sexta-feira, 27 de abril de 2007

Fernando para Otto*


Rio, 4 de Agosto de 1957.


Otto,

Confesso que sua carta me deixou meio irritado. Como você, talvez eu também esteja deprimido, e, por motivos óbvios – depressão esta cuja existência não lhe pode ocorrer, absorvido que você anda sempre com a sua própria. E os assuntos que você aborda são delicados – mais delicados que sua maneira de abordá-los. Em todo caso, vou tentar responder.

Me desculpe, mas não posso concordar com você em que deus seja apenas “Justiça Punitiva” e que “todo o sentimento de compaixão, de compassividade, de compreensão” seja “puramente demoníaco”. Evidente que eu sei o que você quer dizer, e é verdade que o Deus bonzinho, o Deus camarada, não existe. E eu não estou apelando para Ele, conforme você quis dizer. Nossa concepção da Justiça Divina difere muito, e creio neste ponto que estou mais próximo dos Evangelhos que você.

Para mim, Deus não funciona apenas no sentido negativo, “você vá para o diabo” - “você pode entrar”, porque “você fez o diabo” - e “você não fez nada”. Aí não pode escapar mais da parábola do publicano e do fariseuu – ainda que não façamos dela uma desculpa: não podemos escapar.

Quero dizer o seguinte: para mim, Deus não se limita a mandar para o diabo os que transgrediram a lei e a deixar entrar os que a respeitaram. Há algo mais: há a prática do bem, há o exercício deliberado da virtude – exercício voluntário, macerado e cheio de sacrifícios (e de aparentes contradições, que desencadeiam a contradição alheia). Assim: o critério de julgamento não será apenas negativo, condenando os que praticaram o mal e salvando os que não praticaram. Será afirmativo, pedindo algo mais: a prática do bem – que inclui, por exemplo, não julgar para não ser julgado; e isso é compaixão, compassividade, compreensão. Deus pode não tê-las, no sentido humano da palavra, mas exige que você tenha, por exemplo, para com meus problemas. (O que você, se tem, nunca demonstrou.) E isso exige amor – aqui chegamos na maior das vurtudes, que é a caridade. A que faltou ao fariseu para com o publicano e por isso esse saiu justificado, aquele não. O fariseu não era virtuoso? Não cumpria rigorosamente os mandamentos? E o publicano não era um bandalho que nem tinha coragem de entrar na igreja? Sem esse critério afirmativo que informa o julgamento de Deus, como você explica isso? E o Evangelho de hoje, oitavo domingo depois de Pentecostes? Eu também não explico, mas a minha intransigência para comigo eu não estendo aos outros, privando-os de compassividade, compaixão, compreensão. Quem sou eu para dizer como Deus deve admitir ou expulsar aqueles que vão bater à Sua porta?


E veja a incoerência: preocupado demais em saber como o diabo procede e com suas artimanhas, se esquece que não basta escapar dele para entrar no céu. Você, dentro de sua vida arrumadinha aí em Bruxelas, junto de sua mulher e seus filhos, cercado de conforto espiritual de uma vida realizada e defendida do demônio, passa a ver a presença dele nos outros, como um meirinho anunciando a chegada do Grande Inquisidor. Mas só porque um crítico escreve contra o seu livro, imediatamente você o ofende, insulta, despeja sobre ele os mais indecentes xingamentos. (Neste particular eu não poderia estar com você, porque o Wilson Martins escreveu um excelente artigo sobre o meu livro... Sou suspeito, e eu não li o que ele escreveu sobre o seu.) Na minha opinião, a sua reação é muito pouco canônica, para quem se dispõe a anunciar a presença do demônio na vida dos outros.

Sejamos mais objetivos (coisa que você não foi): a que, exatamente, você se refere? Fala que lhe escreveram dizendo que eu “assento planos de estabelecer-me em bases novas, renunciando a todo o meu passado, corando quem sabe as amarras com o FS de até aqui” etc. E pergunta: “Será possível, fora do chamado caminho cristão, inventar um homem novo, tão novinho em folha?”

Para princípio de conversa, quem é esse missivista? Se eu tiver de “assentar planos” de alguma coisa, como ele diz, pode ficar tranqüilo que serei o primeiro a lhe comunicar. Se bem que não sei a que vem essa alusão. Ao meu desquite? Quanto a isso, não há nada que você não saiba, isto é, que a despeito de todo o me esforço para evitá-lo, tive de me conformar e ele está em vias de solução amigável, na medida do possível, dentro da cordata e bem sucedida solução. Tudo mais sobre esse assunto, não creio que você seja a pessoa mais indicada para julgá-lo, só agora se preocupando. E depois de um silência seu de dois anos, na espera em fiquei de uma palavra sua, sobre o que você diretamente já sabia que era o meu problema. O quê, agora? Aminha nova relação? Também não entendo bem a sua competência para me falar na “justiça punitiva de Deus” quanto a este assunto. Na próxima carta seja mais explícito. Não sei se nesse pretenso “estabelecimento de novas bases, etc.” parar a minha vida a que você se refere, e que de resto não existe, você está se referindo a isso. Se estiver, é estranhável também, não tendo você nunca demonstrado interesse pela gravidade que o problema representa para mim, como fizeram o Hélio, o Marco Aurélio Mattos, o Castejon Branco e outros amigos. E o problema é o mesmo cuja existência você já sabe, não havendo perspectiva de mudança.

Mais o quê? Meus filhos? Mas se você próprio reconhece que nunca se ineressou por eles senão à distância, genericamente, “na repercussão que tudo isso pode ter na vida deles”, “as crianças são muito sensíveis”, etc. (e nem ao menos se lembra que é padrinho de um deles), não tendo nunca manifestado um interesse mais direto em relação a eles.

Resta o cartório: quanto a este, é verdade que me demiti. Mas esse ponto você também já tinha conhecimento, pois há muitos anos eu lhe dizia que tinha a intenção de deixá-lo assim que tivesse ocasião – e a ocasião chegou. Como você vê, não “assentei plano” nenhum que você não soubesse. Resumindo: o desquite já era de seu conhecimento, minha nova relação passou a ser. A situação de meus filhos também. Porque de súbito, aí de Bruxelas, você se põe a me ameaçar com o demônio de maneira tão furibunda? Minha vida continua a mesma. Não é verdade que eu “ando sumido” (tenho ido ao Pelicano toda santa noite) nem que “não queira ver ninguém”, ou que esteja entregue à “renovação de minha vida”. Você anda mal informado. Não há renovação nenhuma, senão aquela em que sempre me empenhei, e que por fraqueza tenho colhido tão poucos resultados. Fraqueza que você não leva em conta nos que confiam na Misericórdia Divina, mas que Deus talvez leve – na minha suspeita opinião, pelo menos.

Mudando de assunto, fiquei satisfeito de saber que vocês estão devidamente instalados – e que você já comprou cigarros. Aqui corriam notícias, via Ibrahim Sued, de que você estava desgostoso em Bruxelas. Cheguei a pensar em escrever uma peça chamada “OTTO DESGOSTOSO EM BRUXELAS”. Por falar nisso, estou escrevendo uma peça divertissement. (En passant: sua máquina está precisando de uma fita nova. E quando fechar o envelope, cuidado para não colar o papel, de si já meio ordinário, e azul, como a cor da fita.)

Nosso tempo é evidente que acabou. Mas quando você voltar encontrará tudo no mesmo, ou tudo mudado – como no fundo é a triste realidade dos que voltam. Você voltará.

Afinal, ficou amigão do nosso bonzo Juarez Távora? Crises e mais crises – mas de política, mesmo, aqui não há novidade: tudo na mesma. Hoje é dia 4 de agosto, passei por acaso na Rua Toneleros, rezei uma Ave-Maria pelo major Vaz, que morreu mesmo, você lembra? E continua morto. Fui convidado para dirigir a Revista da Semana, não aceitei, indiquei o Ferreira Gullar para secretário, não agüentou o puxado uma semana, saiu. O Diário Carioca em nova fase, Rosário Fusco de crítico. Livro do Dalton Trevisan aqui comigo para entrega definitiva à editora, contos definitivos. Melhorou pra burro, selecionou, cortou, ajeitou. Não me lembro o que te falei sobre o teu “Boca do Inferno”, mas escreva romance. Encontrei Padre Agnaldo no Mosteiro de São Bento (todos lá perguntam muito por você, leram seu livro, Dom Basílio especialmente, Dom Marcos, Dom Justino, comentários apaixonados). Disse (P. Agnaldo) que seu pai ficou arrasado com o Boca, “logo o meu filho, um educador! Que concepção de infância!” Mas ele acabou gostando.

Vou escrever mais a você, serei mais noticioso. E pare com esse negóciod e demônio, que diabo! Depois de “La Part du Diable” do Denis de Rougemon, você não leu mais livro nenhum: “Tudo é o DEMÔNIO...” Não vem com essa! Tudo é Deus, seu capeta. O resto é que é o demônio – que não é nada, ou seja: é o NADA.

Otto, pelo amor de Deus, pense mais em Deus e menos no demônio. Saber que ele existe é tão pouco, melhor que não soubesse. Além das palavras rituais do batismo, sugiro o Sermão da Montanha.

E voltado ao assunto inicial, já tendo passado a minha irritação: não se preocupe, que não se mudou nada de fundamental em mim. Continuo o mesmo, tentando acabar com meus problemas, antes que eles acabem comigo. Você não me ajuda em nada, me ameaçando com a danação eterna. Ajudaria mais tentando entender minhas aflições e não projetando nelas as suas próprias. Afinal de contas, D. Marcos entende mais de demônio do que você, e não me falou nele nenhuma vez. Falou em Deus, que é palavra boa de se ouvir. Mas não um Deus que manda os outros para o diabo, que diz “misericórdia divina uma ova!” Outro Deus, aquele verdadeiro, que não abandona aqueles que não O abandonam. Eu não O abandono.

O livro das “Nove histórias em grupo de três” do Autran é realmente Dourado, ou seja, como se esperava muito bom, tem duas ou três histórias de primeira ordem. Falar nisso, chegou a ver o artigo do Tristão sobre meu livro? Cita você e o Hélio Pellegrini. Tenho estado com ele (Pellegrini), mas não no tom Juiz x Réu que você preconiza. Gostaria que seu tom fosse outro: “Me dê notícias suas. Como vai Elianinha? Já ficou mocinha? Não diga! É ótimo que você dê tanta assistência a ela, se mostre sempre participante, compreensivo, converse sempre com ela... E o desquite? É, realmente essas coisas são chatas, mas com a ajuda de Deus tudo há de terminar bem, você fez o que pôde, não fez? Ou quem sabe se pode fazer ainda alguma coisa? Em que eu posso te ajudar? Enfim, você não é nenhum louco, não está precisando de mim ocmo psiquiatra, deve ter lá suas razões, você sabe o que faz... E sua vida, sua literatura, sua solidão? Seu livro foi bem sucedido, agora é preciso partir para outro. Vai com calma, que a coisa vem. Enquanto isso você vai ganhando a vida com suas crônicas e tudo isso e claro como água, e é límpido como o céu, porque imundo é o que sai do homem não o que nele entra...” Assim é que eu gostaria que você falasse, Otto. Assim é que eu quero que seja a sua próxima carta. Estou cansado da linguagem de belzebu que você assume. Prefiro conversar com minha mãe aqui hospedada comigo e que está me chamando agora. Ela nunca me falou no demônio, mas vive me dando a benção desde menino, vive me falando em Deus.

Fecha a porta do inferno, e me escreva dando notícias de Helena-André-Bruno e de tudo, que responderei com celestial pontualidade.

Abraços a eles, a você, do seu amigo

Fernando

12/8/57 – Esta carta estava escrita há uma semana. Não mandei por falta de envelope. Vai agora, senão teria que escrever outra – que escreverei quando receber resposta sua. É toma lá, dá cá. E nada de novo aconteceu nesta semana. Senão esta coisa estranha e paradoxal: sua carta, afinal, me fez um grande bem... Depois explico. Outro abraço do

F.


*Carta de Fernando Sabino para Otto Lara Resende in Cartas na mesa, Rio de Janeiro: Record, 2002, pp. 187 e ss.

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Otto por Nelson*


“Muita gente não entende o nome da minha peça. Sujeitos me perguntam, numa amarga perplexidade: '- Por que Otto Lara Resende?' Entendo o espanto, entendo o escândalo. Normalmente só os defuntos, e, ainda assim, só os defuntos monumentais é que entram na ficção. Mas o Otto está aí, escandalosamente vivo e contemporâneo. Nós podemos apalpá-lo, farejá-lo, e, até, pedir-lhe dinheiro emprestado.


Amigos e parentes perguntam ao próprio: 'Você brigou com o Nelson?' Assim é o mundo. Importente de sentimento, o ser humano precisa ver o desamor por toda parte. Ninguém admite que o nome de minha peça é uma homenagem, apenas uma homenagem, uma cândida, límpida, inequívoca homenagem. Sou amigo do Otto. Gosto dele e abro-lhe as portas da ficção. E todo mundo sabe, desde Bulhão Pato, que a ficção é altamente promocional. Entrar numa ópera, num romance, num drama, ou numa simples burleta de Freyre Júnior, mesmo de carregador de bandeja, já vale a pena. Seu nome está nos anúncios, nos cartazes e na fachada do teatro.

Mas a simples amizade não é toda a explicação do título. Tudo, na personalidade do Otto, é um convite à ficção. Ele pertence menos à vida real e muito mais ao romance, à poesia, ao puro e irresponsável folclore. É ume scândal vê-lo no Procuradoria do Estado, a redigir pareceres sobre esgotos e padarias. O justo seria encontrá-lo impresso, em alguma página de Flaubert, ou mesmo de Eça ou, ainda, de Dickens.

Outra coisa que empurra o Otto para a ficção: a angústia. Não se pode imaginar sujeito mais sofrido. As suas depressões são, hoje, famosas, consagradas e, digo mais, invejadas. Explico: 'invejadas' porqe o herói, o santo, o gênio ou o profeta do nosso tempo há de ser neurótico. O sujeito se angustia porque se opõe a um mundo que fracassou. Por vezes o Otto aparece, na Procuradoria, macerado, como um Werther.

Outro elemento folclórico do amigo: a asma. Alguém dirá que a asma não passa de um problema respiratório. Assim pensa também a medicina oficial, com sua miopia crassa e ignara. Mas no caso do Otto, é diferente. Ele sofre de uma asma ética. Quando os brônquios do meu amigo começam a chiar, sabemos que o mundo vai mal. Se cai uma bomba em Hiroshima; ou se há um bloqueio; ou se a China invade a Índia; ou se o vizinho espanca o caçula – lá começa a asma do Otto. É curioso. Diante da iniqüidade, outros saem por aí derrubando bastilhas, decapitando Marias Antonietas, varrendo impérios. O Otto não, o Otto reage com a dispnéia. Mas uma coisa vos digo: no dia em que o homem amar o próximo como a si mesmo, Otto ficará eternamente bom da asma.

É ponto pacífico que muitos dividam de sua existência física. E quando ele se diz Otto Lara Resende, e como tal se apresenta, o sujeito fica entre duas hipóteses – ou da impostura, ou da piada. O seu mito está montado. Outro dia, ele apareceu na TV. As senhoras tomaram um susto. Era como se,d e repente, lá aparecesse a cobra-grande ou qualquer outra figura do folclore fluvial – de sapato, paletó e gravata.

Eu sei, por fim, que não faltará quem denuncie este depoimento como uma 'gozação'. E daí? Só os imbecis não resistem ao ridículo, só os imbecis não sobrevivem à piada. O verdadeiro amigo tem uma ferocidade jocunda e salubérrima. Eu sou esse amigo que não pode ver o Otto sem querer metê-lo numa anedota. Ele próprio faz auto-piadas. Quando soube que ia ser título da minha peça, cochichou para mim, com o olho rútilo: Eu pago o gás néon! Eu pago o gás néon! E assim ele selou a sua radiante simplicidade, com o título da minha peça – Otto Lara Resende.”


*excerto de entrevista de Nelson Rodrigues a Carlos Alberto Barreto, publicada originalmente em O Cruzeiro, edição de 22/12/1962. Apud Arquivinho nº 3 – Otto Lara Resende: Retratos escritos, Ed. Bem-te-vi, 2006

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Vida e Poesia

Vinícius de Moraes


Hoje eu acordei possuído da maior ternura por Otto Lara Resende. Otto tem sido para mim, ao longo de vinte anos de convívio, um amigo exemplar; daqueles que a pessoa não sabe bem o que fez para merecer. Mais habituado a dar do que receber, Otto usualmente se omite na relação, recorrendo à facilidade verbal e ao gênio que tem para a frase cunhada como uma espécie de cortina de palavras protetora de seu amor, que pratica à socapa, com malícia e disfarce bem mineiros.

Mas que é um grande amoroso, disto não haja dúvida. E daí o segredo da imantação que exerce sobre seus amigos, que acabam todos escravizados à sua escravidão. Eu dificilmente posso passar mais de dois dias sem lhe telefonar. Quando estou no estrangeiro, é das ausências que mais pesam. Quantas vezes já não disse, a perambular trist e sozinho pelos lugares mais esdrúxulos, o que não daria para ouvir, súbito, a meu lado, o seus passo curto apressado e suas palavras bem escandidas; ou o refrão que em geral canta, com afetação gutural, quando me vê e que passa a persegui-lo horas a fio.

Professor de ciências naturais
É o Vinícius de Moraes


Há amigos a quem querer bem se vai tornando, à medida, um sacrifício, de tal modo eles “bagunçam o nosso coreto”, como se diz por aí. Amigos que impõem a própria desarmonia, violentam a nossa intimidade, nos agridem quando bebem e estão sempre a nos pedir prestações de contas. São os tais que a gente gostaria de fazer “virar fada” quando se entra numa boate, porque o mínimo que pode acontecer é se brigar com a emsa ao lado. Eles têm o dom de provocar o assunto mais explosico para o nosso convidado, ou assumem o direito de achar que as moças que estão conosco adoram ouvir palavrões ou ser manuseadas. E quando já chatearam ao máximo, partem ofendidos, sem pagar a conta, depois de nos fazer ver que estamos ficando “muito importantes” ou “não somos mais o mesmo”.

Outros, pelo contrário, como o Otto, parecem estar sempre esticando uma mãozinha disfarçada para nos ajudar a carregar a nossa cruz. São seres de bons fluidos, que, quando a gente encontra, o dia melhora. Eles têm o dom da palavra certa no momento certo, e mesmo que tomem o maior dos pileques jamais se tornarão motivo de desarmonia. São seres respeitadores ao máximo da liberdade alheia, da “verdade” alheia e da mulher alheia. E não é outra a razão pela qual Otto Lara Resende tem tantos “deslumbrados”, dos quais o mais conhecido é sem dúvida seu maior “promotor”, o teatrólogo Nelson Rodrigues.

Eu, às vezes, conhecendo-lhes os horários, sigo-o em pensamento pela cidade – de casa para a Procuradoria, da Procuradoria para o jornal, do jornal para casa onde entra tarde e cansado. Como numa panorâmica tirada do alto, vejo-o atravessar a Avenida Rio Branco, acompanhado de um ou outro amigo jornalista, a discutir editoriais em função do momento político: um homem sempre “por dentro” de todos os assuntos, graças à confiança de que desfruta entre os poderosos e da qual nunca tira proveito próprio. Lá vai ele em seu passinho ligeiro, uma figura meio gauche na qual os ternos não assentam bem , as calças perdem rapidamente o vinco e as pontas do colarinho viram. Usa o olhar baixo, preso ao bico dos sapatos e não gosta de demorá-lo demasiado sobre o do seu interlocutor: mas não, como em seu conterrâneo Carlos Drummond de Andrade, por tristeza, orgulho e alheamento do que na vida é porosidade e comunicação – e que conferem à poesia do grande itabirano a sua singular dignidade; antes por medo de pôr-se a gritar de repente que já não agüenta mais de tanto amar os outros e não sabe como dar o seu amor, que transforma em serviços prestados: um empreguinho aqui, uma intervenção junto a um banco ali; um pronunciamento bem escrito para um líder de letras canhestras; uma visita oportuna a um casal amigo em vias de rompimento; uma paciência inesgotável para as confissões e explicações de temperamento dos que andam perdidos nos labirintos da personalidade. Otto chega ao auge – o que para mim é motivo da maior admiração e iveja – de levar, mesmo sem ineresse, ao futebol no Maracanã, em pleno verão carioca, seus filhos André e Bruno: feito para mim só comparável à travessia do Kon-Tiki.

Ótimo marido, ótimo filho, ótimo pai, ótimo amigo, ótimo profissional, ótimo tudo – que mais dizer dessa no entanto misteriosíssima figura chamada Otto Lara Resende, ou melhor, o agente 001? Em fase de “cigarra”, como agora, nunca ninguém, poderá dizer tê-lo ouvido cantar em sebe alheia.mas ninguém tampouco poderá jamais saber o que está realmente planejando. Influindo no problema da sucessão presidencial? Bem possível. Nos destinos da ONU? Quase certo. O que vai fazer, por exemplo, quando, em meio à conversa mais animada, ausenta-se subitamente e volta meia hora depois, de cara esperta? O que fabrica no banheiro, onde passa a maior parte do seu dia?

Estará ele em vias de descobrir o filtro da eterna amizade?


(in Vinícius de Moraes - Poesia completa e prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguillar, 1988, pp. )

terça-feira, 24 de abril de 2007

Semana Otto Lara Resende


No próximo dia 1º de maio, completam-se oitenta e cinco anos do nascimento desse gigante brasileiro chamado Otto Lara Resende. Esta página dedica-se modestamente, desde sua sabida pequenez, de hoje até a próxima terça-feira, a celebrar sua memória, sua obra, sua significação e seu legado. Palavras melhores e mais autorizadas que as minhas ocuparão a coluna nos próximos dias. De toda sorte, achei não ser de todo má a idéia de um breve intróito, a despeito da ingratidão da tarefa: escrever sobre quem, talvez acima de qualquer outro, tenha cultivado, mais que um zelo, um verdadeiro pudor no trato da palavra escrita.

Não penso ser o caso, exatamente, de uma apresentação. O escritor é uma reminiscência ainda bem presente nos meios leitores, embora tenda a esvanecer-se para as gerações posteriores à minha, que não desfrutaram o privilégio de conviver com a sua presença de jornalista, viva, atuante. Porque se o personagem Otto Lara Resende foi, já nas minhas primeiras leituras, absolutamente presente, íntimo, corriqueiro até, o encontro com seu texto veio bem mais tarde, através de sua coluna diária naquele gracioso ano e meio, talvez, de sua passagem pela Folha de S. Paulo. Parece-me, en passant, que o único acerto, com “A” maiúsculo, do jornal nestes vinte e sete anos que o venho lendo resignadamente, de má-vontade. Mas não era assim naquele 1991, 1992. Como em nenhuma ocasião mais, eu ansiava pelo diário a cada manhã, acordava mais cedo no domingo; despistava, como criança, lendo as outras colunas, só para aumentar a expectativa; até não ter mais jeito e me botar a sorver as suas palavras que soavam francas, precisas e tamanhamente inspiradas, como jamais pude supor possível numa coluna de jornal.

Coisa, hoje, difícil de explicar; difícil mesmo de acreditar – até para mim! Para mim que aprendi a ler e, sobretudo, aprendi o prazer da leitura através de autores e textos escritos exatamente para jornal: Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, o Drummond cronista, o quarteto absoluto dos primeiros números da impagável coleção “Para gostar de ler”; depois Antônio Maria, Manuel Bandeira, Vinícius, João do Rio, Lima Barreto, e todos mais que eu fosse descobrindo dominadores dessa arte magistral de cerzir retalhos de poesia no pano roto da vida cotidiana estampada nos jornais. Mas desses todos não pude, com poucas exceções, saborear o texto vivo, quente, pulsante, que é o encantamento mais próprio da crônica. Otto Lara mesmo tenha talvez dado a melhor definição do fenômeno, ao comparar o texto de jornal a uma estação ferroviária, após a passagem do trem: sem nenhum interesse mais. É certo, contudo, que muitíssima literatura sobrevive nas crônicas de um Braga ou de um Barreto, setenta, noventa anos após terem sido escritas, de maneira que não se possa efetivamente falar em desinteresse: antes, talvez, a melancolia de quem olha uma estrela sabendo-a não mais ali há tantos milhares de anos...

Pode soar exagerado, mas havia um poder oculto naquelas pouquíssimas linhas diárias, capazes de criar uma dependência que desenvolvi à semelhança do que já confessou a mana Mariana Blanc em relação aos bons tempos de Luís Fernando Veríssimo no Globo. Descontada, pois, a habitual boutade do mestre, a atualidade, o “frescor” dos textos diariamente desovados, podem ter jogado a seu favor para explicar a fascinação que exerciam sobre todo um contingente de leitores (e sobretudo leitoras!) já um tanto desacostumados da presença de grandes cronistas, naquele início dos 90, nos periódicos mais destacados. Mas outra explicação ainda, certo mais ousada, me parece arriscável. A pena do grande escritor pode ter, de certa forma, pressentido o caráter quase testamentário daquela última ocupação. E revestida da extraordinária força brotada de um irreproduzível amálgama de sabedoria, competência e urgência finais, aquela derradeira fase possa, conscientemente ou não, ter encenado o epílogo possível à altura do seu espírito e de sua presença incomparáveis.

Tanto mais haveria para se dizer. Mas há quem melhor o faça: com vocês, Otto Lara Resende.

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Mandavy kyvy kyvy'i

Xeramõi João da Silva Verá Miri


Então, meus netinhos...

Estas são as palavras transmitidas a nós por Nhanderu Papá, nosso Primeiro Pai. Nhanderu Papá, ao gerar o mundo, já previa tudo o que ia acontecer conosco. E isto vocês não esqueceram. Sinto uma forte emoção em minha alma divina. Eu já tenho muita idade. Por isto vou explicar e quero que vocês me escutem.

Este canto que cantamos ilumina nossos primeiros passos na vida. O significado desses cantos vocês não sabem ainda, meus netinhos. Nhanderu Papá, quando chegou à Terra, desejou que o canto ilumine a nossa vida. Nosso Pai criou a Terra e nela vocês podem brincar e cantar. É o que Ele deseja. Muitas coisas já foram esquecidas. Mas é assim, meus netinhos, o que vocês transmitem me faz lembrar muito. Por isso eu vou falar agora.

Deus ensinou as crianças a brincar. Nossos avôs e avós, com sua sabedoria, ensinaram a brincadeira a todos os seus filhos.Todas as crianças, de todas as idades e tamanhos, brincavam em nossa Terra Sagrada. Brincavam inspirados pela sabedoria divina. Cresciam inspiradas na sabedoria divina. Cresciam bonitas, fortalecidas e iluminadas pela Verdade e alcançavam o Ser Sagrado.

Hoje vivemos uma vida diferente do passado. Vou ensinar para vocês os cantos que todos cantavam antigamente quando brincavam. Todas as aldeias vão agora ouvir estes cantos. Todos vão saber como era o nosso canto. Vão se perguntar: isto era a verdade ou não era? Todos vão saber que esta é a nossa verdade. Vou transmitir para todos vocês para todas as aldeias, nossos parentes no centro da Terra, no Paraguai, todos os que vivem na Terra vão escutar. É para isto que estamos registrando esses cantos. Nossos parentes que estão além do oceano também vão escutar. Ao ouvir estes cantos, cada um se lembrará de nossas tradições e ensinará seus filhos a brincar novamente.

Deus ensinou a fazer as brincadeiras infantis. E as crianças se colocavam uma ao lado da outra, sentadas, para receber os ensinamentos. Andando de um lado para o outro, em frente às crianças, um velho sábio ensinava as crianças a cantar e a brincar. Ele cantava assim:

Mandavy kyvy kyvy'i
Mandavy kyvy kyvy'i
Mandavy kyvy kyvy'i


Mandavy é um bichinho, um besourinho que costuma fazer um buraquinho na parede , próximo ao chão. As meninas cantavam e dançavam em volta do lugar onde os bichinhos ficam. Em seguida, as meninas sopravam dentro do buraquinho até o bichinho sair. Pegavam o bichinho e deixavam que ele mordesse o bico do seio. E assim elas se fortaleciam. Depois, o bichinho era deixado novamente em sua casa. Isto era feito para que elas tivessem muito leite quando os seus filhos nascessem. Elas faziam isto com muito respeito e acreditando nas palavras ensinadas por Nhanderu. Elas então ficavam alegres e cantavam assim para reverenciar Nhanderu:

Ero tori, ero tori tori
Ero tori, ero tori tori
Ero tori, ero tori

Ero tori, ero tori tori
Ero tori, ero tori tori
Ero tori, ero tori

Ero takua, ero takua takua
Ero takua, ero takua takua
Ero takua, ero takua


Assim nossos avós ensinavam a cantar. Para que se dizia 'Ero Takua'? Para nossas meninas se lebrarem de Nhanderu quando crescerem e se lembrarem de tocar o bastão takuapu na Casa da Reza.

Estas coisas vocês não sabem mais, meus netinhos. Antigamente nossos avós praticavam estes cantos e alcançavam a Terra Sem Mal impulsionados pelo vento sagrado. Hoje nós estamos aqui procurando lembrar. Isto eu sinto em meu coração. Eu vivo sentindo isto em meu coração. Vocês cantam e se lembram de Nhanderu e da trajetória de Nhamandu, nosso Deus Sol. Quando Ele chega, toda nossa Nação se levanta.

Assim nós recebemos a divindade, meus netinhos.


Xeramõi João da Silva Verá Miri, 92 anos, é cacique e pajé Guarani Mbya, da Aldeia Sapukai, Angra dos Reis, Rio de Janeiro. Depoimento gravado em idioma Guarani no esplendoroso álbum Ñande Arandu Pyguá – Memória viva Guarani, que se pode conhecer aqui. A tradução é de Marcos dos Santos Tupã

segunda-feira, 16 de abril de 2007

A existência possível (cont.)

(PARTE II)


A sobrevivência da negatividade


Todo estabelecimento de uma forma verdadeira, de um modelo ideal a ser perseguido admite logicamente a possibilidade de uma determinada forma da existência vir a suprimir todas as negatividades da existência dada, visto que a forma dada nada mais é do que a forma ideal, descontadas as mazelas decorrentes da má condução circunstancial no presente da existência. Mesmo na seara do pensamento crítico, toda vez que um determinado estado de coisas é tido como o estágio final de um processo histórico, esta súbita ressurgência de um estado de coisas positivo (quer dizer: não negável) assume papel imobilizador do processo histórico de emancipação humana.

Assim como a classe burguesa foi a classe revolucionária da superação do antigo regime e passa a, apartir da consumação da revolução, engendrar instrumentos de conservação da nova ordem instaurada, da mesma forma o pensamento político de Hegel que foi instrumento crítico fundamental para a consolidação filosófica da revolução liberal, trasforma-se incontinenti em instrumento conservador do estado de coisas “legitimado” a partir da implementação da nova ordem sócio-econômica burguesa. O estágio final da evolução política do espírito absoluto prussiano engendrara uma ordem em que puderam se encontrar a perfeição da liberdade e igualdade formais, pela subsunção dos indivíduos livres à racionalidade do estado de direito. A condição miserável da classe proletária fica relegada a mera circunstância transitória até que se perfaça na prática a justiça idealmente representada pelo estado de direito e pelo livre mercado. Para superar a estagnação crítica do pensamento hegeliano (quando da identificação histórica do estado prussiano com a consumação da realidade engendrada pela razão) Marx teve que engendrar todo um esforço filosófico para a reintrodução de um elemento negador da ordem burguesa estabelecida: o proletariado e sua situação de eterno perdedor no jogo do capitalismo. Precisou, portanto, demonstrar que o funcionamento das estruturas da sociedade capitalista não levariam, por seu aprimoramento, à superação da condição historicamente desfavorável do proletariado, mas, muito ao contrário, tenderia a agravá-la; e que, conseqüentemente, a negação dessa condição só seria possível pela negação da estrutura ela mesma.


A parir de então, o pensamento crítico pôde voltar-se à negação dos fundamentos do modo capitalista de produção e organização social. E não tardou a deparar-se com novos desafios, quando as revoluções nacionais começam a abolir as formas de apropriação privada da riqueza, mas variadas mazelas da vida social não desaparecem concomitantemente. Da mesma forma, então, a matriz de um pensamento que tornou possível a formulação filosófica da abolição do modo capitalista de produção passa a ter função conservadora, anti-crítica, quando vem considerar que as negatividades sobreviventes nas várias experiências do chamado socialismo real foram decorrentes de desvios pontuais na “correta” aplicação do modelo formulado! Quando esse pensamento, portanto, perde a capacidade de compreender que a substituição da estrutura capitalista pelo socialismo de estado engendra ela mesma novas negatividades específicas, novas mazelas estruturais (entre as quais pode se destacar a falta de liberdade, a dificuldade na preservação e expressão da singularidade subjetiva etc.), estanca novamente na sua tarefa de construir uma outra existência possível.

Dito assim, por outro modo, sempre que o pensamento abandona o criticismo que busca a negação de uma forma dada da existência pelo cotejamento com uma outra existência racionalmente possível e adota um modelo, um parâmetro específico, um ideal qualquer que seja está renunciando inapelavelmente a ser um instrumento transformador da realidade dada, rumo a uma outra forma possível. Quais os parâmetros, pois, para a razão identificar as negatividades nas formas presentes da existência? O parâmetro é sempre o da outra existência possível! Há alguma liberdade na forma presente da existência social, mas há uma outra liberdade racionalmente dimensionável? Há bons ganhos numa determinada forma social instaurada, mas é possível conceber racionalmente uma outra forma onde as mazelas presentes não estejam intrinsecamente atreladas à estrutura desta forma presente?

Não seríamos tolos em negar que no âmbito estrito de uma dada forma social são possíveis graus diferenciados de liberdades, igualdades, possibilidades etc. e que o atingimento desses máximos possíveis nos limites estruturais definíveis de uma forma dada da existência depende do padrão de eficiência do gerenciamento dos mecanismos próprios inerentes ao modelo, vale dizer, que a correção de desvios, a adequação gerencial propiciará ganhos na comparação entre esse máximo possível diagnosticado e a situação circunstanciadamente considerada. Este não é o problema. A eficiência gerencial não é má em si mesma, pelo contrário. Só não podemos, em nome deste processo menor que representa a otimização das condições presentes em vista a um máximo que se inscreve no limite daquela estrutura abrirmos mão do processo maior e mais ambicioso de ampliação destes próprios limites! Ou seja, nem sempre é preciso derrubar toda uma estrutura para se obter um ganho na supressão das mazelas da vida, mas há que se ter em mente que este ganho geralmente não ultrapassa o caráter quantitativo. Os ganhos qualitativos implicam na negação de toda uma trama de estruturas que opera no sentido da construção daquele limite referido, ou acacianamente, o limite estrutural.

Dado este ponto de vista, nenhuma estrutura do mundo presente, nenhuma forma de organização, nenhum modelo, nenhum valor político ou ideologia é imune ao pensamento crítico, pois esse não se limita à comparação das formas presentes da existência aos limites reconhecido justamente a partir da aceitação apriorística da excelência dessas estruturas, valores, modelos etc. Ele vai além, denunciando extrinsecamente ao âmbito estreito das formas aceitas os limites que essas mesmas formas impingem à possibilidade de outra existência! Para o pensamento crítico, só a realização máxima da existência humana em seu universo infinito de possibilidades é parâmetro para a crítica racional. Por isso a dialética não cessa nunca, a negação permanece para sempre, enquanto não encontrarmos os termos derradeiros do desenvolvimento de todas as nossas capacidades. A negatividade permeará as formas dadas da existência sempre que à razão crítica for possível conceber uma forma superior, com limites mais dilargados para o exercício das potencialidades humanas.

Sempre que permanecer possível uma existência mais plena em liberdade, igualdade, justiça, conhecimento e todas as formas de realização humana, o pensamento crítico será o instrumento de superação das negatividades da existência presente. E como não nos é dado conhecer os limites dessa progressão, não nos é dado eleger de antemão o modelo ideal da existência humana possível. Compare-se, por exemplo, no conjunto de todo o conhecimento humano coletivo acumulado hoje e há 150 anos, quando muitos acreditavam ter a humanidade chegado ao ápice do domínio tecnológico e científico!!! Da mesmíssima forma como o pensamento hegeliano pôde enxergar no estado prussiano o ápice da realização da liberdade política e social...

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Salvo das Águas

Paixão amazônica de Martin Strel, segundo Szegeri


Em meio a um turbilhão de decretos municipais infames, delírios de generais desprezíveis (risos diarréicos: ninguém mais tem medo de vocês, por mais que vociferem seus impropérios boçais), vitórias desclassificantes, manifestos em prol de meliantes rabinos, da morte mais uma vez ignorada de um grande baluarte do samba (salve Tio Hélio!), fui, qual um moisés tupiniquim à mercê do seu próprio fracasso, miraculosamente salvo das águas por um herói mítico vindo de uma terra fria e distante para resgatar minha esperança e minha fé.

Ele é esloveno, se chama Martin Strel. Já havia nadado interirinho o Danúbio de Vovó, o Mississipi de tanto sangue negro derramado, o Yangtzé chinês. Muitos pensaram que só estaria atrás de um novo recorde, do nome no tal livro, essas coisas desimportantíssimas que a modernidade vai criando para disfarçar o nada que campeia e nos traga. Mas não sabiam de nada. Não sabiam que ele precisava levar a termo a sua missão para me resgatar a mim, Fernando José Szegeri. Para cumprir o destino a que me faltaram a coragem ou a força. Fazendo a nado a travessia do Solimões-Amazonas, da nascente à foz e ainda além, Martin Strel, em sua própria Semana Santa, salvou minha alma da danação eterna.

Por que estranhas e misteriosas razões o seu destino estivesse tão absolutamente atrelado ao meu, como um cristo particular, não saberia dizer; e esses mistérios são mesmo insondáveis. Mas sei que ele se dispôs a fazer em meu lugar a travessia necessária a que sorrateiramente, ao longo da fugacidade dos anos, fui opondo as falsas urgências, as duvidosas prioridades. E para que a obra salvífica fosse completa, foi necessário que me dissesse, olhando nos olhos da alma (embora não desconfie disso): “Vou fazer por você! E não quero barco. Vou fazer porque tem que ser feito. Você sabe o que acontecerá se não for feito. E pra que nenhuma dúvida mais paire, vou fazer a nado. Sozinho”.


“Pelas comunidades ribeirinhas, era acompanhado
com encanto e desconfiança. Exausto, cheio de arranhões
e com uma máscara que só lhe deixava os olhos e a boca à vista,
às vezes parecia assustador”.


Os ribeirinhos acompanharam a sua paixão com o encanto e a desconfiança dos amazônidas. Aquele jeito de dizer calando, os olhos caboclos perdidos nas imensidões de florestas e almas e encantarias. Eles o esperaram a cada estação de sua via crucis, acenando, acolhendo, admirando, desconfiando. Porque aparece mesmo por ali cada assombração... É de se desconfiar. Por mais que se esteja acostumado.

Martin Strel, acostumado aos grandes rios, começou nadando noventa quilômetros por dia, certo de sua força e sua determinação. Mas o Grande Rio não é de aceitar imposições. Na Amazônia, tudo tem seu ritmo próprio, ditado pelos humores dos ventos, pelo sono dos rios, pela disposição da Floresta. E como se seu propósito não fosse completo, moisés invertido, todas as pragas lhe foram enviadas. Para que pudesse nadar com os botos, o sol fê-lo de púrpura encarniçada. "Acho que os animais passaram a me aceitar. Eu nadei com eles por um longo período, acho que começaram a pensar que eu era um deles também". O canto da Iara lhe confundiu a mente e o seu chamado o fez nadar para o lado contrário, remanso da vida que engana e confunde. Singrou águas infestadas de piranhas e piratas. Teve dores musculares, cãibras, escoriações, desidratação, pressão alta, insônia, diarréia, náuseas e infecção por amebas. Perdeu 12 quilos. As dores que castigavam seu corpo não o deixavam dormir. Perdeu-se, passou a noite sozinho na margem, foi devorado pelos mosquitos.


Era desprezado, e o mais rejeitado entre os homens,
homem de dores, e experimentado nos sofrimenos;
e, como um de quem os homens escondiam o rosto,
era desprezado, e não fizemos dele caso algum.
Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades,

e as nossas dores levou sobre si;
e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido.
Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões

e moído por causa das nossas iniqüidades;
o castigo que nos traz a paz estava sobre ele,
e pelas suas pisaduras fomos sarados.
(Isaías, 53, 3-5)


Porque ele esteve onde eu não soube estar. Mesmo com a certeza de que ali era meu lugar, que minha era a jornada. Todos os medos ele tomou sobre si. Sozinho na margem no meio da noite infinda, perdido, desidratado, temendo as visagens e os animais, devorado pelos insetos, ele era eu. E comigo, todo os meus fantasmas. E nele eu tive compaixão de mim mesmo. Cirineu, quis lhe mover os braços, aliviar-lhe o peso das águas. Tive ímpetos de enxugar-lhe o rosto e tratar as feridas; abaixar e com carinho em seus ouvidos contar até dez, a única coisa que saberia dizer em esloveno, língua de meu avô.


"A 'linha de chegada' foi atingida anteontem.
Ontem, ele cumpriu uma 'prorrogação' até a capital do Pará...
'Meu médico falava comigo
e me ajudava a tentar pensar em outras coisas.
Só queria terminar tudo isso' ”


E não se contentou em chegar à foz do Rio Mar. Era preciso que fosse a Belém. Era preciso que fosse resgatado na amurada onde passei tantas tarde cozendo meu banzo em fogo de tacho, pra tirar o veneno. Adiando meu destino. Em Belém onde eu precisava estar, porque esta terra eu não mais quero e aqueloutra não me quer, ele me pôde novamente olhar nos olhos, exangue, para dizer: “Está vendo? Foi feito! Podia ser feito”. E mesmo humilhado, exilado – porque a salvação é um exílio e uma humilhação – pude enfim nele ser rebatizado. Era necessário que findasse sua jornada em Belém, como um cristo ás avessas. Salvo das águas como um moisés.
Nesta pureza reconquistada, triste, cabisbaixa, sigo de braçadas exaustas num turbilhão sem sentido, com o fio da esperança religado. Olhado com desconfiança; confuso. Confiante que minhas últimas palavras, lavadas nessa lânguida expiação, possam um dia ser içadas das águas com uma compaixão, senão merecida, conquistada. Só querendo terminar tudo isso.

“Pai, eles não sabem o que fazem...” Em esloveno. Como Vovô.


*Fonte dos destaques em itálico, entre aspas: Folha de S. Paulo, edições de 07 e 09 de abril de 2007 – transcrição integral nos comentários a este texto


35 anos da Guerrilha do Araguaia

Lembram-se hoje os 35 anos da deflagração da luta armada na região do Araguaia, episódio heróico, exemplo de bravura, desprendimento e inconformismo, reprimido sangrentamente como poucos na história brasileira. A história da Guerrilha e seus heróis pode ser conhecida nesta página especial do Portal Veremelho.

Que as lições desta página imemorial do passado recente do Brasil nos sirvam de estímulo e alerta para as lutas que não fazem cessar. Para que tenhamos consciência de nossa responsabilidade, dos desafios que ela nos impõe e dos riscos que necessariamente temos por ela de correr.


Mesmo que o último guerrilheiro na selva hoje caia
Bratará eternamente do chão do Araguaia
A esperança de um povo traçar seu destino


Vivam os Heróis do Povo Brasileiro!
Viva a Revolução!
Viva o Brasil!

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Fim de feira


Não tenho vontade nem competência para me meter a historiador – sempre tenho, por sorte, o Velho Simas para me socorrer e corrigir - mas importa lembrar, para o que hoje venho dizer, que o costume de se comerciar nas ruas talvez seja tão antigo quanto a própria História. Desde os tempos imemoriais os relatos referentes às formas mais rudimentares do que posteriormente se convencionou chamar civilização dão conta da utilização da via pública, do caminho de passagem como local privilegiado para a atividade fundamental da troca de mercadorias, na forma de escambo ou com o uso do elemento monetário. Conhecidas por quase todas as civilizações da antigüidade, as feiras atravessaram os séculos, tendo representado importante papel quando do renascimento comercial e cultural experimentado pela Europa na chamada Baixa Idade Média.

No Novo Mundo, a tradição urbana do comércio ambulante remonta aos tempos dos povos pré-colombianos, sendo bastante conhecidos, desde o México até o Peru Inca, os chamados tianguis, feiras dos povoados indígenas. A esta forma autóctene expressiva e disseminada de comércio a céu aberto, periódico e móvel, somou-se a contribuição da cultura hispânica de forte influência árabe, dando origem à tradição das feiras tais como conhecemos, que se disseminaram já nos tempos coloniais e sobrevivem fortemente em muitas cidades latino-americanas.

Entre nós, as feiras livres sofreram ainda a infuência decisiva da cultura africana, para a qual os mercados urbanos representam talvez o elemento mais fundamental da sociabilidade, aglutinando o centro das práticas públicas mais expressivas, desde o comércio propriamente dito, até a política, administração da justiça, religião etc. Em toda a África Ocidental, os chamados “Senhores do Mercado” constituíram-se em figuras poderosas e temidas por seu grande poder e influência, muitas vezes assumindo dignidades reais. Talvez por isso a impressão tão forte de que esses mercados ao ar livre tenham assumido no Brasil papéis que vão muito além da troca de víveres e outros artigos. A presença no espaço do mercado livre de fortes elementos simbólicos ligados à intersubjetividade e ao exercício da mediação social (política, religiosa, artística etc.) certamente terá propiciado um notável incremento nas possibilidades de interações mais criativas, menos engessadas, com formas menos pré-definidas. Não é preciso dizer o quanto estas possibilidades estão em consonância com nossos traços culturais originariamente tão marcados pelo encontro e pela comunicação interpessoal, pela informalidade e espontaneidade de muitas relações sociais.

Em algumas localidades brasileiras, os espaços tradicionalmente ocupados por estas feiras foram se fixando, muitas vezes até se transformarem em pólos agregadores de núcleos urbanos incipientes. Assim foi, por exemplo, com a tradicionalíssima feira de Caruaru, anterior à própria cidade que acabou por crescer à sua volta. Fixas também são ou foram outras feiras conhecidas, como o Ver-o-Peso em Belém do Pará ou a extinta feira de Água dos Meninos, em Salvador, ambas surgidas como entrepostos portuários, nos locais de ligação fluvial/marítima às localidades próximas das respectivas capitais, provedoras de pescado e gêneros agrícolas em geral. No Sudeste, ganharam força as feiras periódicas, encontráveis na Capital de São Paulo, por exemplo, desde o século XVII. No Rio, encontrei registros que remontam aos setecentos, mas custo a crer que não sejam mais antigas. Já nos primórdios do século passado, de periódicas aos poucos foram se transformando também em móveis, assumindo a forma que tão bem conhecemos por estas nossas bandas.


Ó “laranxa”, freguêeeesa...

Na minha meninice, ir à feira era misto de diversão, aventura e dedicação. Diversão, é claro, pela profusão de cheiros e sons e cores, festa para os nossos sentidos ainda não afogados na superexposição áudio-visual banalizante das gerações seguintes. Havia brinquedo pra comprar: peão, espingardinha de rolha, marionete, carrinho de rolimã, estilingue, papagaio; fora os sazonais: balão de São João, confete, bisnaga d'água pro Carnaval... Havia a barraca do pastel, do caldo-de-cana e ainda os tabuleiros com aqueles refrescos coloridos (tinha um nome, meu Deus...) em garrafinhas plásticas em forma de Fusca, de motocicleta, avião, barco, cachorro, boneca. A barulheira era infernal, pregoeiros se digladiando na batalha dos preços (“baxô, baxô, baxô o agrião...”), cantadores (“cinco maçã me dá só dez/ cinco maçã me dá só dez”), os bordões conhecidos (óóóóóó laraaaanxa, freguêêêsaaaaa... Tem lima, tem pera e tem seleta!). Mas havia que se ter disposição, porque a feira não era mole, sobretudo para as crianças. Multidão se acotovelando, carrinho de feira passando no dedão, sombrinhas das velhas, sol escaldante na moringa ou (pior!) chuva, o percurso não era bolinho pra quem tinha menos que um metro e trinta! Tinha mãe que amarrava o filho com correia pra não se perder, o que era freqüente (mas sempre achava, porque todo mundo se conhecia, fregueses e feirantes). A minha morria de medo dos punguistas hábeis zanzando pelas gentes, porque as feiras sempre foram também redutos da malandragem, para descolar um troco no lero-lero, no carreto de sacola ou, por que não?, na gatunagem.

Final de feira, legumes baratos
Meninos mulatos enrolam nos trapos
Os restos do prato
Que o dia-a-dia deixou pelo chão

Epa, mais vale uma xepa na boca da gente
Que o corpo doído, faminto, doente
E o amor esquecido de um coração

Que alegria
Panela no fogo, barriga vazia!
Que coisa boa
Batata-baroa, chuchu, agrião...
Subiu ladeira, moleque sabido, menino feliz
E quem é que diz
No bolso furado não leva um trocado
Nem vale um tostão..


(A Xepa, samba-de-roda de Ruy Maurity)


Três décadas se passaram, mas a feira ainda é o reduto do apelido, da gozação despreocupada das convenções inventadas pelos colonizados de sempre: de uns tempos pra cá eu sou, indefectivelmente, o “Barba”; mas já fui “Barriga”... O negrão retinto da barraca do tomate é “Alemão” e o banguela do caju é “mil e um”, mas já foi “Lazaroni” (time recuado, só um lá na frente...). Moça bonita, se não paga, não leva, mas se paga... É o palco da pechincha, em que a lábia do freguês e o jogo de cintura do vendedor compõe o preço da mercadoria - versão tão brasileira da lei universal da oferta e procura – com propriedade e justiça a que nenhum código de barra poderá aspirar.

Mas como tudo neste nosso judiado país que diga respeito às nossas formas singulares de existência, ao nosso modo próprio de ser e ver o mundo, as feiras - como o futebol, o carnaval, a música, os butiquins, açougues, padarias, as ruas com casas, entre tantos etcéteras – também viraram presas fáceis do grande capital, por um lado, mas sobretudo de uma psudo-culturazinha pasteurizada, de modelito importado, baseada na assepsia e “praticidade” autosuficientes de uma vida que prescinde do contato com o outro ser humano. Que apegada a falsas demandas por “segurança” e “higiene” constrói uma absoluta e ressentida ojeriza à rua, a tudo o que ela representa, tudo a que ela remete. E é por isso que hoje, com ou sem criança, pode-se andar à vontade pela feira da Vila Romana. Sem atropelo, sem empurra-empurra, sem trombadinha nem medo de perder o filho. Semi-deserta, mas ainda colorida e musical. Pelo menos até a semana passada.

Porque, senhores, os que se arvoram em donos desta triste Cidade não vêem limites para o seu despudor e sua falta de escrúpulo. Nada querem deixar de pé nada que possa remeter ao mundo brasileiro que eles tanto desprezam – e temem. Sequer se satisfazem com a morte lenta e desvalida do que resta de nossa gente e de nossa cultura nestas cinzentas plagas dominadas pela lógica impessoal do dinheiro. Querem o nocaute, a humilhação, a lona. Querem o nosso sangue, impiedosamente, como animais no matadouro. Assim é que o homenzinho que arrumaram pra ocupar a Prefeitura da Cidade no lugar do Mentiroso-mor – aquele que afirmou para quem quisesse ouvir que não se candidataria ao governo do Estado – meteu-se a decretar, acreditem os que quiserem, que a partir de agora, na feira, nenhum feirante mais pode gritar! Nada de barulheira, ora, se vivemos numa cidade civilizada, de primeiro mundo! A feira, daqui por diante, nos delírios higienizadores e aculturados dessa escumalha, terá barraqueiros uniformizados, banheiros químicos obrigatórios e caixotes higienizados. Nada daquela gente desdentada e rota e seus caixotes de pau! E horário, senhores, teremos horário! Hora pra chegar, pra montar, pra desmontar, tudo como manda a nova ditadura calvinista e asséptica dos padrões de existência.

Tudo está consumado. A batalha nos chama e não há como adiar. Mais este ultraje não ficará sem o desagravo à altura. Ora, que o homúnculo que pensa que nos governa enfie os seus decretos de merda no local que lhe der mais prazer! Porque se ele pensa que gritar é privilégio seu, que precisa nos convencer da sua macheza vociferando contra um humilde trabalhador na porta de uma unidade pública de saúde, vá ele ver que tudo tem um limite. Que nós gritaremos, espernearemos e morderemos acima do que a sua soberba autoritária possa supor ser possível, se eles insistirem em querer nos ver morrer como porcos.

terça-feira, 3 de abril de 2007

De roseiras, barbeiros e canários


Tem quem diga que é gênero. Pode até ser. O que implica, diretamente, numa espécie de distúrbio masoquista: porque, na verdade, só me trouxe solidão e angústia, quando não brigas e inimizades. Deve ser mesmo doença essa obstinação em se apegar àquilo que te foi legado, ensinado como certo, demonstrado como desejável. Em rejeitar as formas padronizadas prêt a porter, tão mais simples, tão mais práticas, e daí que importadas?, que importa se iguaizinhas pra todo mundo?

Não é possível, argumentam, que uma casa cheia de goteiras, vazamento, assoalho que range, calha que entope ser melhor que um moderno apartamento, com todo o conforto, segurança e assepsia demandados pela vida moderna. O homem moderno não pode estar a mercê de baratas, ácaros, vizinho que faz churrasco, vendedores de portão, pipas que caem no quintal. Pensava nessas coisas pela manhã tratando da roseira lá do jardim de casa. O homem que nos alugou, na assinatura do contrato, fez questão de nos conhecer ( bobagem, dirão os apologistas da praticidade: as imobiliárias estão aí mesmo pra isso, pra gente não ter que ficar aturando telefonema do inquilino, não se comover se ele ligar no final do mês pedindo mais cinco dias pra pagar o aluguel, porque a filha ficou doente...). Meio constrangido, justificou que gostava de saber quem é que ia morar na casa que o pai dele construiu; na qual cresceu e a mãe envelheceu, até morrer, coitadinha, havia uns meses. Coisa de gente antiga. Ou seria pra fazer gênero? Na despedida, só nos pediu que, se não fosse incomodar muito, não cortássemos a roseira que sua mãe plantara quando ele ainda era criança...

E fazendo gênero é que o meu coração assim se aperta todo dia, andando pelas ruas da Vila Romana, vila operária de maioria ítalo-descendente na primeira metade do século passado. Porque a cada passeio matinal com a minha filha de três meses, é uma fábrica que não está mais lá, uma vila inteira de casas que vai pro chão (vilas operárias, construídas e mantidas pelas tantas indústrias do bairro: Papéis Melhoramentos, Cerâmica Santa Catarina - depois Petybom - dos Matarazzo, tantas mais); é uma casa que resolveram "modernizar" a fachada, ou um butiquim que vira lanchonete, “espetinho” ou supermercado. E é inevitável, meus amigos, pensar que minha neta não vai ter ruas de árvores e casas e vizinhos pra passear nesta triste Cidade.

E é assim que, mesmo sem precisar tanto, meu banzo lapeano me levou, quase sem que percebesse, à velha barbearia do velho Arduile Bonizzi, sessenta e cinco anos de Lapa, onde se corta cabelo e se faz a barba sem precisar explicar, ao som de tangos e boleros, valsas e sambas de outros tempos, em fitas cassete sobreviventes de uma guerra suja e impiedosa impingida por inimigos invisíveis e desleais travestidos de fomentadores do progresso. Onde os velhos lapeanos ainda param pra ouvir e contar uma história de vez em vez, deixar recado, chave de casa esquecida pra mulher pegar quando chegar. Semana passada o vizinho da rua debaixo deixou os três canários pro fígaro tomar conta. De modos que eu, de olhos fechados por causa do talco, ouvindo Chico Alves desfilar versões duvidosas de boleros tão conhecidos, acompanhado devidamente pela passarinhada em coral, pude voar por minutos acima de uma realidade de incompreensão, ganância e utilitarismo. E saindo de lá, tive mesmo a impressão de encontrar meu avô dobrando a esquina, de paletó, gravata e pasta preta, sorrindo com um pacote de balas-de-goma e cigarrinhos de chocolate Pan só para mim.

segunda-feira, 2 de abril de 2007

Sala de espera


Não sabia ao certo por quê, mas era fato que ela o incomodava. Toda semana, naquela mesma hora, repetia-se o roteiro. Na ante-sala, ele esperava a filhinha por toda a duração da sessão.

Mais do que a própria figura, soçobrava-o a ausência aparente de motivo para a inquietação que ela lhe impingia. Uma figura comum, diria. Cordial, até. Teria facilmente a idade de sua mãe e era lampeira, cabelos arrumados, sempre bem maquiada, sem exageros, o batom fazendo-lhe a boca ainda menor do que já era. Uma simples e distinta senhora, desempenhando dignamente uma ocupação socialmente desejável e condizente com a sua condição, pensou.

Que diabos, então? O rádio ligado um tanto acima do esperado, brandia músicas que ele julgava incompatíveis com o ambiente. Não o lixo banal que campeava pelas lojas e tevês – antes isso! - mas a a emepebezinha reles com pretensões de bom gosto e universalidade; nada que o irritasse mais, aliás. Anotou o nome da rádio, ia mandar cartas, fazer protestos, ora se ia. Cantava a Calcanhoto, e ela vagamente parecia cantarolar um refrãozinho, impávida. Por que não lia um ao menos uma revista, meu Deus? Vinha uma do Arnaldo Antunes, e a megera de olhos estatelados, sem esboçar uma mínima reação de aprovação ou desagrado. Zeca Pagodinho, finalmente, e ele implorou aos santos em que não cria um mínimo sinal de vida inteligente.

Mas nada. Pôs-se a discar.

- Alô, Helena? Terezinha... Você soube do Rubens?

Gelou. Logo ele a quem apavoravam os assuntos de doenças.

- Aneurisma. Começou a sentir-se mal pela noitinha... Deve estar sendo operado neste instante.

Doía-lhe a cabeça. Seu falar escorreito soava-lhe como fina tortura, cada palavra uma crueldade caprichada, meticulosa, calculada. O incômodo transmutava-se em desejos de violência. Pensava na filha. Levantou-se afinal, pretextando a si próprio uma vaga vontade de urinar. Rosto lavado, ainda voltava quando ouviu um resto de outra conversa :

- Não vai embora, então, antes da vovó chegar, hein?

“O que mais, meu Deus?”, carcomia-se. Como diabos podia odiar uma velha cujo netinho de bochechas rosadas dali a minutos se atiraria em seus braços cansados: “Vovó...”

Sai a filhinha. Como a sacramentar o veredicto de sua condenação, tasca-lhe um beijo apertado que o despedaçou. Saía atabalhoado, puxando quase a menina, rosnando um cumprimento incompreensível. Não se esquivou a tempo de evitar:

- Até semana... Mesma hora, hein?