segunda-feira, 2 de fevereiro de 2004

João do Rio


A madrinha Christiane, uma das pessoas que mais encarna o autêntico espírito carnavalesco, transcreveu no excelente Contexto da Descoberta uma belíssima página do grande cronista João do Rio, sobre os carnavais do começo do século passado.

João do Rio, como se percebe, era um retratista sagaz da cidade e da alma brasileira na virada do século XIX para o XX. Este texto, assim como todos os presentes no indispensável livro "A Alma Encantadora das Ruas", é fundamental para qualquer um que pretenda entender a identidade mais profunda do povo brasileiro. Identidade esta tão autêntica, tão presente, mas que dolorosamente vemos se esvaindo em meio a todas as formas de violência que nos são impingidas, dentre as quais talvez a mais sutil e mais destruidora seja a aniquilação da nossa singularidade, diversidade e expressividade culturais.

Duas coisas chamaram-me a atenção, particularmente. Uma é a constatação do sentido corrente da designação "sambas de carnaval" posto que nenhuma adjetivação, explicativa ou restritiva lhe segue, dando a entender que a significação fosse perfeitamente partilhada pelo senso comum. Claramente, não possui a significação rítmica específica que hoje designa um gênero musical, mesmo porque a cristalização deste elemento rítmico só se deu mais de trinta anos após a data deste maravilhoso escrito, apesar de apontar inequivocamente para as matrizes rítmicas e cênicas de origem africana (“...porque a origem dos cordões é o Afoxé africano...”). Contudo, pelo tom de todo o texto, podemos tentar intuir a carga mais profunda de significações que a palavra encerrava, algo que tange a forma mais autêntica, espontânea e, ao mesmo tempo, especificamente engendrado para desfiar as agruras, alegrias, penúrias, dasabafos e desejos de um povo que era mantido sempre calado. trezentos e sessenta e dois dias por ano. Maravilhoso saborear esta atmosfera de catarse coletiva da parcela mais humilhada, mais subjugada de uma nação. Mais emocionante é perceber como esta carga significativa da palavra "samba", enquanto o privilegiado cantochão dessa liturgia que dialeticamente leva ao extremo o sagrado e o profano, perpetuou-se mesmo após a fixação e o predomínio da significação propriamente rítmica, conferindo essa sacralidade que nós, amantes do samba, sentimos tão fortemente, mesmo sem muitas vezes sermos capazes de verbalizar. Sacralidade esta que escancara o pecado daqueles que teimam em tomar seu santo nome em vão, de pagodeiros a Super-Escolas S/A.

A segunda curiosidade é perceber como, bem inversamente ao que comumente se aceita, o carnaval de rua do Rio de Janeiro hoje é muito mais “família” do que há cem anos atrás. A única coisa que talvez haja em comum são as turbas se acotovelando nas ruas em determinadas manifestações, mas o que mais se vê hoje em dia, em vez da atmosfera de luxúria, são criancinhas montadas nos ombros dos pais. O carnaval de rua, hoje, certamente é mais comportado, mais seguro. Se ainda é alegre, se ainda se presta à descontração, à música e à dança, falta-lhe a essência do povo, em sua quase desesperada necessidade de bradar seus tormentos, desejos e prazeres em forma de sambas. Se nele há ainda, aqui ou acolá, pretas bêbadas desconjuntando os quadris largos, a verdade é que perdeu-se esta dimensão de verdadeira transgressão, na acepção visceralmente coletiva. A sua luxúria, assim como sua música e sua dança, hoje são fabricados e podem ser comprados em ofertas “pret-a-porter”.

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