(PARTE I - continuação)
Existência possível e forma verdadeira
Qual a diferença entre “existência possível” e “forma verdadeira”, segundo o uso que aqui fazemos desses conceitos? Em primeiro lugar, enquanto o pensamento conservador pode tomar “forma” por uma apresentação acidental determinada independente do seu conteúdo material, o pensamento crítico, muito ao contrário, a toma como manifestação essencial e indestacável desse conteúdo, a maneira própria dele existir historicamente “para nós”. A primeira conseqüência evidente é que a forma como a existência se apresenta para nós, carregada de suas mazelas e negatividades, é absolutamente indissociável de seu conteúdo mais intrínseco, de sua conformação estrutural, e não apenas uma deformação acidental e circunstancial de um modelo ideal. A superação de suas negatividades não pode, então, apresentar-se como ortopraxia, como simples correção de desvios, como eficiência gerencial, mas unicamente pode dar-se como negação material e determinada do conteúdo assim informado. O pensamento crítico, assim, penetra nas estruturas profundas do conteúdo historicamente situado e nega as formas presentes e determinadas da existência como dotadas de qualquer necessidade, verdade, ou realidade privilegiada em relação a outras formas possíveis.
Assim, a forma possível não é determinada nem sequer determinável genericamente. Não está presente num ponto mais ou menos definido ou definível. Situa-se no campo do não-ser. Só é construível a partir da negação determinada das estruturas dadas, ou, se quisermos, das negatividades (mazelas) encontráveis na forma dada da existência. Por isso é tão difícil para o conservador atribuir a essa forma possível um estatuto de realidade comparável à forma presentemente dada. Situa-se no oceano imenso e pouco navegado da possibilidade construenda. Muito diferente da “forma verdadeira”, definida e definível por parâmetros previamente estabelecidos, perfeitamente situável, familiar. A existência possível, assim, não se apresenta como utopia, como projeto salvaguardado num não-lugar extrínseco ao tempo e espaço, mas, muito mais, como um não-projeto situado em todos os lugares, presente a confrontar criticamente todas as formas dadas da existência, negando-as e sendo por elas negada, rumo à superação das negatividades apreendidas. Apresenta-se, antes, como processo, como movimento permanente e perpétuo, como tensão dialética entre o dado e o possível – o que “é” e o que “não é”, com idênticos estatutos de realidade/racionalidade, a negarem-se mútua e incessantemente até o infinito. A “forma verdadeira”, por sua vez, reduz essa tensão dialética entre o dado e o possível a uma mera relação entre ato e potência, onde o que pode ser já é, já está contido no que é, bastando para que se atualize a disposição ideal das condições favoráveis.
A partir do que ficou apresentado, percebemos que qualquer doutrina do fim ou do sentido da história, tenha contornos religiosos, políticos ou filosóficos, vai se apresentar conservadora no sentido que aqui emprestamos. Sempre que o processo se detém, que o movimento se encastela numa forma determinada, ideal ou verdadeira, sempre que se abrir mão da crítica e da negação possíveis, temos a morte da possibilidade. O paraíso e o nirvana são tão imobilizadores da emancipação humana quanto o estado prussiano de Hegel ou a sociedade comunista idealizada. Mais, qualquer parâmetro particular ideal que se ponha a positivamente confrontar as formas dadas da existência, seja a Liberdade, a Igualdade, a Democracia, etc. operam o mesmo papel, qual seja de escamotear a necessária negação dos conteúdos materiais e das estruturas que engendram as negatividades essenciais. Não que essas positividades não tenham o seu papel no curso quotidiano da vida, da existência e, por assim dizer, da sobrevivência: o têm, indiscutivelmente, e disso trataremos noutra parte. Apenas situam-se num grau de consciência limitado, que tem a sua utilidade, mas que impingem transtornos insuperáveis ao progresso do conhecimento crítico, à superação das negatividades da existência dada, toda vez que não se contêm em seus limites de uso estritos.
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