quarta-feira, 14 de março de 2007
Pára, que eu quero descer!
Pois é, alguém já disse que o cronista tem de ter, antes de qualquer coisa, sorte.
São mil linhas de ônibus nesta cidade. Na Paulista, umas trinta pelo menos, cinco ou seis que me servem.
Quase quinze mil coletivos, para sete milhões de passageiros por dia.
Eu mesmo ontem, cansado, esfalfado, depois de uma jornada de umas quatorze horas, deixei passar bem uma meia dúzia: preguiça, queria saltar mais perto.
Subo no ônibus, só tem um lugar vazio, na primeira fila. Quem está sentado bem do meu lado, na mesma fila, separado apenas pelo corredorzinho? Ele mesmo, o bêbado. O bêbado do ônibus, o bêbado de todas as piadas de ônibus. Em pessoa.
Em dois minutos, o carro está vomitando gente pelas orelhas. Em frente à Nossa Senhora do Paraíso, nosso amigo levanta-se, faz o sinal da cruz mais estrepitoso desde que a Igreja Romana foi fundada e brada:
- Deus nos defenda!!! Deus nos defenda desse trânsito e dos motoristas de ônibus!
A platéia se contém. Noventa por cento de estudantada saída dos milhões de cursinhos e faculdades. Não sacou ainda qual é a do camarada. Uns dois ou três preocupam-se com a moça ao seu lado, seguidamente interpelada:
- Se tiver incomodando, é só a s'orita avisar!
E estendia-lhe a mão, respeitoso. Solavanco daqui, freada de lá, nosso amigo se vira para a assistência, a essa altura atenta, e manda um samba canção, em grande estilo:
- "Manhã, zzão bonita manhã..." Agossinho dos Santos... Conhecem? Conhecem naaada!
Quis emendar, mas achei melhor não dar a deixa.
- Zzuventude... Vocês, ó... não sabem de naaaaada!!
Dos meus, pensei. Sobe mais gente.
- Pra que tchime você torce?
Corinthians três, Palmeiras dois estava o placar. Entra um engravatado de oclinhos, branco, sangüíneo, com os livros todos da Getúlio Vargas mal conseguindo segurar:
- Aê, que tchime?
O administrador, bem baixinho, quase pra dentro:
- Num torço...
- Porra, mas em que planeta você nasceu??? Zzzzúpiter?
Ganhou a patuléia, que já se diverte ao riso solto. Entra a mulher de pouquíssimos amigos:
- A madame, aê, torce pra que time?
Ignorado solenemente que foi, mandou de letra:
- Sãopaulina! Só pode!
A essa altura, o povo já provocava. Entre uma e outra opinião sobre a política nacional e os prognósticos para o Campeonato Paulista, uma arrelia rodrigueana, aos berros:
- Molecaaadaaa... Vocês, ó....
E metralhava perdigotos, bochechas infladas, com a língua estralando entre os lábios protraídos, na expressão tipicamente indicativa de algo que já foi pro beleléu.
- "Lava roupa zzodo dia, que agonia..." Luiz Melodia... Conhecem pôooorra nenhuma!
"Sabe das coisas", comentou o senhor ao meu lado.
- Ôôô, mossorista... (e persignou-se, discretamente agora, apenas susssurrando um "Deus me defenda!"). Vou descer na Augusta. Me deixa na Augusta...
"Sabe onde vai", devolvi pro parceiro, que já esperava a tabela.
Motorista parou no Masp. Levantou de súbito, pediu licença, antecipou-se aos que vinham pra subir e se foi. Três pontos antes da Augusta. Ainda teve tempo, balançando os polegares vertidos a condenar os humilhados num coliseu imaginário e ambulante:
- Ó...Sabem de naaaada!
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E tu não reconheceu o cara, não, irmão meu?
ResponderExcluirFernandão, pelo trânsito que dominou ontem a Av Paulista em especial, queria eu ter tido mesma sorte.
ResponderExcluirGenial, o bêbado!
Abraços!
Bêbado adorável! Adorável de tão chato! O Brasil é incrível: quase tudo mudou, quase tudo tá se perdendo. Menos o bêbado do ônibus. Esse resistive ao neoliberalismo implacável.
ResponderExcluirSerá ele, portanto, caro Bruno, o porta-estandarte da nossa teimosia.
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