Vou falar de um bairro.
Quando em 1987 li a excelente biografia de Noël Rosa, por João Máximo e Carlos Didier, ficava imaginariamente passeando por aquelas ruas e esquinas da Vila Isabel dos anos 30, como a gente instintivamente faz quando lê qualquer livro. Chamava-me a atenção especialmente o Ponto dos Cem Réis, onde os bondes faziam a volta para retornarem ao centro da cidade e os passageiros que seguiam tinham que pagar mais cem réis. Nenhuma foto, apenas as imagens compondo-se em minha mente, pelas descrições dos autores e a narrativa das histórias.
Eu que já tinha então lido duas outras obras sobre a vida do Poeta da Vila – a clássica, escrita por Almirante, "No tempo de Noël Rosa" e um pequeno livreto chamado "Noel Rosa: de costas para o mar", de cujo autor o nome me escapa agora – sofri um grande impacto com o livro de Máximo e Didier. Na primeira oportunidade que tive de ir ao Rio, não pestanejei em conferir in loco os caminhos do bairro mais cantado na história da música popular. Difícil descrever a sensação. Só sei que o sangue efetivamente me faltou quando descortinou-se em minha frente exatamente o cenário que em minha cabeça compunha o Ponto dos Cem Réis. Cético que era e sou, cheguei em casa para conferir a localização exata d o local do retorno dos bondes. Batata...
A partir de então, desenvolvi uma ligação muito particular com o aquele bairro "bem ali entre o Maracanã, Grajaú e Salgueiro". Esse namoro, começado no Boulevard e selado na Praça Sete (Barão de Drummond), depois estendeu-se pelas travessas, pelos butiquins, pelos arredores do Macaco. Foi muitas vezes celebrado no Costa, no Petisco, no Palpite, no Bar Madri, quase na subida do morro. E, mais recentemente, no Estephanio’s.
Vou falar de um butiquim.
Vésperas de carnaval, ensaio do bloco "Segura pra não cair", em frente ao Estephanio’s. Grande balbúrdia, confusão, chope servido prudentemente em copos de plástico, na base da comanda. Chegamos eu e Marcão a um garçom conhecido e pergunto se não poderia beber no copo de vidro. "Você, pode", respondeu-me com a solicitude de sempre. Eu, insistindo na chatice com ele: não pode você marcar os chopes, sem esse negócio de comanda? "Pode".
Querendo sentar, pergunto se não pode colocar uma mesa bem na porta do bar, mesmo que ninguém mais pudesse entrar e sair. "Pode". Mas era embaixo do ventilador e esquentava meu chope.
- Pode desligar o ventilador?
- Pode.
Pedi um ovo cozido, não tinha.
- Pode ir buscar o ovo no bar do lado?
- Pode.
Aí virou festa. Marcão começou a provocar.
- Pode me mandar uma porção de moela acebolada sem a cebola?
- Pode fazer uma porçãozinha de torresmo sem a gordurinha de fora?
- Pode pagar com cheque pra daqui 15 dias?
Não havia pergunta que fizéssemos que a resposta não fosse invariavelmente a mesma. Esse é o Estephanio’s, o bar onde TUDO PODE!
Vou falar de um irmão de fé.
Conheci-o pela Internet, numa lista de discussão. Ele invariavelmente arrumando confusão com opiniões contundentes, sem preocupação de agradar quem quer que fosse. Depois fundou o seu próprio sítio, o saudoso "Sentando o Cacete", reunindo um timaço de feras da caneta, descendo o pau em Deus e o mundo. Ganhou a minha alma no primeiro texto, contando como trocara o caco de vidro de uma menina que viera lhe assaltar por um beijo e um pedaço de pizza. Depois nos conhecemos pessoalmente, bêbados, num bloco de carnaval.
Esse é meu irmãozinho de fé Eduardo Goldenberg. Advogado destemido, cronista de mão cheia, lutador desesperado pelas idéias em que acredita, arrumador de justas encrencas, fígado nervosíssimo, contador impagável das melhores histórias, coração de manteiga. Uma das melhores prosas e uma das figuras mais autênticas e íntegras que conheci.
Vou falar de um ídolo.
Aldir Blanc Mendes é o ídolo dos meus trinta anos, como Rubem Braga foi dos meus quinze, com a diferença de que pude dizer isso a ele, na mais fantástica bebedeira da minha vida. O maior poeta da música popular brasileira. A poesia e a insanidade do Aldir são o alento da minha consciência do mundo, entre deslumbrada, atormentada e perdida. Ambas – a insanidade e a poesia – transbordam aos borbotões de suas canções, seus livros, suas crônicas, seus poemas. Nelas me reconheço, me salvo e me perco.
Mas afinal, o que têm a ver tudo isso?
É que neste domingo desfilará o "Segura pra não cair", que se concentra no Estephanio’s, desfila pela Vila Isabel, com samba do Eduardo, homenageando Aldir. Como nunca fui ao bloco, quis arrumar um jeito de dizer porque não se pode perder esse desfile por nada desse mundo. Nem que para isso seja preciso abalar-se de São Paulo ao Rio ou adiar as férias. De brinde, a letra do samba:
O INVENTÁRIO DA INFÂNCIA DE ALDIR BLANC EM VILA SABEL
(Eduardo Goldenberg, Mariana Blanc, Edmundo Souto e Fernando de Lima)
Hoje eu vou voltar no tempo...
Recordar!
Dos teus dias de criança,
o inventário da infância
são muitas histórias pra contar!
Desfilando nessa rua
sob a luz da linda lua
eu vou mostrar...
Vila, a febre que não quer passar,
do teu delírio eu fiz enredo
vem pra roda cirandar!
Dois cinco sete, eu me lembro!
Vó Noêmia!
Vô Aguiar tinha alma
bem boêmia!
Tio Placidino, Cicinha
e Tio Bimbas também,
Ceceu Rico e Helena vêm!
É, veja que felicidade,
tudo isso ainda é verdade,
Simpatia É Quase Amor!
Vem cantarolar a linda rosa juvenil,
que teu sonho descobriu!
Uni-duni-tê!
Arma a quadrilha que eu vou...
Anarriê!
Prima da Penha mostrou
Copacabana
de cheiro-mar tão sacana...
Vai, vai ser Blanc na vida em nome da Vila
Mesmo se o SEGURA não desfila
o show tem que continuar!
Faz do samba o "74" da saudade...
Rua dos Artistas parou pra te aplaudir
Vem, Aldir!
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