira pergunta qe lhe fez seu pai ao chegar um dia ao Rio:

- Você sabe onde fica uma boa cutelaria?

Sempre fui um grande freqüentador de cutelarias. Quando o poeta Emílio Moura aparece pelo Rio, não deixo de acompanhá-lo a uma dessas casas para olhar uns canivetes – pois se trata de um dos mais autênticos homens de canivete que eu conheço, e dos de fumo-de-rolo. Entre meus amigos mais chegados, embora nem todos o confessem, muitos fazem parte dessa estranha confraria. Paulo Mendes Campos não esqueceu de recomendar-me determinada marcad e canivete ao saber de minha viagem – e, se bem me lembro, seu pai é um dos infalíveis portadores de canivete que se tem notícia. Rubem Braga também deixou-se denunciar numa esplêndida crônica, “A Herança”, que pode ser lida em Borboleta Amarela, a respeito de um irmão que abria mão de tudo, mas reclamava do outro a posse de um canivete.

Alguns continuam sendo homens de canivete, mesmo que hajam perdido o seu ainda na infância. Aliás, os homens de canivete vivem a perdê-lo, não sei se pelo prazer de adquirir outro. Para identificá-lo, basta estender a mão e pedir: me empresta aí o seu canivete. Se se tratar de alguém que o seja, logo levará naturalmente a mão ao bolso e retirará o seu canivete. Foi o que fez Murilo Rubião, por exemplo, que é outro: ao chegar da Espanha, a primeira coisa que me exibiu foi seu belo canivete, adquirido em Sevilha.

Para terminar, digo que não há desdouro algum em não ser homem de canivete. Há homens de ferramenta, de isqueiro, de chaveiro e até de tesourinha. Graciliano Ramos não era homem de navalha? Homens de revólver é que não são uma categoria das que mais admiro: até parece que não são homens, para precisar de uma proteção que lhes poderia propiciar, em caso de necessidade, um simples canivete.

(in As melhores crônicas de Fernando Sabino, Rio de Janeiro, Record, 1986 - pp. 165-7)

quarta-feira, 14 de março de 2007

Pára, que eu quero descer!


Pois é, alguém já disse que o cronista tem de ter, antes de qualquer coisa, sorte.

São mil linhas de ônibus nesta cidade. Na Paulista, umas trinta pelo menos, cinco ou seis que me servem.

Quase quinze mil coletivos, para sete milhões de passageiros por dia.

Eu mesmo ontem, cansado, esfalfado, depois de uma jornada de umas quatorze horas, deixei passar bem uma meia dúzia: preguiça, queria saltar mais perto.

Subo no ônibus, só tem um lugar vazio, na primeira fila. Quem está sentado bem do meu lado, na mesma fila, separado apenas pelo corredorzinho? Ele mesmo, o bêbado. O bêbado do ônibus, o bêbado de todas as piadas de ônibus. Em pessoa.

Em dois minutos, o carro está vomitando gente pelas orelhas. Em frente à Nossa Senhora do Paraíso, nosso amigo levanta-se, faz o sinal da cruz mais estrepitoso desde que a Igreja Romana foi fundada e brada:

- Deus nos defenda!!! Deus nos defenda desse trânsito e dos motoristas de ônibus!

A platéia se contém. Noventa por cento de estudantada saída dos milhões de cursinhos e faculdades. Não sacou ainda qual é a do camarada. Uns dois ou três preocupam-se com a moça ao seu lado, seguidamente interpelada:

- Se tiver incomodando, é só a s'orita avisar!

E estendia-lhe a mão, respeitoso. Solavanco daqui, freada de lá, nosso amigo se vira para a assistência, a essa altura atenta, e manda um samba canção, em grande estilo:

- "Manhã, zzão bonita manhã..." Agossinho dos Santos... Conhecem? Conhecem naaada!

Quis emendar, mas achei melhor não dar a deixa.

- Zzuventude... Vocês, ó... não sabem de naaaaada!!

Dos meus, pensei. Sobe mais gente.

- Pra que tchime você torce?

Corinthians três, Palmeiras dois estava o placar. Entra um engravatado de oclinhos, branco, sangüíneo, com os livros todos da Getúlio Vargas mal conseguindo segurar:

- Aê, que tchime?

O administrador, bem baixinho, quase pra dentro:

- Num torço...

- Porra, mas em que planeta você nasceu??? Zzzzúpiter?

Ganhou a patuléia, que já se diverte ao riso solto. Entra a mulher de pouquíssimos amigos:

- A madame, aê, torce pra que time?

Ignorado solenemente que foi, mandou de letra:

- Sãopaulina! Só pode!

A essa altura, o povo já provocava. Entre uma e outra opinião sobre a política nacional e os prognósticos para o Campeonato Paulista, uma arrelia rodrigueana, aos berros:

- Molecaaadaaa... Vocês, ó....

E metralhava perdigotos, bochechas infladas, com a língua estralando entre os lábios protraídos, na expressão tipicamente indicativa de algo que já foi pro beleléu.

- "Lava roupa zzodo dia, que agonia..." Luiz Melodia... Conhecem pôooorra nenhuma!

"Sabe das coisas", comentou o senhor ao meu lado.

- Ôôô, mossorista... (e persignou-se, discretamente agora, apenas susssurrando um "Deus me defenda!"). Vou descer na Augusta. Me deixa na Augusta...

"Sabe onde vai", devolvi pro parceiro, que já esperava a tabela.

Motorista parou no Masp. Levantou de súbito, pediu licença, antecipou-se aos que vinham pra subir e se foi. Três pontos antes da Augusta. Ainda teve tempo, balançando os polegares vertidos a condenar os humilhados num coliseu imaginário e ambulante:

- Ó...Sabem de naaaada!

segunda-feira, 12 de março de 2007

Está faltando uma coisa em mim


Pedindo perdão pela pela omissão um tanto forçada, peguei o avião, correndo com razão deste frio (não há 30 graus que dêem jeito...), antes que um aventureiro lançasse mão. Procurando uma notícia boa pra trazer de volta.

E a notícia que vieram me trazer, os meus olhos não faltam dizer, guardei até onde eu pude guardar: o Rio de Janeiro, Fevereiro e Março, continua lindo... Por que será, então, que eu andei tão triste por te adorar?

Meu mano Edu? Continua sendo o maior sujeito que eu conheci, e fazendo das suas. Me explica, mano amado, o que de amor se perdeu neste Rio? Ipanema não é mais só felicidade, mas isso nossas garotas já sabiam.

Alô, torcida do Flamengo! O que é uma derrotazinha? Quarta-feira veio, tudo está no seu lugar, graças a Deus!

O Redentor segue de braços abertos, mas... e Aquele Abraço? Num canto da Mem de Sá, numa esquina qualquer, ou num bloco na Gomes Freire...

Se os meninos do Colégio Militar desfilam seus uniformes cáqui-grenás pelas tardes calorentas de amendoeiras, e não faltam as balizas do CEFET, que a Tijuca tá viva ainda lá, por que é que a vida insiste em se mostrar mais distraída dentro de um bar?... É trote, isso tudo não passa de um erro!

Ora, o Adonis continua sendo o melhor chope do mundo - o costume é a força que fala mais alto do que a natureza; e o Costa segue servindo seu bolinho de vagem. Eu quero esclarecer esse mal entendido...

Ah, as casas de Vila Isabel... Simples, com portas abertas, flores baldias e cadeiras na calçada, que São Sebastião ainda pode se salvar. Eu cheguei e escutei a vizinha falar.

Do Lamas ao Capela - que onde tem cabrito eu vou! - quando o comes-e-bebes começou, no melhor da cabritada...

Senti que o meu coração quis parar.

Num canto da Mem de Sá. Numa esquina qualquer, meu mano, ou num bloco na Gomes Freire: não apareceu!

Bateu asas. Foi-se embora.

Fechou, para todo o sempre, aquela sinuca da Rua do Riachuelo.

Vou caminhar por aí, a cantar. Tentando espantar a tristeza por onde eu passar.

sexta-feira, 9 de março de 2007

Fortuna de mulher


As muito lindas que me perdoem
mas há que se reconhecer
ser-lhes sempre disposto
o fatal atributo
que as há de propiciar
Sem dependência
do que lhes vá
veramente
Sob a carapaça

Se o do imo não corresponder
à fulgura do visível,
protegida ficará
pela detença que desconvida
ao abandono da superfície
O néscio das profundezas

Mas se das entranhas o poder
em fusão de ainda mais nobres
acalentos
for ainda superior ao verniz
A crosta não conterá
as derretedoras incandescências
que fora se cuspirão
com a força irreprimível que tudo
Movimenta

(janeiro de 2004)

quinta-feira, 8 de março de 2007

Recordar é viver

E não é que no dia 8 de março não há mesmo como não se falar delas? E por uma razão muito simples: não há dia na vida em que um homem não fale delas... E ruminando neste tema tão caro aos encontros masculinos, remeto-vos a um bate-bola entre meu mano Edu Goldenberg, este que vos escreve e o saudosíssimo Fernando Toledo, na ordem em que foram gerados, na mesa imaginária do não menos saudoso Conexão Irajá.

quarta-feira, 7 de março de 2007

O grande momento

Augusto Frederico Schmidt


A varanda era batida pelos ventos do mar
As árvores tinham flores que desciam para a morte,
com a lentidão das lágrimas.
Veleiros seguiam para crepúsculos com as
asas cansadas e brancas se despedindo,
O tempo fugia com uma doçura jamais de
novo experimentada
Mas o grande momento era quando os meus
olhos conseguiam
entrar pela noite fresca dos seus olhos...

quinta-feira, 1 de março de 2007

Desagravo paulistano


Outro dia desses, não sei se foi o meu amigo Bruno Ribeiro, não sei se foi o velho e já tão querido mestreLuís Antônio “Amarildo” Simas, um dos dois escreveu mais ou menos que o homem que não ama a sua cidade é, no fundo, no fundo, um infame. Vinda de qualquer um dos dois craques, com efeito, a sentença reveste-se de uma incontestável autoridade, visto serem, ambos, eméritos e desvelados laudatórios dos encantos de seus respectivos torrões. E assume assim, para mim, o peso acabrunhante de uma condenação.

Assume, inelutavelmente, pois essa instância tão fundamental de existência coletiva que é a cidade significa demais para mim. Mais do que de lugares ou países, mais do que de bairros ou de bares, sempre fui um homem apaixonado pelas cidades. A cidade desde muito cedo na história humana - no Oriente, na África, Grécia ou na América pré-colombiana - representou a instância mais essencial dos grupamentos humanos, a que diz mais sobre um povo e um lugar. Síntese privilegiada entre o particularismo do clã familiar e a universalidade da nação, as cidades nascem, vivem e morrem, têm personalidade, sexo e temperamento bem humanos. Por isso o amor pela cidade é um amor carnal, que pode ser ardente hoje e repugnante amanhã, porque é concreto, é histórico. O amor pelo país, pela nação, é um amor de pertencimento, tem cheiro de infância, de colo de mãe, é essencial, está plantado no fundo; mas não é orgástico, não cansa e nem faz suar.

Por isso, meus amigos, não me redime da infâmia a imagem que durante muito tempo alimentei, para escamotear minha deplorável condição, este verdadeiro aleijão moral de que me acusam os meus queridos companheiros de linhas virtuais. Não adianta enganar, como outrora tentei, que o amor pelo Rio é de amante, por Belém é de esposa e por São Paulo é de mãe (aquele que a gente não escolhe, de que a gente não consegue se desvencilhar; que a gente, mesmo, não agüenta, mas faz parte da nossa mais recôndita essência). Porque assim como mulher nenhuma toleraria de um macho amante um bem-querer que se declare “filial” (com a óbvia exceção), de um amorzinho assim canhestro nem a minha cidade é merecedora.

Não é de hoje que este espaço é preenchido das lamúrias que assaltam diariamente o coração de um brasileiro obrigado a conviver, nesta cidade, com a negação sistemática daqueles traços – por que não, daqueles sintomas? - que fazem do brasileiro um povo tão singularmente vocacionado à fortuna, a despeito de tudo e de todos. Mas sempre faço questão de separar “a cidade”, do “povo” que nesta circunscrição espacial cumpre seu degredo peregrino. E talvez resida precisamente aí esta dureza d'alma que tanto nos assusta e incomoda, na separação do inseparável, de um corpo e sua alma, de uma cidade e seu povo. Porque esta cidade, meus senhores, não pertence ao seu povo. Pertence, como uma Jerusalém romanizada, aos usurpadores, aos invasores, àqueles que querem manter o Brasil eternamente refém da ganância espoliadora da mesma meia dúzia de sempre. Eles estão por toda parte da terra tupiniquim, direis, mas cá quase mais não vemos, ao menos, o protesto, a subversão constantemente intentada, esta soberania latente que aqui e ali se manifesta, mostrando por entre as frestas da dominação artificiosa, brutal, a realidade sobre os verdadeiros donos desta terra (e o carnaval é o ápice desta sublevação). Aqui, a batalha parece sempre perdida, o território irremediavelmente ocupado, o messias definitivamente de nós esquecido. O leviatã autômato não cessa de retroalimentar com eficiência crescente todos os mecanismos tendentes à eliminação dos sujeitos pensantes, amantes, dançantes, suantes.

Não, senhores, não há desagravo, nem instância de apelação. A condenação é certa e merecida. Para aliviar a execução da pena, arguo tão somente duas atenuantes. A uma, tenho que muita gente da melhor cepa que por aqui floresce (testemunhai em minha defesa, testemunhai!) me acompanha ao cadafalso, nutrida dos mesmos sentimentos. A duas, pra valer, São Paulo não é uma cidade. São muitas cidades justapostas, assemblage de retalhos chuleados ao léu, tão díspares, tão incomensuráveis, centão disforme, melancólico e patético. Em cada porção deste
embrechado pulsa um fragmento de alma, que se não alcança um efetivo hálito de ser, possui o condão de refrear o avanço da gangrena doutra forma inevitável.

Os bairros paulistanos representam para nós a única possível instância de salvação de nosso quotidiano. Se para a redenção de nossos seres, os brasileiros de São Paulo pomo-nos a sirigaitear por aí, oferecidos a rios de janeiros, beléns e salvadores, o peso do dia-a-dia só se nos alivia com o apego desesperado a esses pequenos fragmentos de dignidade urbana. Por isso é que meu querido Júlio Vellozo não consegue deixar de cortar o cabelo na Vila Gustavo. É por isso que o Fernando Borgonovi, por mais que se embriague nas vilas madalenas, tem que tomar a sua saideira diária no caga-sangue do Jaçanã. Por isso o Arthur Favela tem que bater ponto todo domingo na pelada do Anhangüera, na sua Barra Funda.

É por isso que eu percorro, todos os dias, ávido, desesperado, as ruas da minha Lapa. Não a Lapa boêmia de Luís Martins, colorida outrora como hoje. A Lapa suburbana, operária, comercial – tão cinzentinha, coitada!- devidamente nordestina e imigrante, como devem ser os subúrbios paulistanos. É por isso, senhores. Para salvar a minha Lapa. Para salvar o pouco que a nós resta. Porque até isso nos querem tirar. Aos que nada têm, até o que têm lhes será tirado. Porque os artífices deste monstro devorador de possibilidades não cessam de obrar para aniquilar os bairros de São Paulo, suas singularidades, seus modos de ser e de morar, por ação da plaina irrefreável a transformar lugares de carne-e-osso-e-alma em zumbis espectrais de concreto e soberba.

A partir de hoje, este espaço alteará sua voz em defesa das migalhas de dignidade e vida que restam a este projeto fracassado de cidade. Quem for paulistano, que me siga.