quarta-feira, 21 de maio de 2008
O barulho da rua
Como se não bastasse a “civilização do celular”, que bem retratou meu impagável mano-mestre, Bruno Ribeiro. A ordem é aproveitar o “tempo ocioso” para resolver coisas. Resolver... (solver de novo, não?) E, de quebra, ninguém fica sozinho - coisa horrível! Tem sempre um “amigo” à mão pra gente não ter que encarar o vaziozão... (té rimou!)
Como se não bastassem os butiquins infestados de televisores. Não há mais paz. Não há prosa, conversa fiada, bate papo. Onde antes a necessidade da superação das solidões encontradas – o freqüentador do buteco é, antes de tudo, um profissional da solidão -, homens e mulheres falando da vida, desabafando, mentindo, reinventando-se sem formalidades, sem o compromisso do porta-a-fora, hoje autômatos naufragados, passivos de dar dó; comentando, vez por outra, alguma notícia em voz alta. Consigo mesmos.
A praga que ora infesta nossas ruas, nossos ônibus e trens, são os insuportáveis aparelhinhos de ouvir sei-lá-o-quê. T-O-D-O-M-U-N-D-O tem uns fiozinhos pendendo das orelhas. Que diabos tanto eles ouvem? Antes, sei muito bem o que NÃO ouvem! Não ouvem o barulho das ruas, o barulho único e ensurdecedor das ruas, duro e necessário, melodia do nosso delírio coletivo. Não ouvem a piada que o sujeito dois bancos à frente contou para o companheiro de jornada, que não pára de rir. Não ouvem o comentário surreal do invariável bebum do ônibus – e, após, duvidam da sua existência. Não ouvem o operário assobiando pro mulherão que acabou de passar em frente à obra, flash de beleza a iluminar sua lida de concreto. Não ouvem o suspiro de dor da velhinha que se sentou, com dificuldade, ao lado. Não ouvem o amigo que encontra o outro na rua - tanto tempo!- e diz que agora tem mais um filho. Nem a sirene a bramir o desespero de uma vida ameaçada. Não ouvem a história triste. Nem a alegre.
Ora dirão os pascácios e os lorpas, como sempre quer meu bom amigo Fernando Borgonovi, todos irremediavelmente jovens, que as pessoas se defendem. Defendem-se. Taí, exatamente, seu crime. Defendem-se abstratamente e a priori do “outro” que a rua representa, do locus de interação e encontro, negação da privatização dos espaços, essa tão cara à nossa bela civilização. Defendem-se do encontro e do possível, e do contato e do toque que o encontro é capaz de gerar. Defendem-se do suspiro moribundo de um mundo real que ainda teima em sobreviver, por entre as frestas do Grande Simulacro onde paulatinamente nos internamos, todos.
Dirão, também, que há que se aproveitar e ouvir alguma música, alguma arte, antes que desperdiçar à toa os minutos preciosos, bestando sem fazer nada, ou mergulhados na barafunda de ruídos e fumaças. Pois a verdade é que, na ânsia de tanto aproveitar, na gana de não deixar passar, antítese absoluta do carpe diem clássico, tudo se faz e nada se faz. Ouço a música para não estar ali, naquele ônibus lotado e engarrafado no trânsito, na violência e na poluição. Mas também para não ter que ouví-la na intimidade e na solidão, eu-e-ela, sem desculpas de porquê. Ouço a música para não estar ali. Ouço-a ali para não ouví-la, afinal. E de repente a multidão não é mesmo mais do que um arquipélago perdido num mar de nada, separadas as ilhas por mudezas abissais.
Numa Cidade onde a família não janta junta, em que pais e filhos só se reúnem na frente da televisão; num mundo em que o papo-furado desaparece dos butiquins, onde os vizinhos não armam cadeiras nas ruas e os homens e mulheres não mais se reúnem para contar as histórias, trocar as receitas, aprender da vida e do trabalho: se não é na rua, meu Deus, onde mais será possível encontrar esse estranho e maravilhoso ente que atende por “Outro”?
O aprisionamento da audição não-seletiva é reafirmação do esforço da razão e da vontade de “ordenar” a experiência sensível e, ao mesmo tempo, de um domínio acachapante do elemento visual. A visão, o mais “dirigido” dos sentidos, como em nenhum animal mais, domina absolutamente nossa interação com o mundo, determinando nossa orientação, nosso apetite, nosso desejo, nossa libido. E assim nos vamos tornando animais que se relacionam com o entorno através de um único sentido, que só se dirige a escopos pré-determinados - para não dizer “pré-legitimados” - pela razão ordenadora.
E como se não bastassem, pois então, os fiozinhos de amarrar ouvidos, eis que os nossos ônibus e os nossos vagões de trem e as nossas esquinas (e até os banheiros!) estão agora a equipar-se de infinitos televisores de “programações dirigidas”, sem trégua, vinte-e-quatro horas por dia, zilhões de átimos por vida, o apelo incessante ao olhar. Ouvidos amarrados, olhares aprisionados. Atônitos e aparvalhados, (sur)presos diante do auto-retrato antecipado e impiedoso do crime que não cessamos de cometer.
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Matou a pau, véio. Há um bom tempo comentei com a Milena sobre essa nova praga. Até alguns corôas aderiram a moda. Eu, que pego o busão pra ir (1h10) e pra voltar (1h30) do trabalho, leio, leio e leio. E vejo e ouço. Outro dia ouvi uma senhora GRITANDO para um rapaz que, fingindo dormir, com a merda do fone no ouvido, ocupava o banco "amarelo" dos velhos. Depois dos berros da velhota, o safado "acordou", tirou o fone (ainda segurando-o perto do ouvido) e fez aquela cara de "Que foi?". Levantou-se, pôs o fone de novo e ficou em pé, olhando pro chão e pra algumas bundas passantes que renderiam uma punheta mais tarde...
ResponderExcluir"Ouço-a para não ouví-la ali, afinal." Que merda, não?
Beijo.
Mano velho: mais um grande texto dentre todos os teus grandes textos, reflexos da tua alma inquieta e pensadora, filósofo que és do nosso tempo, sábio ao extremo, tradutor do que me vai na minh´alma, essa alma incapaz de atingir os degraus que tu sobes sem esforço. Parabéns, querido. Meu beijo mergulhado na saudade.
ResponderExcluirUm dos melhores textos que li nos últimos meses, sem dúvida! E, me parece, o primeiro a escarafunchar com profundidade essa praga moderníssima dos aparelhinhos de ouvido. Tive, desde sempre, mortal implicância de quem sai de casa com aquilo. Esses aparelhinhos, eu acrescentaria ainda ao texto, estão assassinando - antes mesmo de nascerem - lindas histórias de amor. Lembrei-me de dizer isto porque da última vez que fui para São Paulo, para visitá-lo, estava eu no metrô e escutei a conversa de duas garotas - uma delas interessada num rapaz. Dizia uma para a outra: "Vai lá, pergunta as horas pra ele, fala qualquer coisa". Ela até aventou a possibilidade, mas deteve-se no primeiro passo quando viu que ele estava absorto, impenetrável, com aqueles aparelhinhos no ouvido. "Ele tá ouvindo música, vai parecer forçado se eu falar com ele". E desistiu, descendo três estações adiante. O infeliz, porém, continuou lá, com aquela cara de babaca, sem saber minimamente que poderia ter, no mínimo, engatado um bom papo com uma menina bonita - sim, ela era bonita - que se interessou por ele. O problema, querido, é que as pessoas sempre acham que estão se defendendo, quando na verdade estão é se alienando, se sufocando, se condenando à solidão do individualismo. Beijo!
ResponderExcluirFantástica crônica. Isso descreve toda uma época. Que beleza os "fiozinhos de amarrar ouvidos"!, seu Sze. Quanto à enxurrada de máquinas de fazer doidos engarrafando os interiores dos nossos transportes coletivos e de massa, uma me irrita mais do que tudo. Há décadas, as barcas Rio-Niterói exibiam letreiros proibindo ação de ambulantes e pregações religiosas. Era muito boa essa proibição. Atividade dentro da barca é ler, ver aquela baía linda, a bela São Sebastião de um lado e a não menos bela Praia Grande no outro lado da Poça. Ou ainda ler o jornal inteirinho (o que interessa) naqueles 20 minutos quase suíços (se fossem suíços, estragava), bater um papo baratinho e em voz não exageradamente alta (a não ser nos casos de piadistas impagáveis), e ainda as tradicionais rodas de porrinha, purrinha, palitinho ou basquete de bolso, em que os perdedores pagavam a cerveja do desembarque. Pois é, essa rotina maravilhosa foi quebrada por motivos ótimos nos tempos da ditadura. Lembro no governo Medici uma senhora com cara de dona de casa, sempre com bolsa grande e coisa e tal que fazia belos comícios lá dentro, reclamando da carestia e, com algum tato, do governo militar. O pessoal todo ouvia calado. Nunca soube quem era. Desconfio que era militante da ala boa do MDB. Este tipo de interrupção valia a pena. Hoje, amigo Sze, inventaram uma barca que faz o mesmo percurso em 10 minutos, o que é um atentado contra o tempo. E a bordo uma TV Barca ou coisa que o valha que fica passando anúncios de lojas de ferragens, curiosidades idiotas a pretexto de prestação de serviços e um desenho animado mudo com um urso americano chamado Barnard, na linha do Mr. Bean. Para piorar, os imbecis que usam Nextel e que ficam horas conversando sobre trabalho, dando ordens para se mostrar pras meninas a bordo, aqueles PRRRRIIIIINNNNSSSS que enchem o saco da gente e os retornos ainda mais irritantes dos interlocutores igualmente idiotas, e foda-se a privacidade (não confundir a necessidade que temos de alguma privacidade com individualismo). Bacana é quando alguém resolve encarar um desses parlapatões e diz que aquela algaravia não é da conta de ninguém. Melhor ainda quando outro passageiro se soma ao protesto, e mais um ou dois, e o imbecil do Nextel perde o rebolado ou faz cara feia. Parabéns, Fernando José Szegeri, pela monumental sacada.
ResponderExcluirCada vez mais robôs, mais de lata, mais frios, mais bitolados. E cada vez menos humanos, menos de carne, com menos calor, e menos pensantes.
ResponderExcluirGrande texto velho, como já escreveram os três mestres aí em cima, matou a pau.
beijo.
Na verdade os mestres são quatro: Favela, Edu, Bruno, e Zé Sérgio. É que já são quase três da matina, já tou dando nó nos miolos.
ResponderExcluir...e, no mínimo, passou no
ResponderExcluirJoaquim pruns maracujás, né Cereal? :-)
Queridos, obrigado. É bom escrever (só) para vocês cinco. Precisa de mais não. Precisamos armar outro "sínodo".
Beijo
Esqueci: tem o Velho também! Seis! Mas que seis!!!
ResponderExcluirSzegeri: você sempre tão centrado e ponderado, me responda...
ResponderExcluirPor que a dinda, que escreve testamentos em nossos blogs, não abre um blog só dele, pô?
Beijo.
Galinho, pensei isso hoje... Aliás, devíamos mesmo todos para com esses estrelismos e fazer um super blogue único e avassalador.
ResponderExcluirTá bom, porra!, vou mandar comentários mais curtos.
ResponderExcluirÔ Fernando, eu sempre paço por aqui, meu caro. Escreve pra mim também, seus textos são bacanas. Fazem uma falta danada quando não escreve.
ResponderExcluirAbraço
Opa! Acabei de abrir o danado do computador depois de quatro dias maravilhosamente isolado em Paraty Mirim. Belíssimo texto, meu querido. Belíssimo!
ResponderExcluirBem vindo de volta, Bàbá! Paraty Mirim cuja simpatia da população local é inversamente proporcional à beleza solene daquelas ruínas seiscentistas, não é não?
ResponderExcluirEu tb leio, meu irmão. É que, adepto da introspecção que sou, e pouco afeito à arte que você domina com maestria, me eximo de comentar com freqüencia ao lado dos grandes.
ResponderExcluirBeijo grande, saudade. E parabéns pelo belo texto.