sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Ser boi

Maurício Pereira


ir pra Minas e ser boi lá
ir pra Minas e ser boi lá
ir pra Minas e ser boi lá

mascar, pastar, sorrir, pensar

olhar de rabo de olho
(se é que boi tem isso)
os carros voando na BR
tentar perceber o motor

essas pessoas que têm alma
eu me pergunto por quê
elas vêm e vão para Brasília
em tamanha velocidade

ser a encarnação do boi
esperar a minha hora chegar
sem pressa e sem pressão
divagar bem devagarinho

fixar o olhar no horizonte
encarar demoradamente
se perder da noção da hora
ralar o chifre no mourão da cerca

sorrir e ser boi
sorrir e ser boi em Minas
sorrir e estar em Minas
(sorrir e pisar em Minas)

e enxergar além da cerca
sonhar pra além da colina
daquela gente toda na BR
além do limite de velocidade

sorrir ao respirar
curtir a gramática
viver a dialética
o bafo quente do pasto

mugir graúdo à sombra desta velha
e majestosa mangueira carregadinha
(fazer mil versos como esse anterior)
pastar, sorrir, pensar, olhar

um coração de boi
sem prece, sem perdão
sangrar no arame farpado
chifrando algo ou alguém

concluir o mundo e senti-lo
concluir o mundo a senti-lo
me excluir do mundo, tranquilo
minhocar sobre as razões das gentes

te olhar e babar
em você, em mim ou no capim
calar e compreender
te olhar e pastar

mugir pro céu e agradecer
querer reverenciar
este momento singelo
de comer quieto com o anu nas costas

sorrir e balançar
sorrir e balançar a cabeça
desatinar que nessa mesma hora
toda aquela gente estoura

os limites da velocidade
a estrada deserta atrás da cerca
aquilo que parece ser
o motor das pessoas

ir pra Minas e ser boi lá
ir pra Minas e ser boi lá
ir pra Minas e ser boi lá

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Pequena cartilha para uma história do samba



Parte II – Da escola ao banquinho



As escolas de samba vão levar para o grande público a música que então se fazia nos redutos pobres dos morros e subúrbios. Com suas orquestras (à semelhança dos ranchos, mas sem os caros instrumentos de sopro) de atabaques, surdos, cuícas, tamborins e pandeiros, as escolas vieram mostrar para as classes de elite a riqueza musical escondida nos redutos do samba, numa cadência menos “batida” que a do partido alto tradicional (propícia para a execução "em roda"), mais cantável, mais marchável (própria para o desfile, o cortejo). A partir dos últimos anos da década de 20, em pouco tempo o desfile das escolas de samba ganhou o “status” de principal e mais importante acontecimento do carnaval. A pioneira foi a Deixa Falar, da região do Estácio, conhecida como berço das escolas de samba. Depois seguiram-se Estação Primeira, do Morro da Mangueira e Vai Como Pode, de Oswaldo Cruz, que depois mudou seu nome para Portela. Os compositores ligados às mais importantes escolas como Cartola (Mangueira), Paulo da Portela (Vai Como Pode) e Ismael Silva (Deixa Falar) asumiram grande evidência. Ante o poder avassalador daquela música que vinha dos morros, a cultura oficial não poderia ficar como mera espectadora. Logo tratou-se de organizar os desfiles, tornar oficiais os concursos. Surgiram as colunas especializadas na imprensa, os grandes jornais chegaram a patrocinar e organizar desfiles. E o poder estatal, apercebendo-se da grande força criativa e mobilizadora desencadeada pelas escolas de samba nos dias de carnaval tratou logo de dar o seu jeito: se não podemos proibir, se não dá pra impedir, vamos organizar, disciplinar, normatizar. Assim é que a prefeitura do então Distrito Federal definia os dias de desfiles, locais, os temas permitidos nos enredos, a censura às letras dos sambas etc. Ao final da década de 30, dez anos após seu surgimento, as escolas de samba já estavam definitivamente incorporadas à cultura oficial da cidade do Rio de Janeiro. E vemos, então, um segundo momento onde os elementos genuínos da cultura do samba sofrem influências externas ao seu meio, de forma a abrandar-lhe o ímpeto criativo, a mobilização das energias que proporcionava.

Não só o Estado, mas a indústria do entretenimento, então nos primórdios, soube reconhecer essa qualidade musical e as possibilidades que se abriam ante o grande desenvolvimento de um importante meio de difusão musical no início dos anos 30: o rádio. É assim que pela primeira vez, em 1929 chega ao disco, com mais de uma década de atraso, o som da percussão do autêntico samba, na gravação de “Na Pavuna”, de Almirante e Homero Dornelas, na voz do primeiro. E a partir daí, pelo disco e pelo rádio, a sonoridade da batucada do samba incorporou-se ao gosto musical do povo carioca, inicialmente, e de todo o Brasil, em seguida, principalmente a partir do surgimento da Rádio Nacional, cobrindo todo o território brasileiro, a partir de 1936. Os cantores de sucesso iam colher junto aos morros as produções de seus compositores para serem levadas ao disco. O ritmo dos batuques parecia mesmo traduzir a alma da sociedade carioca e brasileira, formada no encontro das raças e das culturas. E o samba falava não mais dos amores impossíveis das canções líricas que se gravavam até então. Falava da falta de trabalho, do pão caro, dos encontros e desencontros amorosos da vida da gente de verdade, do carnaval, da malandragem e da boemia. Em pouco tempo tornou-se a expressão mais autêntica da voz do povo brasileiro. As maiores figuras desse período serão Wilson Batista e Noel Rosa, e um pouco mais adiante Geraldo Pereira e Ataulfo Alves.

A força do samba difundiu-se de tal forma que a ditadura do Estado Novo tratou, a partir do final da década de 30, de desestimular e censurar os sambas que falavam da malandragem e da vida boêmia, incentivando um samba mais “enquadrado” na temática, de exaltação das grandes qualidades da pátria brasileira. É assim que a década de 40 inicia-se com o auge dos chamados sambas-exaltação, dos quais o mais famoso é “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso. Na passagem dos 40 para os 50, o samba iria parar no cinema, ficar conhecido no mundo inteiro como ritmo nacional brasileiro por excelência, na figura estilizada da “baiana” Carmem Miranda, com bananas e abacaxis na cabeça. Mas os rádios e os toca-discos quase não mais o tocavam, à exceção da época de carnaval, dominados pela onda da música americana das “big bands” e das trilhas sonoras de Hollywood. Nos anos cinqüenta, a voz dos morros pareceria estar calada, assistindo primeiramente ao domínio dos chamados sambas-canção, gênero estilizado que privilegiava a orquestração em vez da batucada, as letras românticas e os cantores de vozeirão, em vez dos sambistas de divisão leve e ágil e os temas quotidianos. Posteriormente, surge a bossa nova, impondo ao samba uma esquematização e simplificação rítmica*, uma incrementação harmônica pelo uso de acordes dissonantes, em parte por influência do jazz americano, e uma completa mudança temática. Não há mais lugar para a dureza, para a mulher que nos abandonou e pôs fogo na casa, para a exaltação da vida vadia. Agora, só barquinhos passeando ao pôr-do-sol, banquinhos e violões, tardes olhando o Cristo Redentor da janela...





Parte III - Resistência



Mas o samba é resistência, e como erva forte viceja por entre as frestas do cimento com que tentam lhe sufocar. E é na década de 60, quando a classe média experimenta um forte retrocesso nos espaços públicos de manifestação artística, com o teatro e a música popular sofrendo forte censura a partir do golpe de estado de 64, que o mundo do samba passa a ser revisitado pela cultura oficial. Artistas, intelectuais, jornalistas etc. começam a encontrar nas escolas de samba um espaço de expressão cultural genuína, forte, criativa, que fala da vida verdadeira do povo, seus sofrimentos e alegrias. O samba volta à agenda cultural brasileira, com o surgimento de redutos como o restaurante Zicartola, e o sucesso de espetáculos como o Opinião, com a presença de Zé Ketti, figura emblemática do período. Essa reaproximação vai gerar bons frutos como a revelação para o grande público, em rádio, disco e televisão, de sambistas do porte de Clementina de Jesus, Paulinho da Viola, Candeia, Elton Medeiros, Martinho da Vila, o paulista Germano Mathias, além da redescoberta de Cartola e Ismael Silva, por exemplo. Por outro lado, o ambiente das escolas vai sofrer uma influência decisiva dos padrões estéticos das classes dominantes. Os elementos visuais, alegorias e fantasias, tornam-se os mais importantes nos desfiles. Os sambas cadenciados, de letras longas e instrutivas, próprios para o desfile no qual se procurava contar uma história, vão sendo substituídos pelos refrões fáceis, de andamento mais acelerado, para empolgar e serem cantados e dançados também nos salões, pela gente desacostumada da difícil arte de dançar os passos do samba. E assim, por conseqüência, o passista da escola, o compositor e a pastora vão perdendo espaço para figurinistas, carnavalescos e destaques.


Esse processo vai gerar uma forte contradição a partir da década de 70. De um lado, o samba ganha grande notoriedade nos meios de comunicação, através de uma vertente que posteriormente vai ser conhecida como “sambão jóia”, cujas figuras expressivas são Luiz Ayrão, Antônio Carlos e Jocaffi, Originais do Samba. Ao mesmo tempo, importantíssimos compositores e intérpretes ligados à melhor tradição do samba surgem ou se firmam: Nei Lopes, Wilson Moreira, Beth Carvalho, Clara Nunes, Roberto Ribeiro, Alcione.


Alguns compositores ligados às origens das escolas começam a perceber que estas não mais se configuram em espaços onde o sambista pode expressar a sua arte, representativa da sua visão de mundo, sua cultura e seus valores. Desfaz-se o que era espaço para afirmação da identidade da cultura popular, da singularidade e expressividade de cada componente, governado pelas “regras da arte”, onde é maior quem tem mais talento, quem dança, canta, compõe ou costura melhor; quem é líder pela sua postura e papel dentro da vida da comunidade. O espaço das escolas passa a ser norteado pela mesmo lógica do dinheiro e do poder que rege todas as relações dentro da sociedade capitalista. Em 1975 o grande Antônio Candeia Filho afasta-se da Portela, endereçando ao seu presidente uma carta com críticas, análises e sugestões, que assim começava:


“Escola de samba é Povo em sua

manifestação mais autêntica! Quando se submete

a influências externas, a escola de samba deixa de

representar a cultura de nosso povo.”


(apud Vargens, op. cit. – p. 67)



No mesmo ano, junto com compositores importantes como Wilson Moreira, Candeia funda a Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo, um marco na história da resistência do samba enquanto expressão cultural consciente e engajada. Ao grupo original rapidamente juntam-se grandes figuras do samba, como Nei Lopes, Martinho da Vila, Paulinho da Viola entre inúmeros outros. A Quilombo procurou sempre diferenciar-se das escolas de samba “mercantilizadas” (“Super-escolas-de-samba S/A”, como mais tarde diria um conhecido samba-enredo de Aloísio Machado e Beto sem Braço, campeão do carnaval de 1982 pelo Império Serrano), desde a forma de escolha dos enredos e sambas, até a cadência e os locais de desfile, nunca aceitando sujeitar-se aos concursos oficiais. Mas mais que isso, em seu terreiro recuperou-se a prática das danças afro-brasileiras como o jongo, a capoeira e o caxambu, cultivou-se outra vez o samba de terreiro como expressão fundamental da riqueza musical do samba, organizou-se a prática da assistência social à comunidade.


Fruto indireto da portentosa árvore da Quilombo foi o surgimento, na virada dos anos 70 para 80, do movimento originado a partir da quadra do bloco carnavalesco Cacique de Ramos. À sombra de uma portentosa tamarineira, compositores talentosos como Almir Guineto, Zeca Pagodinho, Luiz Carlos da Vila e Arlindo Cruz revigoraram a tradição um tanto abandonada do partido alto, introduziram novos instrumentos como o banjo e o repique de mão, conseguindo transpor para o disco e os meios de comunicação o espírito dos tradicionais pagodes de fundo de quintal. Na esteira desses pioneiros, um sem número de grupos de samba surgiu, muitas vezes sem a necessária competência musical, incentivados pela grande indústria fonográfica (aliás, a prática é comum: surgido um gênero de sucesso, por mérito ou por imposição fabricada, explora-se aquela fórmula musical à exaustão, na repetição de uma lógica capitalista rasteira que, buscando diminuir custos pela massificação da produção em série, trata a cultura de um povo como produção de salsichas), levando a uma overdose que colocou o samba em relativo ostracismo por quase uma década, pondo fim à chamada primeira geração do pagode, da qual sobreviveram afortunadamente os talentos incontestes. Nesta lacuna, surgiu e começou a proliferar uma forma deturpada de executar o samba, com letras “românticas” de baixa qualidade, melodias fáceis, descaracterização completa dos elementos rítmicos e formação instrumental do samba tradicional, a que se deu, de maneira completamente imprópria, o nome de “pagode”.


Mais um teste para o samba. Agora massacrado pela massificação da mesmice e da pobreza musical, quando não da quase “pornografia sonora”, o samba autêntico e de qualidade, que nunca morreu ou fraquejou, pegou o atalho que na segunda metade da década passada possibilitou o barateamento dos custos de produção fonográfica e o surgimento de meios de comunicação alternativos como a Internet, e voltou a se afirmar e ocupar os espaços que são seus por direito. É assim que atualmente assistimos a um belíssimo momento, com os mestres veteranos produzindo como novatos e os novos talentos buscando seus espaços na trilha das lições certeiras da tradição. As rodas de samba proliferam por todo o Brasil, muitos discos são gravados, mais e mais programas de rádio e televisão dão espaço ao verdadeiro e bom samba. Muito ainda há que ser feito, é claro, no sentido de democratizar-se os meios de distribuição de discos e de difusão pelos veículos de massa, ainda dominados pela lógica estrita dos lucros dos grandes conglomerados capitalistas.


Importa, em conclusão, não esquecermos que o samba é um dos traços mais autênticos e genuínos da cultura brasileira. Forma de expressão musical essencialmente negra em suas matrizes, símbolo da contribuição africana na formação da nação brasileira, e que ao mesmo tempo traduz como nenhuma outra os traços mestiços desse povo que se forma do encontro de três raças. O samba espelha de maneira maravilhosa a incorporação dos principais legados culturais da africanidade para a identidade brasileira, num exemplo portentoso de afirmação e síntese dialética na construção dos traços marcantes da face nacional. O samba, assim, é mais que um gênero musical, uma dança ou uma festa. Representa verdadeiramente uma cultura, um modo de ser, de se comportar, ver o mundo, interpretá-lo e reexprimí-lo.


A cultura do samba engendra uma forma particularmente brasileira de construção social. Nela prima a singularidade do indivíduo e de sua expressão criativa, enquanto na sociedade capitalista o indivíduo é uma parte desqualifiacada de uma massa informe. O sambista é sujeito da história, quando constrói seu espaço de sociabilidade, de integração e de expressão singulares a partir da prática do canto, da dança, da poesia, da crítica. O indivíduo na sociedade capitalista está sujeito às regras preestabelecidas que normatizam os espaços de integração e socialização, sobre as quais ele não pode influir. O que pode parecer mera teoria, transforma-se em vivência: quem participa de um samba verdadeiro pode experimentar, na prática, uma forma de socialização que rejeita e reinventa as regras da sociedade capitalista; pode experimentar uma das mais belas formas de funcionamento de uma estrutura social sem classes, sem o predomínio da lógica abstrata e embrutecedora do dinheiro e do poder.


Por isso a história do samba, como a de outras manifestações autênticas da cultura dos povos, é uma tensão dialética constante entre a afirmação da identidade popular e a reação das super-estruturas do capitalismo. Ora pela repressão, ora pela apropriação; seja pela imposição de elementos estranhos externos, seja pela condenação ao esquecimento, seja pela cooptação. Acredito, verdadeiramente, que sempre que um surdo bater a marcação, um tamborim fizer o contraponto, um cavaco der um tom e o pandeiro rufar suas platinelas, a chama da resistência ali estará acesa.





Bibliografia básica:


Moura, Roberto – Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro, RJ, Funarte 1983


Lopes, Nei – Sambeabá – O Samba que não se aprende na escola – RJ, Casa da Palavra/Folha Seca, 2003-11-18


Tinhorão, José Ramos – História Social da Música Popular Brasileira – São Paulo, Ed. 34, 1998


- Música Popular: um tema em debate – São Paulo, Ed.34, 1997


Vargens, João Batista M. - Candeia – Luz da Inspiração, Rio de Janeiro, Funarte, 1987


Cabral, Sérgio – As Escolas de Samba do Rio de Janeiro, RJ, Lumiar, 1996


Para uma bibliografia mais completa, clique aqui.





* Nota necessária: antes que me crucifiquem, como se pode ler na introdução geral à primeira parte deste texto, trata-se de uma abordagem superficial e dirigida a iniciantes leigos. As simplificações e generalizações, assim, são inevitáveis. Então, em primeiro lugar, não era intenção discutir a bossa nova. Em segundo, não cabia nos estreitos limites do texto em questão tratar, por exemplo, a discussão de uma questão rítmica de natureza mais técnica, mais sutil, qual seja a radicalização da síncopa que predominou no padrão estético que a bossa nova foi construindo. Muito menos se essa padronização constitui-se verdadeiramente em simplificação ou não, conceito que tenho, mas deixo aqui apenas sugerido. Exclui-se desta generalização, outrossim, por óbvio, a polirritmia genialmente pessoal de João Gilberto.



Dia do Samba

Escrevi a pedidos, por ocasião da celebração do Dia do Samba no ano de 2003, um pequeno e despretensioso texto para servir de uma breve abordagem do que eu julgava os aspectos fundamentais do desenvolvimento histórico do samba urbano (notadamente carioca) no século XX. O texto foi usado para uma espécie de cartilha distribuída para alguns setores do movimento popular na cidade de São Paulo, patrocinada pelo mandato do então deputado Nivaldo Santana, nosso companheiro de muitas jornadas. Acredito que tenha cumprido (o texto) sua tarefa com a dignidade possível. Presta-se a não mais que um guia de referência rápida, como tantos outros que brotam por aí (a respeito de qualquer coisa, diga-se). Tem, portanto, todos os defeitos, superficialidades e simplificações que me fazem nutrir pouco apreço por empreitadas do gênero. Como único mérito, acredito, uma razoável depuração de erros grosseiros e confusões conceituais que comumente se firmam no leitor que se debruça desordenadamente pela bibliografia disponível, de confiabilidade bastante variável, fruto de duas décadas e meia de leituras, vivências, histórias ouvidas, comparações e reflexões. Por essa única virtude defensável, creio ser de algum proveito sua disponibilização pública neste espaço. O julgamento sobre o acerto desta disposição, a partir daqui, não mais me compete.



Pequena cartilha para uma história do samba


Introdução


A palavra “samba” é de origem controvertida. Nei Lopes - um dos mais importantes estudiosos da herança cultural africana no Brasil e autor de muitos sambas que a gente vive cantando por aí - assinala que a raiz remota seria a palavra “semba”, que em vários idiomas da grande família lingüística banto (presente nas regiões da atual Angola, Congo e Moçambique) da a idéia de “separação”. Desta palavra teria surgido o termo “disemba”, que no idioma quimbundo (outro da família banto) significa “umbigada”. Essa umbigada é uma espécie de passo de dança em que dois dançarinos se “cumprimentam” tocando-se nos umbigos, ou apenas insinuando esse gesto; passo que é extremamente característico de em um sem número de manifestações dançantes de origem afriacana que até hoje se praticam no Brasil, como o jongo (RJ e SP), o coco (região Nordeste), o lundu (regiões Norte e Nordeste), o congo (ES e MG), o tambor de crioula (MA) entre outros.

Na segunda metade do século XIX, era corrente para designar diversas expressões de dança derivadas dos batuques africanos trazidos para o Brasil pelos negros escravizados, bem como as reuniões ou ajuntamentos festivos onde essas danças e batuques se praticavam. Esses “sambas” eram freqüentados por negros, escravos, livres e libertos, mulatos e brancos pertencentes às camadas socialmente mais desfavorecidas, o que proporcionou uma progressiva mistura dos ritmos africanos originários com outras espécies de música correntes entre os brancos e mulatos pobres, de origem ou influência européia, como as modinhas.

Até hoje são múltiplas as acepções do vocábulo “samba”, sendo que a mais corrente designa o ritmo nacional por excelência, de compasso binário (2/4), não desaparecendo, entretanto, as que se reportam à dança, à festa e à celebração. Ainda sobrevivem entre nós expressões como: “vamos a um samba em tal lugar”, ou “vai ter um pagode lá em casa”.



Parte I – Das origens à escola


O samba como gênero musical próprio começa a ser gestado na passagem do século XIX para o século XX, nos bairros de marcada predominância negra na cidade do Rio de Janeiro, a chamada “Pequena África”, que inicialmente compreendia basicamente a Zona Portuária e algumas ruas da Zona Central. Isso porque o trabalho da estiva é o que em maior grau pôde abrigar a população negra chegada à Capital da República vinda da zona rural, após a abolição da escravatura. Nestas regiões rapidamente começou a se destacar o núcleo dos negros chegados da cidade de Salvador e de seus entornos, visto que os negros baianos possuíam um grau mais perceptível de organização e consciência cultural. Na Bahia a religião afro-brasileira já se encontrava na época bem mais estruturada e são muitos os episódios relatados de revoltas escravas na capital baiana durante o século XIX.

Assim, chegando no Rio de Janeiro, as casas das chamadas tias baianas – dentre as quais a mais famosa foi Tia Ciata, nascida Hilária Batista de Almeida, em Santo Amaro da Purificação - foram se tornando uma espécie de referência cultural, religiosa e de organização social, onde se praticava o culto afro, onde se faziam as festas, organizavam-se as irmandades religiosas e as manifestações carnavalescas etc. Mais do que nunca, esses eventos eram freqüentados não só pelos negros, mas por uma ampla variedade de setores das classes populares, como baixos funcionários públicos ou militares e gente de ofícios autônomos como barbeiros e artesãos.Entre estes era grande o número de músicos, pois que suas ocupações permitiam que se dedicassem ao estudo musical, ainda que muitas vezes superficial, o que não acontecia, por exemplo, com quem estivesse submetido às duríssimas jornadas de trabalho da estiva. Esta mistura de músicos instrumentais de formação e influência da música profana de origem européia com o elemento africano de acentuada predominância rítmica e percussiva, já tinha originado expressões como o lundu e o choro.

No começo do século XX, ao lado desses, começa a firmar-se também o samba. Então, nas festas das casas das tias baianas, enquanto na sala se praticava o choro, no quintal ou terreiro, na parte traseira, cantava-se e dançava-se os ritmos africanos como o jongo e o caxambu, jogava-se o jogo da pernada (ou batucada, ou samba-duro) e cantava-se o samba. Inicialmente, tratava-se basicamente do samba de partido-alto, modalidade mais tradicional do samba, cantado em forma de desafio por dois ou mais cantores, com uma parte coral em forma de refrão e outra solada, normalmente cantada de improviso.

Os sambas foram, a partir das casas das tias baianas, ganhando o gosto da população e espalhando-se pelos demais redutos de população pobre que iam-se desenvolvendo conforme as zonas centrais da cidade passassem a não mais comportar as grandes massas populares desprovidas de trabalho fixo, nas quais os negros e mestiços formavam a ampla maioria. Assim é que o samba como gênero musical propriamente urbano e original ganha os morros próximos à Zona Central, entre os quais, primeiramente os morros da Favela e de São Carlos e, depois, Mangueira e Salgueiro, para daí espalhar-se pelos subúrbios. Mas se esses sambas de partido-alto, ainda ritmicamente muito próximos aos batuques africanos dos terreiros e macumbas ganhavam a cidade, o samba que pela primeira vez em 1917 chegou ao disco ostentando esse nome, seria um samba menos percussivo e mais próximo do que os ouvidos de então conheciam como “maxixe”, gênero musical especificamente destinado à dança de salões de baile, caracterizado pela coreografia sensual de volteios e rebolados. Tal como o choro e o lundu, o maxixe também era um dos filhos dessa grande família surgida da mistura da música européia com os ritmos africanos. Como explicar essa diferença?

Os nomes mais importantes dessa época na história que estamos contando são os de Pixinguinha, Donga e João da Baiana. Enquanto o último era um ritmista de mão cheia, os outros dois eram mestres nos instrumentos que executavam, respectivamente a flauta e o violão. Nesse tempo, não havia a intenção de se compor melodias e letras específicas que fossem entituladas sambas, pois o rádio ainda não existia e o disco engatinhava. Os sambas, como dissemos, surgiam nas festas, com refrões criados na hora ou herdados das tradições musicais há muito cultivadas pelos negros e estrofes improvisadas. Assim o maxixe “Pelo Telefone”, oficialmente o primeiro samba gravado em disco, de autoria de Donga e Mauro de Almeida, nada mais é do que um ajuntamento de vários refrões populares e temas recorrentes nas rodas de partido-alto.

A mudança rítmica do batuque para o maxixe justificava-se porque as classes da elite que tinham acesso aos discos e aparelhos reprodutores estavam mais familiarizadas com esse gênero, enquanto a percussão típica do samba, então presente nas rodas de partido-alto, ainda poderiam soar um tanto “bárbaras” para uma casta social ainda fortemente marcada pelo preconceito e pela cultura branca de matriz européia. Trata-se da primeira apropriação e alteração dos elementos tradicionais e históricos da cultura do samba em nome de objetivos estranhos ao meio sócio-cultural em que ela se desenvolveu. O chamado samba amaxixado imperou, nas casas de dança, cabarés e nos salões das famílias abastadas até o final da década de 20 e teve como grande mestre o pianista J.B. Silva, o popularíssimo Sinhô. Entre os inúmeros sambas de sucesso gravados por grandes nomes do disco como Mário Reis e Francisco Alves, o clássico “Jura” está entre os mais conhecidos, tendo há pouco merecido uma regravação de Zeca Pagodinho para servir de tema a uma novela de televisão. Nessa gravação pode-se ter uma boa idéia do tipo de samba que predominou até 1930, pois buscou-se ser fiel ao espírito original da composição.

Mas a despeito do reinado do maxixe, o samba ritmado seguiu vivo em todas as comunidades populares de grande presença negra, tendo se fixado ao longo da segunda metade da década de 20 em redutos como a região do Estácio de Sá (entre os morros de São Carlos e Favela), os morros de Mangueira e Salgueiro e o subúrbio de Oswaldo Cruz. Nesta época, a principal manifestação organizada durante o carnaval ainda eram os ranchos, que tiveram origem humilde, negra também, derivados dos desfiles de pastoris que se celebravam na época do Natal. Mas já nos anos 20, os desfiles de rancho, influenciados por formas carnavalescas européias que primavam pelas fantasias elaboradas e a utilização de carros alegóricos, tinham-se transformado em grandes e elaboradas organizações, com movimentação de consideráveis somas de dinheiro para a organização dos desfiles, não acessíveis, portanto, às classes sociais excluídas. Assim, as camadas populares absorveram dos ranchos a maneira de desfilar em forma de procissão, a utilização de fantasias e as figuras do baliza e da porta-estandarte; das grandes sociedades carnavalescas, absorveram os carros alegóricos; e utilizando a música então mais corrente e popular – o samba – criaram a mais original e importante das manifestações populares do carnaval brasileiro: as escolas de samba.

[continua]