quinta-feira, 1 de março de 2007
Desagravo paulistano
Outro dia desses, não sei se foi o meu amigo Bruno Ribeiro, não sei se foi o velho e já tão querido mestreLuís Antônio “Amarildo” Simas, um dos dois escreveu mais ou menos que o homem que não ama a sua cidade é, no fundo, no fundo, um infame. Vinda de qualquer um dos dois craques, com efeito, a sentença reveste-se de uma incontestável autoridade, visto serem, ambos, eméritos e desvelados laudatórios dos encantos de seus respectivos torrões. E assume assim, para mim, o peso acabrunhante de uma condenação.
Assume, inelutavelmente, pois essa instância tão fundamental de existência coletiva que é a cidade significa demais para mim. Mais do que de lugares ou países, mais do que de bairros ou de bares, sempre fui um homem apaixonado pelas cidades. A cidade desde muito cedo na história humana - no Oriente, na África, Grécia ou na América pré-colombiana - representou a instância mais essencial dos grupamentos humanos, a que diz mais sobre um povo e um lugar. Síntese privilegiada entre o particularismo do clã familiar e a universalidade da nação, as cidades nascem, vivem e morrem, têm personalidade, sexo e temperamento bem humanos. Por isso o amor pela cidade é um amor carnal, que pode ser ardente hoje e repugnante amanhã, porque é concreto, é histórico. O amor pelo país, pela nação, é um amor de pertencimento, tem cheiro de infância, de colo de mãe, é essencial, está plantado no fundo; mas não é orgástico, não cansa e nem faz suar.
Por isso, meus amigos, não me redime da infâmia a imagem que durante muito tempo alimentei, para escamotear minha deplorável condição, este verdadeiro aleijão moral de que me acusam os meus queridos companheiros de linhas virtuais. Não adianta enganar, como outrora tentei, que o amor pelo Rio é de amante, por Belém é de esposa e por São Paulo é de mãe (aquele que a gente não escolhe, de que a gente não consegue se desvencilhar; que a gente, mesmo, não agüenta, mas faz parte da nossa mais recôndita essência). Porque assim como mulher nenhuma toleraria de um macho amante um bem-querer que se declare “filial” (com a óbvia exceção), de um amorzinho assim canhestro nem a minha cidade é merecedora.
Não é de hoje que este espaço é preenchido das lamúrias que assaltam diariamente o coração de um brasileiro obrigado a conviver, nesta cidade, com a negação sistemática daqueles traços – por que não, daqueles sintomas? - que fazem do brasileiro um povo tão singularmente vocacionado à fortuna, a despeito de tudo e de todos. Mas sempre faço questão de separar “a cidade”, do “povo” que nesta circunscrição espacial cumpre seu degredo peregrino. E talvez resida precisamente aí esta dureza d'alma que tanto nos assusta e incomoda, na separação do inseparável, de um corpo e sua alma, de uma cidade e seu povo. Porque esta cidade, meus senhores, não pertence ao seu povo. Pertence, como uma Jerusalém romanizada, aos usurpadores, aos invasores, àqueles que querem manter o Brasil eternamente refém da ganância espoliadora da mesma meia dúzia de sempre. Eles estão por toda parte da terra tupiniquim, direis, mas cá quase mais não vemos, ao menos, o protesto, a subversão constantemente intentada, esta soberania latente que aqui e ali se manifesta, mostrando por entre as frestas da dominação artificiosa, brutal, a realidade sobre os verdadeiros donos desta terra (e o carnaval é o ápice desta sublevação). Aqui, a batalha parece sempre perdida, o território irremediavelmente ocupado, o messias definitivamente de nós esquecido. O leviatã autômato não cessa de retroalimentar com eficiência crescente todos os mecanismos tendentes à eliminação dos sujeitos pensantes, amantes, dançantes, suantes.
Não, senhores, não há desagravo, nem instância de apelação. A condenação é certa e merecida. Para aliviar a execução da pena, arguo tão somente duas atenuantes. A uma, tenho que muita gente da melhor cepa que por aqui floresce (testemunhai em minha defesa, testemunhai!) me acompanha ao cadafalso, nutrida dos mesmos sentimentos. A duas, pra valer, São Paulo não é uma cidade. São muitas cidades justapostas, assemblage de retalhos chuleados ao léu, tão díspares, tão incomensuráveis, centão disforme, melancólico e patético. Em cada porção deste
embrechado pulsa um fragmento de alma, que se não alcança um efetivo hálito de ser, possui o condão de refrear o avanço da gangrena doutra forma inevitável.
Os bairros paulistanos representam para nós a única possível instância de salvação de nosso quotidiano. Se para a redenção de nossos seres, os brasileiros de São Paulo pomo-nos a sirigaitear por aí, oferecidos a rios de janeiros, beléns e salvadores, o peso do dia-a-dia só se nos alivia com o apego desesperado a esses pequenos fragmentos de dignidade urbana. Por isso é que meu querido Júlio Vellozo não consegue deixar de cortar o cabelo na Vila Gustavo. É por isso que o Fernando Borgonovi, por mais que se embriague nas vilas madalenas, tem que tomar a sua saideira diária no caga-sangue do Jaçanã. Por isso o Arthur Favela tem que bater ponto todo domingo na pelada do Anhangüera, na sua Barra Funda.
É por isso que eu percorro, todos os dias, ávido, desesperado, as ruas da minha Lapa. Não a Lapa boêmia de Luís Martins, colorida outrora como hoje. A Lapa suburbana, operária, comercial – tão cinzentinha, coitada!- devidamente nordestina e imigrante, como devem ser os subúrbios paulistanos. É por isso, senhores. Para salvar a minha Lapa. Para salvar o pouco que a nós resta. Porque até isso nos querem tirar. Aos que nada têm, até o que têm lhes será tirado. Porque os artífices deste monstro devorador de possibilidades não cessam de obrar para aniquilar os bairros de São Paulo, suas singularidades, seus modos de ser e de morar, por ação da plaina irrefreável a transformar lugares de carne-e-osso-e-alma em zumbis espectrais de concreto e soberba.
A partir de hoje, este espaço alteará sua voz em defesa das migalhas de dignidade e vida que restam a este projeto fracassado de cidade. Quem for paulistano, que me siga.
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Eu não sou paulistano, querido, mas sigo você, como sempre, como convém a um súdito atrás de seu Otto privado.
ResponderExcluirE quem não for paulistano fica fora?
ResponderExcluirSinto falta de São Paulo,
de escutar na madrugada
uns bordões de violões
uma flauta a chorar prata..
Vanzolini dixit!
Abração espanhol, meu caro
Concha
Vamos à luta, Fernandão! Compartilho deste mesmo sentimento no que diz respeito às derrotas anunciadas de qualquer levante.
ResponderExcluirEu, da minha pouco nobre zona oeste, lá pelos lados do Butantã, já tenho poucas referências. E essas poucas vão sendo engolidas pela maldita especulação imobiliária.
Fora isso, parecem morrer também certas "entidades" que todo bairro tem. No meu Jardim São Domingos (não é o parque, que fica em Pirituba), havia o Gordo da Lambretta, o Jorge "Elvis Presley", o João Bêbado e o Carlão barbeiro. Só este último continua firme e forte. E o João Bêbado, veja você, virou crente e nunca mais desceu uma branquinha pela goela.
No mais, troco ali Belém por Porto Alegre. Porque não conheço Belém, provavelmente (me dou muito melhor em lugares de calor escaldante, é fato). E parabéns pelo seu Palmeiras, que deu uma cacetada no meu Corinthians.
Abraços!
É Fê, meu irmão... Ainda restam as migalhas. Menos mal.
ResponderExcluirOs clubes de várzea (os poucos que restam) são resistências, nossa maneira de manter viva a nossa história.
Aliás, você e o Leo Gola TEM que ir num Domingo ao Anhanguera beber umas conosco! Já passou da hora...
Beijo!