Luís Martins*
“C'est une place
C'est une rue
C'est même tout un quartier...”
(Pigalle, Georges Ulmer e Géo Koger)
Assim também, exatamente, é a Lapa: uma praça, uma rua – a rua e o largo da Lapa; e em torno a Lapa, propriamente dita, certamente um dos recantos mais estranhos, sugestivos e pitorescos da cidade do Rio de Janeiro.
Para falar da Lapa – lembremos, ainda uma vez, a opinião de Manuel Bandeira - “e fazer-lhe sentir todo o prodigioso encanto, só um Joyce – e Joyce do Ulisses, com sua extraordinária força de síntese poética. Basta dizer que a Lapa é um centro de meretrício todo especial (onde vivem as mulatas mais sofisticadas do Rio) e esse meretrício se exerce no ambiente místico irradiado da velhe igreja e do convento dos franciscanos”.
Mas não só o convento e a Igreja que dão à Lapa um aspecto monumental e venerável, contrastando com a humildade dos seus velhos sobrados de portas enegrecidas pelo tempo, a pobreza de seu pequeno comércio e os desregramentos de sua vida noturna; um de seus limites extremos, que a separa das luzes da Cinelêndia, é o venerando, o histórico Passeio Público; é na Lapa que se eleva, desafiando a fúria dos séculos, o grande aqueduto dos Arcos, obra colonial, talvez a mais grandiosa e majestosa das relíquias arquitetônicas do velho Rio. Isto sem falar na escadaria monumental que sobe para o Curvelo e no pitoresco casario que desce a pino do morro de Santa Teresa sobre a rua Joaquim Silva, fazendo lembrar certos aspectos de Lisboa.
As paredes das casas, os telhados rústicos, os portais de pedra parecem impregnados do mofo do tempo; tudo aquilo transpira velhice e tristeza; e, entretanto, a Lapa é – ou era, porque me refiro aos anos 1930 – um bairro alegre. Pelo menos movimentado, agitado, cheio de músicas e tabuletas luminosas, indicando bares, restaurantes e cabarés. Na Lapa vivia o Rio noturno.
Para quem não a conheceu, hoje é difícil imaginá-la nesse período. EU não hesito em afirmar que o prestígio da Lapa na década de 1930 foi, um pouco, promoção nossa, os jovens escritores que a freqüentávamos. Nós escrevíamos sobre ela artigos, crônicas e reportagens; criávamos, assim, a sua tradição, o seu mito e a sua lenda.
Para se ter idéia da importância da Lapa desse período na vida carioca, basta lembrar o seguinte: em mil novecentos e quarenta e tantos (eu já morava em São Paulo) inaugurou-se perto da rua da Lapa, perto do bar 49, uma boate à maneira de Montmartre, arrumada e decorada por um artista da moda e com pretensões a grã-fina: o 1900. No dia da inauguração, o velho bairro ficou atulhado de carros particulares e a festa constituiu um grande acontecimento mundano. Durante alguns dias, os elegantes da Zona Sul foram ao 1900, como em Paris se vai ao Lapin Agille e aos cabarés de Pigalle, porque era “bem” divertido e chique a Lapa, afinal era o Montmartre carioca... Mas a extravagância não durou muito. Os grã-finos logo se enfastiaram. Seis meses depois de inaugurado, o elegante bar ficou às moscas; então, a Lapa o invadiu, tomou conta dele, integrando-o em sua atmosfera e em seu estilo de vida. Naquele ambiente sofisticado, todo decorado com enormes painéis que pretendiam reproduzir a vida elegante e boêmia da belle époque, dava pena verem-se soldados, marinheiros e marafonas tomando cerveja...
A instalação do 1900 fora um erro. O momento não podia ser mais inoportuno. Estávamos no tempo da guerra e esta foi, como terei ocasião de demonstrar em outro capítulo, um dos responsáveis pela melancólica decadência da Lapa.
Aliás, foi uma felicidade que tivesse malogrado essa estranha e despropositada aventura; se a guerra não tivesse acabado com a Lapa, os grã-finos, se nela se instalassem, com certeza acabariam; porque grã-fino, onde se mete, estraga tudo.
(1963)
*in Noturno da Lapa, Rio de Janeiro: José Olympio, 2004 – 4ª ed. Pp. 99 -102
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