quinta-feira, 5 de fevereiro de 2004

Conexão e revolução

Fernando Szegeri


Quem já não se pegou em situações de completa estupefação em relação a atitudes, reações e comportamentos de pessoas com quem somos postos em contato no dia-a-dia, de modo a perguntar a si próprio: em que mundo estou vivendo? São cada vez mais comuns as situações de absoluto estranhamento em relação às posturas do "outro", no trânsito, no trabalho, na vizinhança. Este "outro" não é ninguém mais que o "próximo" de outros tempos, aquele que partilha conosco os mesmos espaços comuns, públicos ou semi-públicos.

Essa sensação da inviabilização da comunicação e do entendimento na vida quotidiana, o esfacelamento dos padrões tradicionais de sociabilidade exprimem a falência das estruturas reprodutoras dos valores sociais elementares como a escola, a religião e a família. Num passado não tão distante, a presença marcante dessas estruturas acabava por gerar um substrato de valores comuns que possibilitava o estabelecimento de um nível de diálogo impensável na ausência de mínimos acordos, pressupostos de todo ato comunicacional.

Numa sociedade assim cada vez mais dominada pelo não-entendimento (e, como conseqüência, pela violência em diversos níveis), com cada vez menos valores comuns encontráveis em grandes cortes da população cada vez mais concentrada e (des)organizada em centros urbanos caóticos, o encontro pessoal, face a face, tende a tornar-se um problema. Na ausência desses pressupostos e formas de reprodução simbólica clássicas, as estruturas mínimas de sociabilidade passam a depender dos valores reproduzidos pelos meios de comunicação de massa, submetidos à lógica estrita do capitalismo ultra-consumista. Percebe-se, portanto, que não se possa esperar ética, solidariedade, respeito pela pessoa humana etc. numa sociedade moldada à imagem e semelhança dos pastiches grotescos dos "realitty shows".

A lógica elementar do capitalismo reza que o detentor da propriedade dos meios de produção é quem dita os padrões, critérios e diretrizes da atividade produtiva, com vistas a remuneração do capital empatado e conseqüente acumulação. Das determinações do processo produtivo estão alienados, assim, tanto os trabalhadores responsáveis diretamente pela atividade de produção, como os consumidores do produto final. Isso é tão mais marcante quanto seja requerido um maior aporte de capital para se viabilizar a atividade produtiva.

Assim sempre foi no setor de comunicação, pois que a produção de um grande jornal, a montagem de uma emissora de rádio ou televisão sempre requereu a mobilização de grandes somas de capital. O advento e a progressiva popularização da rede mundial de computadores, porém, instaurou uma tendência de subversão dessa lógica básica, e talvez esteja aí a sua dimensão mais efetivamente revolucionária. Na Internet, os que se debruçam sobre a atividade de produzir informação não carecem de muito dispêndio de capital, o que leva a uma grande horizontalização pulverização da produção informativa, com a conseqüente pluralidade. Quebra-se igualmente o paradigma da acumulação, quando se vê que uma enorme parte da informação produzida na rede não se destina a gerar lucratividade diretamente (ou seja, não há capital empatado que seja necessário remunerar), sendo motivada muito mais pelo que poderíamos chamar de espírito de compartilhamento. Em verdade, em poucos anos a Internet dos negócios virtuais mirabolantes, do sonho do enriquecimento vertiginoso, dos mega-portais milionários foi dando lugar à proliferação irrefreável dos "blogs" e páginas pessoais, movidas unicamente pelo anseio comunicativo.

Assim, a rede, subvertendo a lógica básica da produção da informação em larga escala, abala certamente as formas de reprodução simbólica que os meios de comunicação passam a exercer a partir da falência dos emissores tradicionais a que já nos referimos e, em certa escala, passa a substituir tanto estes como aqueles. Efetivamente, a rede esfacela não só o monopólio capitalista da produção de informação em larga escala, como outros paradigmas tradicionais como a comunicação massiva "em via de mão única". Essa é uma dimensão importante da revolução entabulada pela rede, só limitada em função da não democratização do acesso digital a todas as camadas da população. Seu conteúdo será cada vez mais presente e sensível na medida em que maiores fatias do povo tiverem acesso ao mundo cibernético, tal como se deu com a televisão, que passou de artigo de luxo, há 30 anos, para gênero de 1ª necessidade. A disseminação do computador e das conexões em rede poderá ser a grande primeira revolução do século XXI.

A rede propicia, sem dúvida, uma importante dimensão de sociabilização, pois, além da proteção oferecida pela ausência de contato físico no espaço de mediação , oferece a possibilidade de aproximação das pessoas filtradas por interesses comuns prévios aos encontros que se estabelecem. Além do mais, o ambiente virtual permite a possibilidade da discussão e criação permanente de códigos de conduta e valores tendentes a construir o espaço de convivência (quem participa de qualquer lista de discussão na rede pode constatar a recorrência dos temas auto-referentes, como o que pode e o que não pode ser debatido naquele espaço) .

A substituição do contato real pelo contato virtual é, assim, decorrência e não causa do isolamento das pessoas, como parece óbvio. Porém, essa atomização dos espaços de convivência e seus respectivos valores, regras e substratos simbólicos, pode de um lado salvar o indivíduo do isolamento completo a que de outro modo estaria submetido, mas no limite tende a agravar a inclinação já largamente sentida de impossibilidade de construção de espaços maiores de sociabilidade, como a cidade e a nação, por exemplo. Vale dizer, as "comunidades" construídas virtualmente tornam-se possíveis pela existência do espaço contínuo de mediação para reprodução e recriação dos valores, representações, referenciais e regras que tornam possível a ação comunicacional e conseqüente racionalização das formas de convivência e tomada de decisão. Por outro lado, a espeficidade desses sistemas comunicativos auto-referentes tende a acentuar a dificuldade de interconexão entre os diferentes grupos, ou destes com as esferas maiores de socialização.Assim, acentuada uma incapacidade dos meios tradicionais de forjar os meios simbólicos comuns necessários à subsistência das formas de sociabilização a que ainda estamos fortemente submetidos, caminharíamos assim para uma espécie de "feudalismo virtual".

Não sabemos ao certo como estas novas formas de sociabilidade conviverão com as tradicionais, de modo que se nos afigura ao menos temerária a deposição de todas as esperanças dos que lutam por novos estágios de desenvolvimento da humanidade unicamente na chamada inclusão digital e na globalização total cibernética. Os grandes desafios de justiça política, social e econômica sobreviverão, como tem sido até então, enquanto centro principal de nossas preocupações imediatas, ainda que seja enorme o poder da ferramenta que cada vez mais se põe em nossas mãos.

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