Escrevi a pedidos, por ocasião da celebração do Dia do Samba no ano de 2003, um pequeno e despretensioso texto para servir de uma breve abordagem do que eu julgava os aspectos fundamentais do desenvolvimento histórico do samba urbano (notadamente carioca) no século XX. O texto foi usado para uma espécie de cartilha distribuída para alguns setores do movimento popular na cidade de São Paulo, patrocinada pelo mandato do então deputado Nivaldo Santana, nosso companheiro de muitas jornadas. Acredito que tenha cumprido (o texto) sua tarefa com a dignidade possível. Presta-se a não mais que um guia de referência rápida, como tantos outros que brotam por aí (a respeito de qualquer coisa, diga-se). Tem, portanto, todos os defeitos, superficialidades e simplificações que me fazem nutrir pouco apreço por empreitadas do gênero. Como único mérito, acredito, uma razoável depuração de erros grosseiros e confusões conceituais que comumente se firmam no leitor que se debruça desordenadamente pela bibliografia disponível, de confiabilidade bastante variável, fruto de duas décadas e meia de leituras, vivências, histórias ouvidas, comparações e reflexões. Por essa única virtude defensável, creio ser de algum proveito sua disponibilização pública neste espaço. O julgamento sobre o acerto desta disposição, a partir daqui, não mais me compete.
Pequena cartilha para uma história do samba
Introdução
A palavra “samba” é de origem controvertida. Nei Lopes - um dos mais importantes estudiosos da herança cultural africana no Brasil e autor de muitos sambas que a gente vive cantando por aí - assinala que a raiz remota seria a palavra “semba”, que em vários idiomas da grande família lingüística banto (presente nas regiões da atual Angola, Congo e Moçambique) da a idéia de “separação”. Desta palavra teria surgido o termo “disemba”, que no idioma quimbundo (outro da família banto) significa “umbigada”. Essa umbigada é uma espécie de passo de dança em que dois dançarinos se “cumprimentam” tocando-se nos umbigos, ou apenas insinuando esse gesto; passo que é extremamente característico de em um sem número de manifestações dançantes de origem afriacana que até hoje se praticam no Brasil, como o jongo (RJ e SP), o coco (região Nordeste), o lundu (regiões Norte e Nordeste), o congo (ES e MG), o tambor de crioula (MA) entre outros.
Na segunda metade do século XIX, era corrente para designar diversas expressões de dança derivadas dos batuques africanos trazidos para o Brasil pelos negros escravizados, bem como as reuniões ou ajuntamentos festivos onde essas danças e batuques se praticavam. Esses “sambas” eram freqüentados por negros, escravos, livres e libertos, mulatos e brancos pertencentes às camadas socialmente mais desfavorecidas, o que proporcionou uma progressiva mistura dos ritmos africanos originários com outras espécies de música correntes entre os brancos e mulatos pobres, de origem ou influência européia, como as modinhas.
Até hoje são múltiplas as acepções do vocábulo “samba”, sendo que a mais corrente designa o ritmo nacional por excelência, de compasso binário (2/4), não desaparecendo, entretanto, as que se reportam à dança, à festa e à celebração. Ainda sobrevivem entre nós expressões como: “vamos a um samba em tal lugar”, ou “vai ter um pagode lá em casa”.
Parte I – Das origens à escola
O samba como gênero musical próprio começa a ser gestado na passagem do século XIX para o século XX, nos bairros de marcada predominância negra na cidade do Rio de Janeiro, a chamada “Pequena África”, que inicialmente compreendia basicamente a Zona Portuária e algumas ruas da Zona Central. Isso porque o trabalho da estiva é o que em maior grau pôde abrigar a população negra chegada à Capital da República vinda da zona rural, após a abolição da escravatura. Nestas regiões rapidamente começou a se destacar o núcleo dos negros chegados da cidade de Salvador e de seus entornos, visto que os negros baianos possuíam um grau mais perceptível de organização e consciência cultural. Na Bahia a religião afro-brasileira já se encontrava na época bem mais estruturada e são muitos os episódios relatados de revoltas escravas na capital baiana durante o século XIX.
Assim, chegando no Rio de Janeiro, as casas das chamadas tias baianas – dentre as quais a mais famosa foi Tia Ciata, nascida Hilária Batista de Almeida, em Santo Amaro da Purificação - foram se tornando uma espécie de referência cultural, religiosa e de organização social, onde se praticava o culto afro, onde se faziam as festas, organizavam-se as irmandades religiosas e as manifestações carnavalescas etc. Mais do que nunca, esses eventos eram freqüentados não só pelos negros, mas por uma ampla variedade de setores das classes populares, como baixos funcionários públicos ou militares e gente de ofícios autônomos como barbeiros e artesãos.Entre estes era grande o número de músicos, pois que suas ocupações permitiam que se dedicassem ao estudo musical, ainda que muitas vezes superficial, o que não acontecia, por exemplo, com quem estivesse submetido às duríssimas jornadas de trabalho da estiva. Esta mistura de músicos instrumentais de formação e influência da música profana de origem européia com o elemento africano de acentuada predominância rítmica e percussiva, já tinha originado expressões como o lundu e o choro.
No começo do século XX, ao lado desses, começa a firmar-se também o samba. Então, nas festas das casas das tias baianas, enquanto na sala se praticava o choro, no quintal ou terreiro, na parte traseira, cantava-se e dançava-se os ritmos africanos como o jongo e o caxambu, jogava-se o jogo da pernada (ou batucada, ou samba-duro) e cantava-se o samba. Inicialmente, tratava-se basicamente do samba de partido-alto, modalidade mais tradicional do samba, cantado em forma de desafio por dois ou mais cantores, com uma parte coral em forma de refrão e outra solada, normalmente cantada de improviso.
Os sambas foram, a partir das casas das tias baianas, ganhando o gosto da população e espalhando-se pelos demais redutos de população pobre que iam-se desenvolvendo conforme as zonas centrais da cidade passassem a não mais comportar as grandes massas populares desprovidas de trabalho fixo, nas quais os negros e mestiços formavam a ampla maioria. Assim é que o samba como gênero musical propriamente urbano e original ganha os morros próximos à Zona Central, entre os quais, primeiramente os morros da Favela e de São Carlos e, depois, Mangueira e Salgueiro, para daí espalhar-se pelos subúrbios. Mas se esses sambas de partido-alto, ainda ritmicamente muito próximos aos batuques africanos dos terreiros e macumbas ganhavam a cidade, o samba que pela primeira vez em 1917 chegou ao disco ostentando esse nome, seria um samba menos percussivo e mais próximo do que os ouvidos de então conheciam como “maxixe”, gênero musical especificamente destinado à dança de salões de baile, caracterizado pela coreografia sensual de volteios e rebolados. Tal como o choro e o lundu, o maxixe também era um dos filhos dessa grande família surgida da mistura da música européia com os ritmos africanos. Como explicar essa diferença?
Os nomes mais importantes dessa época na história que estamos contando são os de Pixinguinha, Donga e João da Baiana. Enquanto o último era um ritmista de mão cheia, os outros dois eram mestres nos instrumentos que executavam, respectivamente a flauta e o violão. Nesse tempo, não havia a intenção de se compor melodias e letras específicas que fossem entituladas sambas, pois o rádio ainda não existia e o disco engatinhava. Os sambas, como dissemos, surgiam nas festas, com refrões criados na hora ou herdados das tradições musicais há muito cultivadas pelos negros e estrofes improvisadas. Assim o maxixe “Pelo Telefone”, oficialmente o primeiro samba gravado em disco, de autoria de Donga e Mauro de Almeida, nada mais é do que um ajuntamento de vários refrões populares e temas recorrentes nas rodas de partido-alto.
A mudança rítmica do batuque para o maxixe justificava-se porque as classes da elite que tinham acesso aos discos e aparelhos reprodutores estavam mais familiarizadas com esse gênero, enquanto a percussão típica do samba, então presente nas rodas de partido-alto, ainda poderiam soar um tanto “bárbaras” para uma casta social ainda fortemente marcada pelo preconceito e pela cultura branca de matriz européia. Trata-se da primeira apropriação e alteração dos elementos tradicionais e históricos da cultura do samba em nome de objetivos estranhos ao meio sócio-cultural em que ela se desenvolveu. O chamado samba amaxixado imperou, nas casas de dança, cabarés e nos salões das famílias abastadas até o final da década de 20 e teve como grande mestre o pianista J.B. Silva, o popularíssimo Sinhô. Entre os inúmeros sambas de sucesso gravados por grandes nomes do disco como Mário Reis e Francisco Alves, o clássico “Jura” está entre os mais conhecidos, tendo há pouco merecido uma regravação de Zeca Pagodinho para servir de tema a uma novela de televisão. Nessa gravação pode-se ter uma boa idéia do tipo de samba que predominou até 1930, pois buscou-se ser fiel ao espírito original da composição.
Mas a despeito do reinado do maxixe, o samba ritmado seguiu vivo em todas as comunidades populares de grande presença negra, tendo se fixado ao longo da segunda metade da década de 20 em redutos como a região do Estácio de Sá (entre os morros de São Carlos e Favela), os morros de Mangueira e Salgueiro e o subúrbio de Oswaldo Cruz. Nesta época, a principal manifestação organizada durante o carnaval ainda eram os ranchos, que tiveram origem humilde, negra também, derivados dos desfiles de pastoris que se celebravam na época do Natal. Mas já nos anos 20, os desfiles de rancho, influenciados por formas carnavalescas européias que primavam pelas fantasias elaboradas e a utilização de carros alegóricos, tinham-se transformado em grandes e elaboradas organizações, com movimentação de consideráveis somas de dinheiro para a organização dos desfiles, não acessíveis, portanto, às classes sociais excluídas. Assim, as camadas populares absorveram dos ranchos a maneira de desfilar em forma de procissão, a utilização de fantasias e as figuras do baliza e da porta-estandarte; das grandes sociedades carnavalescas, absorveram os carros alegóricos; e utilizando a música então mais corrente e popular – o samba – criaram a mais original e importante das manifestações populares do carnaval brasileiro: as escolas de samba.
[continua]
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