sexta-feira, 6 de fevereiro de 2004

Carnaval


Na relatividade

não pensada dos espaços

distantes unidos na dimensão das melodias

encontram-se amantes do mesmo não-ser

Que se faz ressuscitar – oh! Lamartine – entre abraços

A imensa Cidade Pequena em erupção

verdejando pelas fendas dos comandos de cimento

- e ressentimento

A renascer

Contraindo-se em quatro dias

na contra-mão da esperada expansão

eterna da impossibilidade


(fevereiro de 2003)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2004

...

Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto.
Para poder morrer
Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as paredes
Derruídas
Para poder morrer
Visto as cambraias
E apascento os olhos
Para novas vidas
Para poder morrer apetecida
Me cubro de promessas
Da memória.
Porque assim é preciso
Para que tu vivas.

( Hilda Hilst, 21/04/1930 - 04/02/2004)

Conexão e revolução

Fernando Szegeri


Quem já não se pegou em situações de completa estupefação em relação a atitudes, reações e comportamentos de pessoas com quem somos postos em contato no dia-a-dia, de modo a perguntar a si próprio: em que mundo estou vivendo? São cada vez mais comuns as situações de absoluto estranhamento em relação às posturas do "outro", no trânsito, no trabalho, na vizinhança. Este "outro" não é ninguém mais que o "próximo" de outros tempos, aquele que partilha conosco os mesmos espaços comuns, públicos ou semi-públicos.

Essa sensação da inviabilização da comunicação e do entendimento na vida quotidiana, o esfacelamento dos padrões tradicionais de sociabilidade exprimem a falência das estruturas reprodutoras dos valores sociais elementares como a escola, a religião e a família. Num passado não tão distante, a presença marcante dessas estruturas acabava por gerar um substrato de valores comuns que possibilitava o estabelecimento de um nível de diálogo impensável na ausência de mínimos acordos, pressupostos de todo ato comunicacional.

Numa sociedade assim cada vez mais dominada pelo não-entendimento (e, como conseqüência, pela violência em diversos níveis), com cada vez menos valores comuns encontráveis em grandes cortes da população cada vez mais concentrada e (des)organizada em centros urbanos caóticos, o encontro pessoal, face a face, tende a tornar-se um problema. Na ausência desses pressupostos e formas de reprodução simbólica clássicas, as estruturas mínimas de sociabilidade passam a depender dos valores reproduzidos pelos meios de comunicação de massa, submetidos à lógica estrita do capitalismo ultra-consumista. Percebe-se, portanto, que não se possa esperar ética, solidariedade, respeito pela pessoa humana etc. numa sociedade moldada à imagem e semelhança dos pastiches grotescos dos "realitty shows".

A lógica elementar do capitalismo reza que o detentor da propriedade dos meios de produção é quem dita os padrões, critérios e diretrizes da atividade produtiva, com vistas a remuneração do capital empatado e conseqüente acumulação. Das determinações do processo produtivo estão alienados, assim, tanto os trabalhadores responsáveis diretamente pela atividade de produção, como os consumidores do produto final. Isso é tão mais marcante quanto seja requerido um maior aporte de capital para se viabilizar a atividade produtiva.

Assim sempre foi no setor de comunicação, pois que a produção de um grande jornal, a montagem de uma emissora de rádio ou televisão sempre requereu a mobilização de grandes somas de capital. O advento e a progressiva popularização da rede mundial de computadores, porém, instaurou uma tendência de subversão dessa lógica básica, e talvez esteja aí a sua dimensão mais efetivamente revolucionária. Na Internet, os que se debruçam sobre a atividade de produzir informação não carecem de muito dispêndio de capital, o que leva a uma grande horizontalização pulverização da produção informativa, com a conseqüente pluralidade. Quebra-se igualmente o paradigma da acumulação, quando se vê que uma enorme parte da informação produzida na rede não se destina a gerar lucratividade diretamente (ou seja, não há capital empatado que seja necessário remunerar), sendo motivada muito mais pelo que poderíamos chamar de espírito de compartilhamento. Em verdade, em poucos anos a Internet dos negócios virtuais mirabolantes, do sonho do enriquecimento vertiginoso, dos mega-portais milionários foi dando lugar à proliferação irrefreável dos "blogs" e páginas pessoais, movidas unicamente pelo anseio comunicativo.

Assim, a rede, subvertendo a lógica básica da produção da informação em larga escala, abala certamente as formas de reprodução simbólica que os meios de comunicação passam a exercer a partir da falência dos emissores tradicionais a que já nos referimos e, em certa escala, passa a substituir tanto estes como aqueles. Efetivamente, a rede esfacela não só o monopólio capitalista da produção de informação em larga escala, como outros paradigmas tradicionais como a comunicação massiva "em via de mão única". Essa é uma dimensão importante da revolução entabulada pela rede, só limitada em função da não democratização do acesso digital a todas as camadas da população. Seu conteúdo será cada vez mais presente e sensível na medida em que maiores fatias do povo tiverem acesso ao mundo cibernético, tal como se deu com a televisão, que passou de artigo de luxo, há 30 anos, para gênero de 1ª necessidade. A disseminação do computador e das conexões em rede poderá ser a grande primeira revolução do século XXI.

A rede propicia, sem dúvida, uma importante dimensão de sociabilização, pois, além da proteção oferecida pela ausência de contato físico no espaço de mediação , oferece a possibilidade de aproximação das pessoas filtradas por interesses comuns prévios aos encontros que se estabelecem. Além do mais, o ambiente virtual permite a possibilidade da discussão e criação permanente de códigos de conduta e valores tendentes a construir o espaço de convivência (quem participa de qualquer lista de discussão na rede pode constatar a recorrência dos temas auto-referentes, como o que pode e o que não pode ser debatido naquele espaço) .

A substituição do contato real pelo contato virtual é, assim, decorrência e não causa do isolamento das pessoas, como parece óbvio. Porém, essa atomização dos espaços de convivência e seus respectivos valores, regras e substratos simbólicos, pode de um lado salvar o indivíduo do isolamento completo a que de outro modo estaria submetido, mas no limite tende a agravar a inclinação já largamente sentida de impossibilidade de construção de espaços maiores de sociabilidade, como a cidade e a nação, por exemplo. Vale dizer, as "comunidades" construídas virtualmente tornam-se possíveis pela existência do espaço contínuo de mediação para reprodução e recriação dos valores, representações, referenciais e regras que tornam possível a ação comunicacional e conseqüente racionalização das formas de convivência e tomada de decisão. Por outro lado, a espeficidade desses sistemas comunicativos auto-referentes tende a acentuar a dificuldade de interconexão entre os diferentes grupos, ou destes com as esferas maiores de socialização.Assim, acentuada uma incapacidade dos meios tradicionais de forjar os meios simbólicos comuns necessários à subsistência das formas de sociabilização a que ainda estamos fortemente submetidos, caminharíamos assim para uma espécie de "feudalismo virtual".

Não sabemos ao certo como estas novas formas de sociabilidade conviverão com as tradicionais, de modo que se nos afigura ao menos temerária a deposição de todas as esperanças dos que lutam por novos estágios de desenvolvimento da humanidade unicamente na chamada inclusão digital e na globalização total cibernética. Os grandes desafios de justiça política, social e econômica sobreviverão, como tem sido até então, enquanto centro principal de nossas preocupações imediatas, ainda que seja enorme o poder da ferramenta que cada vez mais se põe em nossas mãos.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2004

Segura

Vou falar de um bairro.

Quando em 1987 li a excelente biografia de Noël Rosa, por João Máximo e Carlos Didier, ficava imaginariamente passeando por aquelas ruas e esquinas da Vila Isabel dos anos 30, como a gente instintivamente faz quando lê qualquer livro. Chamava-me a atenção especialmente o Ponto dos Cem Réis, onde os bondes faziam a volta para retornarem ao centro da cidade e os passageiros que seguiam tinham que pagar mais cem réis. Nenhuma foto, apenas as imagens compondo-se em minha mente, pelas descrições dos autores e a narrativa das histórias.

Eu que já tinha então lido duas outras obras sobre a vida do Poeta da Vila – a clássica, escrita por Almirante, "No tempo de Noël Rosa" e um pequeno livreto chamado "Noel Rosa: de costas para o mar", de cujo autor o nome me escapa agora – sofri um grande impacto com o livro de Máximo e Didier. Na primeira oportunidade que tive de ir ao Rio, não pestanejei em conferir in loco os caminhos do bairro mais cantado na história da música popular. Difícil descrever a sensação. Só sei que o sangue efetivamente me faltou quando descortinou-se em minha frente exatamente o cenário que em minha cabeça compunha o Ponto dos Cem Réis. Cético que era e sou, cheguei em casa para conferir a localização exata d o local do retorno dos bondes. Batata...

A partir de então, desenvolvi uma ligação muito particular com o aquele bairro "bem ali entre o Maracanã, Grajaú e Salgueiro". Esse namoro, começado no Boulevard e selado na Praça Sete (Barão de Drummond), depois estendeu-se pelas travessas, pelos butiquins, pelos arredores do Macaco. Foi muitas vezes celebrado no Costa, no Petisco, no Palpite, no Bar Madri, quase na subida do morro. E, mais recentemente, no Estephanio’s.


Vou falar de um butiquim.

Vésperas de carnaval, ensaio do bloco "Segura pra não cair", em frente ao Estephanio’s. Grande balbúrdia, confusão, chope servido prudentemente em copos de plástico, na base da comanda. Chegamos eu e Marcão a um garçom conhecido e pergunto se não poderia beber no copo de vidro. "Você, pode", respondeu-me com a solicitude de sempre. Eu, insistindo na chatice com ele: não pode você marcar os chopes, sem esse negócio de comanda? "Pode".

Querendo sentar, pergunto se não pode colocar uma mesa bem na porta do bar, mesmo que ninguém mais pudesse entrar e sair. "Pode". Mas era embaixo do ventilador e esquentava meu chope.

- Pode desligar o ventilador?

- Pode.

Pedi um ovo cozido, não tinha.

- Pode ir buscar o ovo no bar do lado?

- Pode.

Aí virou festa. Marcão começou a provocar.

- Pode me mandar uma porção de moela acebolada sem a cebola?

- Pode fazer uma porçãozinha de torresmo sem a gordurinha de fora?

- Pode pagar com cheque pra daqui 15 dias?

Não havia pergunta que fizéssemos que a resposta não fosse invariavelmente a mesma. Esse é o Estephanio’s, o bar onde TUDO PODE!


Vou falar de um irmão de fé.

Conheci-o pela Internet, numa lista de discussão. Ele invariavelmente arrumando confusão com opiniões contundentes, sem preocupação de agradar quem quer que fosse. Depois fundou o seu próprio sítio, o saudoso "Sentando o Cacete", reunindo um timaço de feras da caneta, descendo o pau em Deus e o mundo. Ganhou a minha alma no primeiro texto, contando como trocara o caco de vidro de uma menina que viera lhe assaltar por um beijo e um pedaço de pizza. Depois nos conhecemos pessoalmente, bêbados, num bloco de carnaval.

Esse é meu irmãozinho de fé Eduardo Goldenberg. Advogado destemido, cronista de mão cheia, lutador desesperado pelas idéias em que acredita, arrumador de justas encrencas, fígado nervosíssimo, contador impagável das melhores histórias, coração de manteiga. Uma das melhores prosas e uma das figuras mais autênticas e íntegras que conheci.


Vou falar de um ídolo.

Aldir Blanc Mendes é o ídolo dos meus trinta anos, como Rubem Braga foi dos meus quinze, com a diferença de que pude dizer isso a ele, na mais fantástica bebedeira da minha vida. O maior poeta da música popular brasileira. A poesia e a insanidade do Aldir são o alento da minha consciência do mundo, entre deslumbrada, atormentada e perdida. Ambas – a insanidade e a poesia – transbordam aos borbotões de suas canções, seus livros, suas crônicas, seus poemas. Nelas me reconheço, me salvo e me perco.



Mas afinal, o que têm a ver tudo isso?

É que neste domingo desfilará o "Segura pra não cair", que se concentra no Estephanio’s, desfila pela Vila Isabel, com samba do Eduardo, homenageando Aldir. Como nunca fui ao bloco, quis arrumar um jeito de dizer porque não se pode perder esse desfile por nada desse mundo. Nem que para isso seja preciso abalar-se de São Paulo ao Rio ou adiar as férias. De brinde, a letra do samba:


O INVENTÁRIO DA INFÂNCIA DE ALDIR BLANC EM VILA SABEL

(Eduardo Goldenberg, Mariana Blanc, Edmundo Souto e Fernando de Lima)


Hoje eu vou voltar no tempo...
Recordar!
Dos teus dias de criança,
o inventário da infância
são muitas histórias pra contar!
Desfilando nessa rua
sob a luz da linda lua
eu vou mostrar...
Vila, a febre que não quer passar,
do teu delírio eu fiz enredo
vem pra roda cirandar!

Dois cinco sete, eu me lembro!
Vó Noêmia!
Vô Aguiar tinha alma
bem boêmia!
Tio Placidino, Cicinha
e Tio Bimbas também,
Ceceu Rico e Helena vêm!

É, veja que felicidade,
tudo isso ainda é verdade,
Simpatia É Quase Amor!
Vem cantarolar a linda rosa juvenil,
que teu sonho descobriu!

Uni-duni-tê!
Arma a quadrilha que eu vou...
Anarriê!
Prima da Penha mostrou
Copacabana
de cheiro-mar tão sacana...

Vai, vai ser Blanc na vida em nome da Vila
Mesmo se o SEGURA não desfila
o show tem que continuar!

Faz do samba o "74" da saudade...
Rua dos Artistas parou pra te aplaudir
Vem, Aldir!

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2004

João do Rio


A madrinha Christiane, uma das pessoas que mais encarna o autêntico espírito carnavalesco, transcreveu no excelente Contexto da Descoberta uma belíssima página do grande cronista João do Rio, sobre os carnavais do começo do século passado.

João do Rio, como se percebe, era um retratista sagaz da cidade e da alma brasileira na virada do século XIX para o XX. Este texto, assim como todos os presentes no indispensável livro "A Alma Encantadora das Ruas", é fundamental para qualquer um que pretenda entender a identidade mais profunda do povo brasileiro. Identidade esta tão autêntica, tão presente, mas que dolorosamente vemos se esvaindo em meio a todas as formas de violência que nos são impingidas, dentre as quais talvez a mais sutil e mais destruidora seja a aniquilação da nossa singularidade, diversidade e expressividade culturais.

Duas coisas chamaram-me a atenção, particularmente. Uma é a constatação do sentido corrente da designação "sambas de carnaval" posto que nenhuma adjetivação, explicativa ou restritiva lhe segue, dando a entender que a significação fosse perfeitamente partilhada pelo senso comum. Claramente, não possui a significação rítmica específica que hoje designa um gênero musical, mesmo porque a cristalização deste elemento rítmico só se deu mais de trinta anos após a data deste maravilhoso escrito, apesar de apontar inequivocamente para as matrizes rítmicas e cênicas de origem africana (“...porque a origem dos cordões é o Afoxé africano...”). Contudo, pelo tom de todo o texto, podemos tentar intuir a carga mais profunda de significações que a palavra encerrava, algo que tange a forma mais autêntica, espontânea e, ao mesmo tempo, especificamente engendrado para desfiar as agruras, alegrias, penúrias, dasabafos e desejos de um povo que era mantido sempre calado. trezentos e sessenta e dois dias por ano. Maravilhoso saborear esta atmosfera de catarse coletiva da parcela mais humilhada, mais subjugada de uma nação. Mais emocionante é perceber como esta carga significativa da palavra "samba", enquanto o privilegiado cantochão dessa liturgia que dialeticamente leva ao extremo o sagrado e o profano, perpetuou-se mesmo após a fixação e o predomínio da significação propriamente rítmica, conferindo essa sacralidade que nós, amantes do samba, sentimos tão fortemente, mesmo sem muitas vezes sermos capazes de verbalizar. Sacralidade esta que escancara o pecado daqueles que teimam em tomar seu santo nome em vão, de pagodeiros a Super-Escolas S/A.

A segunda curiosidade é perceber como, bem inversamente ao que comumente se aceita, o carnaval de rua do Rio de Janeiro hoje é muito mais “família” do que há cem anos atrás. A única coisa que talvez haja em comum são as turbas se acotovelando nas ruas em determinadas manifestações, mas o que mais se vê hoje em dia, em vez da atmosfera de luxúria, são criancinhas montadas nos ombros dos pais. O carnaval de rua, hoje, certamente é mais comportado, mais seguro. Se ainda é alegre, se ainda se presta à descontração, à música e à dança, falta-lhe a essência do povo, em sua quase desesperada necessidade de bradar seus tormentos, desejos e prazeres em forma de sambas. Se nele há ainda, aqui ou acolá, pretas bêbadas desconjuntando os quadris largos, a verdade é que perdeu-se esta dimensão de verdadeira transgressão, na acepção visceralmente coletiva. A sua luxúria, assim como sua música e sua dança, hoje são fabricados e podem ser comprados em ofertas “pret-a-porter”.

domingo, 1 de fevereiro de 2004

Pasquim

Com pouco mais de uma semana de vida, o "Só dói quando eu Rio" foi indicado por OPasquim21, na edição desta semana, o que muitíssimo nos honra e alegra, em vista de tudo o que esse grande jornal representou e representa na resistência jornalística e cultural no Brasil. Beijo especial para meu querido Luís Pimentel e todo o time de feras do Pasca! Valeu a força!