quinta-feira, 29 de maio de 2008

Torturante ironia

Sílvio Caldas e Orestes Barbosa


Que mágoa neste abandono
Que ânsia, perdi o sono
E vim tristonho cantar
Porque a canção mais aflita
É a forma que há mais bonita
Da gente poder chorar

Tu sobes este barranco
Sujando o vestido branco
Pisando as pedras do chão
Mas sem saber na verdade
Que desde lá da cidade
Tu pisas meu coração

Por ser do morro e moreno
É que eu soluço, é que eu peno
Bebendo meu amargor
Por que me negam querida
Esta alegria da vida
De possuir teu amor?

Que torturante ironia
O amor com categoria
Eu amo e não posso amar...
Porque a mulher que eu adoro
Não mora aqui onde eu moro
Deixem-me, então, soluçar


Valsa originalmente gravada
por Sílvio Caldas para a Odeon,
em 15/06/1935

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Quase que eu disse

Sílvio Caldas e Orestes Barbosa


Na febre dos meus desejos
Fui à procura de beijos
Em bocas tão desiguais
E agora de beijos farto
Tristonho volto pro quarto
Quero chorar, nada mais...

Sabiam o quanto eu te amava
Sabiam porque eu falava
a todos do meu amor
E logo a vespa da intriga
Originou esta briga
Oh, minha amiga, que horror!

Um coração sem carinho
É galho que perde o ninho
Na fúria do vendaval
E é triste um ninho rolando
E um passarinho cantando
Em busca de um canto igual
Oh, quanta desgraça junta
Toda cidade pergunta
E vai dizendo o que quer
Da mágoa que me devora...
E quase que eu disse agora
O nome dessa mulher

Valsa gravada originalmente
por Sílvio Caldas para a Odeon
em 15/06/1935


terça-feira, 27 de maio de 2008

Serenata

Silvio Caldas e Orestes Barbosa


Dorme, fecha esse olhar entardecente
Não me escutes nostálgico a cantar
Pois não sei se feliz, ou infelizmente
Não me é dado beijando-te acordar...
Dorme, deixa os meus cantos delirantes
Dorme, que eu olho o céu a contemplar
A lua que procura diamantes
Para o teu lindo sono ornamentar

Na serpente de seda dos teus braços
Alguém dorme ditoso sem saber
Que eu vivo a padecer
E que o meu coração feito em pedaços
Vai sorrindo ao teu amor
Mascarado desta dor
No teu quarto de sonho e de perfume
Onde vive a sorrir teu coração
Que é teatro da ilusão
Dorme junto aos teus pés o meu ciúme
Enjeitado e faminto como um cão


Valsa-canção gravada originalmente
por Silvio Caldas para a Victor
em 12/10/1934


segunda-feira, 26 de maio de 2008

Suburbana

Silvio Caldas e Orestes Barbosa


Olhando o céu me demoro
Num verso triste é que eu choro
Ninguém vê o pranto meu
"Há muita lágrima triste
Que em ser sorriso consiste"
Como o poeta escreveu

Minha linda suburbana
Por trás da veneziana
Vens sorrir desta canção
Com teus lábios de doçuras
Que são tâmaras maduras
Da flora do coração

Zona Norte da cidade
Residência da saudade
Onde nasceu o teu cantor
O teu cantor comovido
Que sonha com teu vestido
E morre por teu amor
Olho as estrelas cansadas
Que são lágrimas doiradas
No lenço azul lá do céu
Estrelas são reticências
Estrelas são confidências
Do meu romance e do teu.


Valsa-canção gravada
originalmente por Silvio Caldas
para a Columbia, em 1937

Arranha-céu

Sílvio Caldas e Orestes Barbosa


Cansei de esperar por ela
Toda noite na janela
Vendo a cidade a luzir
Nesses delírios nervosos
Dos anúncios luminosos
Que são a vida a mentir...
E cada vez que subia
O elevador não trazia
Esta mulher - maldição!
E quando lento gemia
O elevador que descia
Subia o meu Coração

Cansei de olhar os reclames
E disse ao peito não ames
Que o teu amor não te quer
Descansa, fecha a vidraça
Esquece aquela desgraça,
Esquece aquela mulher!
Deitei então sobre o peito
Vieste em sonho ao meu leito
E eu acordei, que aflição...
Pensando que te abraçava
Alucinado apertava
Eu mesmo meu coração


Valsa gravada originalmente por
Sílvio Caldas para a Odeon, em
19/03/1937

sexta-feira, 23 de maio de 2008

O maior de todos

Caríssimos, preciso vos contar que no dia de hoje, 23 de maio de 2008, passa-se exatamente um século da vinda à luz, na minha mui querida cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, do cidadão batizado Sílvio Narciso de Figueiredo Caldas, no coração do glorioso bairro imperial de São Cristóvão. E não preciso apenas porque esse longevo senhor, que se despediu definitivamente dos microfones, depois de tantos ensaios, já há dez anos, foi, na minha modestíssima opinião, o maior cantor brasileiro de todos os tempos. Nem por dever a ele, acima de qualquer outro, a sacramentação da minha paixão deslavada e incondicional pela música popular que se faz no Brasil desde a década de 1930. É por um motivo mais simples e - estou certo que concordarão – peremptório: comovido por sua arte é que tive, pela primeira vez e para sempre, a vontade de cantar para alguém mais que a saboneteira e o porta-xampus; e, em conseqüência, por sua imagem me ser tão presente a cada vez que me aproximo de um microfone para cantar.

Não que esteja advogando sombra de comparação, ainda que impossível honestamente negar-lhe a decisiva influência. A medida me seria demasiado severa: ninguém, sob este céu anil encimado pelo Cruzeiro, foi mais cantor. Orlando Silva tinha a voz mais bela? Possivelmente, sobretudo pelo que se ouve nos registros realizados entre 1934 e 1942. Depois, sua carreira sabidamente declinou, possivelmente menos abalada pelo comprometimento vocal em si, do que por uma personalidade um tanto acanhada, que talvez se tenha deixado fragilizar pelas luzes (e pela ausência delas, em certo momento) que inevitavelmente se projetam sobre a vida de um artista popular. Francisco Alves foi mais importante para a história da música popular no Brasil? Talvez; pelo momento histórico (era dez anos mais velho), por seu caráter empreendedor, personalidade marcante e imenso carisma pessoal, a aglutinar forças e empresas na consolidação dos mais importantes veículos mercadológicos do nosso produto musical: o rádio e o disco. Carlos Galhardo pode ter sido mais “técnico” e a bossa de Cyro Monteiro insuperável. Mas se fosse possível, num concurso imaginário, atribuir pontuações aos diversos quesitos que importam no julgamento da carreira de um cantor, tenho para mim que Sílvio Caldas faturaria sem dificuldade o “estandarte de ouro”. Senão vejamos.

Em termos de voz, a beleza do timbre e a afinação incontestável falam por si, não havendo um único senão que eu conheça em sua discografia na casa de quatro centenas de fonogramas em 78 rotações, além de quase 20 LP’s. Só isso, que não é a única nem principal medida da grandeza de um intérprete, o coloca muito à frente de cantores como Nelson Gonçalves e o próprio Chico Alves. Se o quesito for repertório, então, a distância vai para vários corpos de vantagem, inclusive em relação a Orlando Silva, que gravou várias peças duvidosas, incluídas versões absolutamente desnecessárias. Diga-se de passagem, enquanto vários cantores recorreram a esse subterfúgio para enfrentar a concorrência crescente dos artistas estrangeiros, sobretudo a partir da década de 40, o “Caboclinho querido” manteve-se aferradamente convicto em sua defesa da canção brasileira por sete décadas a fio. Aliás, falando em longevidade e, sobretudo, regularidade, a excelência do “Seresteiro do Brasil” é digna de nota, observado um declínio no desempenho vocal, compreensivelmente, somente quando já se encontrava na casa das oitenta e tantas primaveras. Quesito versatilidade: Sílvio notabilizou-se como grande intérprete de valsas, fox e canções, no melhor estilo seresteiro, mas sua bossa para interpretar o samba era tamanha que é influência declarada de ícones do gênero, como o próprio Cyro Monteiro e Germano Mathias; despiciendo lembrar as imortais interpretações de marchinhas carnavalescas. Isso tudo para não falar do Sílvio compositor, para valer (não me constam contestações desse fato, ao contrário de muitos intérpretes seus contemporâneos), parceiro do imenso Orestes Barbosa em clássicos absolutos e imorredouros como Chão de Estrelas, Quase que eu disse, Vestido de lágrimas, Arranha-céu entre tantos outros.

Poderia passar a noite falando das qualidades do intérprete ou das proezas de sua carreira assombrosa. Mas os cliques e cravos da vida estão aí, com seus meios-acertos de hábito, a socorrer os ávidos pela factualidade cacete e pela objetividade idiota. Prefiro falar de uma noite, em 1995, no Sesc Pompéia, quando o “Poeta da voz”, do alto de seus grisalhíssimos 87 anos, assombrou a platéia com a lucidez de sua memória de personagem-historiador da música popular brasileira e, sobretudo, pela potência e convicção de sua voz, ainda que nitidamente cansada, a tremer o pequeno teatro a pelo menos meio metro de distância do microfone! Ao peito, galhardo, o “companheiro dileto” com que lhe regalara o presidente Juscelino, que constatei ter mesmo o timbre perfeito da voz de seu coração*. Prefiro lembrar outra noite, talvez 1988, ou 89, uma noite imensa. Fora, eu menino, ver a imensidade do mito no pequenino e histórico palco do Vou Vivendo. Espetáculo terminado, senta-se no andar abaixo o “Trovador das madrugadas”, rodeado do pessoal da casa numa mesa redonda não muito grande. A timidez (minha) e a fama (dele) de uma certa rudeza não me conseguiam impedir de literalmente plantar-me ao lado dos bebentes para, também eu, beber daquelas histórias todas. Foi ali que o ouvi dizer: “Ganhei muito dinheiro nessa vida. Não para ter uma ‘boa velhice’, mas para ser rico pra valer. Só tenho, hoje, minha casa em Atibaia. O resto eu torrei tudinho – graças a Deus! - nas madrugadas. E não me arrependo um segundo!” Ali aprendi que as famosas e inúmeras despedidas foram todas de sincero propósito; as “voltas”, porém - ao contrário do apregoado pelo olhar burro do século, que tudo julgando conforme a si próprio, sempre quis fossem “jogadas de márquetim” do velho seresteiro... - quase todas motivadas pelo rareamento do vil metal; sina que, ironicamente, como se vê, iguala tantos e tantos trabalhadores brasileiros menos ou mais afamados. A determinada altura, notando-me ali parado havia séculos - e fazendo jus à fama (pensei de cara) - vira-se pra mim: “Ô, garoto! Que é que tá fazendo aí plantado que nem um dois de paus”. Gelei. Ia quase me arrancando, quando o gigante emendou: “Pega logo uma cadeira e senta aqui, porra!”. E assim fiz, obediente, até as altas horas da madrugada, depois de muita lição de música e de vida.

Mas agora me dêem licença, que vou ali chamar o vô Dante e o Felipinho Cereal e colocar na vitrola uma velha bolacha com a “Deusa da minha rua”. Deixo por aqui, em honra a seu centenário, minha mais profunda reverência a esse monstro da música brasileira. Ao homem, ao compositor e ao intérprete maior: Sílvio Caldas. Que colecionou tantos epítetos quantas despedidas: "Rouxinol da família ideal", "O Cantor que Valoriza as Palavras", "A voz morena da Cidade". Ou simplesmente, como preferia, “Titio”... O Seresteiro do Brasil. O Caboclinho tão meu querido.


* “Meu companheiro”, valsa-canção de Francisco Alves e Orestes Barbosa, gravada por Sílvio em LP Colúmbia, na década de 70.


quarta-feira, 21 de maio de 2008

O barulho da rua


Como se não bastasse a “civilização do celular”, que bem retratou meu impagável mano-mestre, Bruno Ribeiro. A ordem é aproveitar o “tempo ocioso” para resolver coisas. Resolver... (solver de novo, não?) E, de quebra, ninguém fica sozinho - coisa horrível! Tem sempre um “amigo” à mão pra gente não ter que encarar o vaziozão... (té rimou!)

Como se não bastassem os butiquins infestados de televisores. Não há mais paz. Não há prosa, conversa fiada, bate papo. Onde antes a necessidade da superação das solidões encontradas – o freqüentador do buteco é, antes de tudo, um profissional da solidão -, homens e mulheres falando da vida, desabafando, mentindo, reinventando-se sem formalidades, sem o compromisso do porta-a-fora, hoje autômatos naufragados, passivos de dar dó; comentando, vez por outra, alguma notícia em voz alta. Consigo mesmos.

A praga que ora infesta nossas ruas, nossos ônibus e trens, são os insuportáveis aparelhinhos de ouvir sei-lá-o-quê. T-O-D-O-M-U-N-D-O tem uns fiozinhos pendendo das orelhas. Que diabos tanto eles ouvem? Antes, sei muito bem o que NÃO ouvem! Não ouvem o barulho das ruas, o barulho único e ensurdecedor das ruas, duro e necessário, melodia do nosso delírio coletivo. Não ouvem a piada que o sujeito dois bancos à frente contou para o companheiro de jornada, que não pára de rir. Não ouvem o comentário surreal do invariável bebum do ônibus – e, após, duvidam da sua existência. Não ouvem o operário assobiando pro mulherão que acabou de passar em frente à obra, flash de beleza a iluminar sua lida de concreto. Não ouvem o suspiro de dor da velhinha que se sentou, com dificuldade, ao lado. Não ouvem o amigo que encontra o outro na rua - tanto tempo!- e diz que agora tem mais um filho. Nem a sirene a bramir o desespero de uma vida ameaçada. Não ouvem a história triste. Nem a alegre.

Ora dirão os pascácios e os lorpas, como sempre quer meu bom amigo Fernando Borgonovi, todos irremediavelmente jovens, que as pessoas se defendem. Defendem-se. Taí, exatamente, seu crime. Defendem-se abstratamente e a priori do “outro” que a rua representa, do locus de interação e encontro, negação da privatização dos espaços, essa tão cara à nossa bela civilização. Defendem-se do encontro e do possível, e do contato e do toque que o encontro é capaz de gerar. Defendem-se do suspiro moribundo de um mundo real que ainda teima em sobreviver, por entre as frestas do Grande Simulacro onde paulatinamente nos internamos, todos.

Dirão, também, que há que se aproveitar e ouvir alguma música, alguma arte, antes que desperdiçar à toa os minutos preciosos, bestando sem fazer nada, ou mergulhados na barafunda de ruídos e fumaças. Pois a verdade é que, na ânsia de tanto aproveitar, na gana de não deixar passar, antítese absoluta do carpe diem clássico, tudo se faz e nada se faz. Ouço a música para não estar ali, naquele ônibus lotado e engarrafado no trânsito, na violência e na poluição. Mas também para não ter que ouví-la na intimidade e na solidão, eu-e-ela, sem desculpas de porquê. Ouço a música para não estar ali. Ouço-a ali para não ouví-la, afinal. E de repente a multidão não é mesmo mais do que um arquipélago perdido num mar de nada, separadas as ilhas por mudezas abissais.

Numa Cidade onde a família não janta junta, em que pais e filhos só se reúnem na frente da televisão; num mundo em que o papo-furado desaparece dos butiquins, onde os vizinhos não armam cadeiras nas ruas e os homens e mulheres não mais se reúnem para contar as histórias, trocar as receitas, aprender da vida e do trabalho: se não é na rua, meu Deus, onde mais será possível encontrar esse estranho e maravilhoso ente que atende por “Outro”?

O aprisionamento da audição não-seletiva é reafirmação do esforço da razão e da vontade de “ordenar” a experiência sensível e, ao mesmo tempo, de um domínio acachapante do elemento visual. A visão, o mais “dirigido” dos sentidos, como em nenhum animal mais, domina absolutamente nossa interação com o mundo, determinando nossa orientação, nosso apetite, nosso desejo, nossa libido. E assim nos vamos tornando animais que se relacionam com o entorno através de um único sentido, que só se dirige a escopos pré-determinados - para não dizer “pré-legitimados” - pela razão ordenadora.

E como se não bastassem, pois então, os fiozinhos de amarrar ouvidos, eis que os nossos ônibus e os nossos vagões de trem e as nossas esquinas (e até os banheiros!) estão agora a equipar-se de infinitos televisores de “programações dirigidas”, sem trégua, vinte-e-quatro horas por dia, zilhões de átimos por vida, o apelo incessante ao olhar. Ouvidos amarrados, olhares aprisionados. Atônitos e aparvalhados, (sur)presos diante do auto-retrato antecipado e impiedoso do crime que não cessamos de cometer.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Bella, ciao!


Una mattina mi sono alzato
Oh, bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
Una mattina mi sono alzato
E ho trovato l'invasor

Oh partigiano, portami via
Oh, bella, ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
Oh partigiano, portami via,
Che mi sento di morir

E se io muoio da partigiano
Oh, bella, ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
E se io muoio da partigiano
Tu mi devi seppellir

E seppellire lassù in montagna,
Oh, bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
E seppellire lassù in montagna
Sotto l'ombra di un bel fior

E le genti che passeranno
Oh, bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
E le genti che passeranno
Mi diranno: "Che bel fior ".

È questo il fiore del partigiano,
Oh, bella, ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
È questo il fiore del partigiano
Morto per la libertà!

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Fenômeno


Ouvida esses dias no Bar do Palmeirense, no que parei pra tomar um ‘amargo’.

O locutor da TV, ligada, como invariavelmente:

- Gravidez confirmada: o jogador Ronaldo vai ser pai outra vez!

O bebum, do outro lado do balcão, sem levantar a cabeça:

- Engravidou o traveco? Não é à toa que ele é o fenônemo...